Carlos Alberto de Freitas — um intelectual na luta armada

Pradeep Chandrasiri , Sem título, 2013
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Por ELAINE TAVARES*

Comentários sobre o livro recém-lançado

Já está circulando o quarto volume da Coleção Ponto Final, um projeto de fôlego do jornalista e editor Nelson Rolim de Moura que pretende contar a história dos 38 jornalistas torturados e assassinados pela ditadura militar que tomou o país em 1964. Apesar de estar ainda no começo pode-se dizer que nestes quatro livros já está consolidada uma obra inestimável que certamente só se fortalecerá com os demais volumes devidamente engatilhados.

O trabalho de Nelson Rolim é, sem lugar a dúvidas, uma contribuição extraordinária não apenas para a história, mas também para o jornalismo, visto que centra o foco na ação de jornalistas. A coleção ainda recupera a memória nacional, já que não se limita a uma biografia da pessoa, avançando para o relato de toda uma época.

Nos livros da coleção caminham junto com a história pessoal do jornalista narrado a imprensa revolucionária, os movimentos de luta, as propostas revolucionárias, os personagens mais importantes da política e da história nacional. Além disso, Nelson Rolim dá nome e sobrenome para os torturadores e assassinos, escancarando assim uma verdade que essa gente tanto quer esconder.

O quarto volume conta a história de Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, militante mineiro. A pesquisa de Nelson Rolim apresenta toda a atmosfera política desde os anos 1950, centrando sua análise no período Jânio/Jango, o papel dos Estados Unidos, toda a batalha da legalidade e a luta dos estudantes na construção de um projeto nacional. Beto é um dos que está nesse universo, ingressando na luta estudantil em 1961 quando o Brasil vivia toda a efervescência do crescimento da luta social que assomava em toda América Latina pós a revolução de Cuba.

Não é sem razão que Beto é enviado pela sua organização, a Política Operária (Polop), justamente para Cuba, onde ele pôde testemunhar o profundo enraizamento da revolução no povo cubano. Aquela experiência faz com que retorne ao país certo da necessidade da reforma agrária e de uma educação universal.

É assim que Beto, logo depois de voltar ao Brasil, se integra também na luta rural junto às Ligas Camponesas que já estavam organizadas e consolidadas em vários estados brasileiros prontas para apoiar o que viria a ser chamado de “reformas de base” por João Goulart. Na universidade, Beto atuava junto com Vânia Bambirra e Theotonio dos Santos, dando cursos de formação política tanto via Diretório Central de Estudantes (UFMG) como pelos sindicatos de trabalhadores.

Eram anos de muita mobilização. O nacionalismo revolucionário estava no auge. Belo Horizonte não fugia do contexto e a juventude se organizava. Naqueles dias, ele e outros amigos chegaram a abri um bar – velha tradição mineira – que veio a ser ponto de encontro da juventude revolucionária e intelectuais.

Por isso, quando veio o golpe no 31 de março, aquele grupo já começou a resistência. Também teve início o processo de caça aos chamados “comunistas” e os grupos passaram a se desfazer ou entrar na clandestinidade. As Ligas Camponesas foram aplastadas e os estudantes perseguidos. Por conta dessa perseguição, Beto sai de Belo Horizonte e vai para o Rio de Janeiro. Desde ali começa outra fase da militância, já vivendo na lógica dos aparelhos e do anonimato, viajando amiúde para preparar a guerrilha em outras partes do país.

Não demorou muito e Beto foi preso pichando muros, tendo vivido 98 dias de cárcere. Era o começo da ditadura e ele não viveu grandes torturas físicas. Pôde aproveitar para ler e estudar ainda mais, robustecendo seus princípios e a fé na revolução. Saiu da prisão mais fortalecido nos seus ideais, certo do que deveria fazer, aprofundando ainda mais o processo de formação dos companheiros. Ele insistia na necessidade de estudar e conhecer os grandes teóricos das revoluções, bem como seguia escrevendo no jornal do DCE da UFMG, mesmo depois de formado. Era preciso chegar à juventude.

Em 1967, já com anos de militância, Beto é condenado à revelia e precisa entrar definitivamente na clandestinidade. É quando abandona a Polop para militar em outra organização, o Comando de Libertação Nacional (Colina), apostando em ações que pudessem também engajar os movimentos populares. Não aceitava ação descolada das massas. Dalí até 1971, quando já militava na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e por fim é assassinado, Beto foi incansável na luta, atravessando mais de uma década na sistemática tarefa de formar gente e de construir a ideia de um país livre e soberano. Essa década de militância é narrada por Nelson Rolim de maneira magistral.

Apesar de o livro conter mais de quinhentas páginas a leitura vai num tropel, porque a forma de narrar é viva e envolvente. O leitor sente-se no meio da batalha, conseguindo estabelecer os nexos entre a vida de Carlos Alberto e a vida da nação. É, portanto, um livro para pessoas ávidas de história. Um espaço de encontro com a realidade nacional num tempo que muita gente busca deixar na obscuridade. Nelson Rolim faz o contrário. Ele joga luz.

Dá nome e sobrenome, cavouca as entranhas, expõe as feridas, desvela os terrores. E, na trajetória de Beto, vai também amarrando os fios de outras vidas que cruzaram com a dele nesse período tão cheio de dor. É o caso de Inês, amiga de toda vida de Beto, que é a única sobrevivente da Casa da Morte, em Petrópolis, na serra fluminense, onde Beto foi assassinado. Ela, depois de brutais torturas, consegue sair e ficar viva. E é ela quem vai revelar a passagem de Beto por aquele antro de terror, até finalmente ser silenciado para sempre.

Apesar desse testemunho, o corpo de Beto ainda não foi encontrado. Ele é um desaparecido. O alegre mineirinho foi esperado anos a fio pelos pais, com seu quarto arrumado no apartamento da rua Espirito Santo em Belo Horizonte. Enquanto viveram, nunca perderam a esperança de vê-lo entrar pela porta com seu riso de cristal. Mas, Beto nunca apareceu.

O texto impecável de Nelson Rolim tem a capacidade de nos transportar para aqueles dolorosos dias nos quais lutar por liberdade e por democracia era praticamente uma sentença de morte.

O relato universalizante que nos apresenta a vida deste vibrante intelectual da luta armada só é possível com o bom jornalismo, também consolidado nos outros três volumes já publicados. Jornalismo à maneira de Adelmo Genro Filho, singularizado na biografia do Beto, mas capaz de compor o grande mosaico do que foi o país na década que vai de 1960 até 1971.

Que venham os outros 34 volumes, pois só quando todos eles saírem à luz é que poderemos chegar ao ponto final. Pelo menos no que diz respeito aos 38 jornalistas desaparecidos e assassinados da ditadura. Nelson Rolim presta, assim, um inestimável serviço ao jornalismo e ao Brasil. É um projeto extraordinário, sem precedentes no país.

Elaine Tavares é jornalista.

Referência


Nelson Rolim de Moura. Carlos Alberto de Freitas: um intelectual na luta armada. Florianópolis, Editora Insular, 2024, 598 págs. [https://shre.ink/g82o]


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