A Europa de hoje nas pegadas de Primo Levi

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Por MARIAROSARIA FABRIS*

Considerações sobre o documentário “La strada di Levi”

1.

Em 8 de setembro de 1943, aos vinte e quatro anos de idade, Primo Levi, um químico de Turim, passou a integrar um grupo de partisans ligado ao Partido de Ação [1], no Vale de Aosta, região limítrofe com o nativo Piemonte (Norte da Itália). Capturado pela milícia fascista, no dia 13 de dezembro, por ter-se declarado “cidadão italiano de raça judaica” (LEVI, 1991) [2], em 21 de janeiro do ano seguinte foi enviado ao campo de prisioneiros de Fóssoli (perto de Módena, na Emília-Romanha, Norte do país).

Em fevereiro, o campo passou para o comando alemão e na madrugada do dia 22, Levi foi colocado num dos doze vagões chumbados de um trem para Auschwitz, numa viagem que durou cinco dias: “Tínhamos sabido, com alívio, de nosso destino. Auschwitz: um nome que não significava nada, então e para nós; mas devia sempre corresponder a um lugar desta terra” (LEVI, 1991) [3]. Dos judeus embarcados naquela manhã na estação ferroviária de Carpi, pouquíssimos sobreviveram ao extermínio: “De seiscentos e cinquenta, todos os que então partíramos, voltávamos três [4]. […] Sentíamos fluir nas veias, junto com o sangue extenuado, o veneno de Auschwitz” (Levi, 1997c) [5].

Ao chegar ao campo de concentração, na noite de 26 de fevereiro, o químico deportado recebeu o nº 174 517: “de repente, à traição, desapareceram nossas mulheres, nossos pais, nossos filhos. [… Emergiram, em compensação, na luz dos holofotes, dois grupos de sujeitos estranhos. Caminhavam em linhas de três, com um andar esquisito, atrapalhado, a cabeça baixa, os braços rígidos. […] uma longa túnica listrada que, apesar […] da distância, adivinhava-se esfarrapada e imunda. […] Entreolhávamo-nos sem dizer uma palavra. Tudo era incompreensível e louco, mas entendêramos algo: aquela era a metamorfose que nos esperava. Amanhã, nós também estaríamos assim”. (LEVI, 1988).

A experiência no campo de concentração foi registrada por Levi em É isto um homem? (Se questo è un uomo) e em escritos posteriores, dentre os quais Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades, considerado a grande súmula de quarenta anos de reflexão sobre os acontecimentos por ele vivenciados.

Redigido no período subsequente ao fim da Segunda Guerra Mundial, entre dezembro de 1945 e janeiro de 1947, É isto um homem? foi lançado numa tiragem reduzida (2.500 exemplares) em novembro de 1947 por um pequeno editor, De Silva, e publicado novamente em 1958, em versão revista e ampliada, pela prestigiosa editora Einaudi de Turim, a mesma que o havia recusado num primeiro momento. Como escreveu o autor em 1963 e como revelará em 1975 (numa declaração citada numa nota de Marco Belpoliti), havia um propósito em seu relato: “Sentia a necessidade de contar essas coisas: parecia-me importante que elas não ficassem enterradas dentro de mim, como um pesadelo, que delas tomassem conhecimento não apenas meus amigos, mas todos, um público o mais amplo possível. Assim que pude, comecei a escrever, com fúria e, ao mesmo tempo, com método, quase obcecado pelo receio de que mesmo uma única de minhas lembranças pudesse ser esquecida” (LEVI, 1997a).

“Para me livrar de um peso que trazia dentro de mim: muitos dos que sobreviveram a Auschwitz tinham sobrevivido logo para contar. E eu, antes de escrever, havia contado aquelas histórias. Falava com todos, nos trens, nos bondes, assim que conseguia despertar a atenção de alguém. A volta coincidiu com meses muito duros. Sentia, mais ainda do que no lager, a ofensa que me foi feita e entendi que a única forma de me salvar era contar”.

Em 27 de janeiro de 1945, o lager de Auschwitz foi libertado pelo Exército Vermelho e Levi (1997c) enviado a um campo de refugiados russo em Katowice, perto de Cracóvia (Polônia): “A primeira patrulha russa pôde ser vista do campo por volta de meio-dia […]. Eram quatro jovens soldados a cavalo, que agiam cautelosos […]. Quando chegaram ao arame farpado, detiveram-se, trocando palavras breves e tímidas […]. A liberdade, a improvável, impossível liberdade […], chegara […]. Lá pelo final de fevereiro, após um mês de cama, sentia-me não já curado, mas estacionário. […] Cortei um par de palmilhas de uma coberta […], e fui embora. Não muito tarde na manhã seguinte, vi-me num transporte russo [que se dirigia] para um misterioso campo de parada”.

O escritor permaneceu no campo de Katowice até meados de junho, quando empreendeu a longa jornada de volta para casa, uma jornada que durou quatro meses e que o levou a percorrer 6.000 km de trem e a cruzar dez fronteiras até chegar à Itália, passando pela Ucrânia, Bielorrússia, Moldávia, Romênia, Hungria, Eslováquia, Áustria e Alemanha. Finalmente, no dia 19 de outubro, alcançou Turim.

O aventuroso regresso foi contado em A trégua (La tregua), escrito basicamente entre dezembro de 1961 e novembro de 1962 (algumas partes, porém, foram redigidas antes: a poesia que serve de epígrafe é de 11 de janeiro de 1946; os dois primeiros capítulos são de 1947-1948; o terceiro é de março de 1961), a partir de anotações do início de 1946, como explicava o próprio autor (numa declaração reproduzida em 2006): “Tinha, da viagem de volta, um mero apontamento, como dizer, ferroviário, uma espécie de itinerário: um dia em tal lugar, o dia tal em outro lugar. Localizei-o e serviu-me de esboço, quase quinze anos depois, para escrever A trégua”. O livro foi publicado em 1963, de novo pela Einaudi, e levado para as telas sob o mesmo título em 1997, num filme em que Francesco Rosi procurou salientar o espírito picaresco que muitas vezes caracterizou essa aventura. [6]

 

2.

Sessenta anos depois da tortuosa viagem de volta do deportado e numa linha absolutamente diferente da trilhada por Rosi, o diretor Davide Ferrario [7], com a colaboração do ensaísta Marco Belpoliti [8], propôs sua leitura da segunda obra do escritor piemontês em La strada di Levi. Concebido durante quatro anos e filmado entre janeiro e outubro de 2005, o documentário foi lançado em 2006. Nele, Ferrario e Belpoliti decidiram refazer o longo caminho de volta do autor italiano, pontuando essa jornada em sua quase totalidade por trechos de A trégua, É isto um homem?, Ad ora incerta (1984, poesias) e, segundo Andrea Cortellessa, de A chave estrela (La chiave a stella, 1978), O ofício alheio (L’altrui mestiere, 1985), Os afogados e os sobreviventes e A assimetria e a vida, cuja leitura foi quase sempre confiada à voz-off do ator Umberto Orsini.

O filme, porém, não tinha por objetivo a reconstituição documental da viagem de 1945, nem buscar traços daquele passado, mas ver como eram agora as paisagens e os tipos humanos que Levi havia conhecido, verificar como se vivia na atualidade nas terras por ele “visitadas”. E assim, os realizadores não saíram em busca da Europa de outrora (embora passado e presente se imbriquem e dialoguem o tempo inteiro), mas da Europa “transformada pela queda do Muro de Berlim”, principalmente daqueles países devastados pelo colapso do regime soviético a partir de 1991.

O documentário divide-se em dezesseis partes: 1. Através da Europa; 2. Auschwitz – a memória; 3. O dia seguinte; 4. Polônia – o trabalho; 5. Ucrânia – a identidade; 6. Destinação norte; 7. Bielorrússia – um mundo à parte; 8. Responsável ideológico; 9. Organizar um colcoz; 10. Ucrânia 2 – a peste; 11. Viagem ao contrário; 12. Moldávia – a emigração; 13. Romênia – “Novos horizontes”; 14. A nova velha Europa – de Budapeste a Viena; 15. Itália – a prova; 16. A lenta nevada dos dias.

Na primeira etapa da jornada pela Europa, os autores visitaram a Polônia (partes 2, 3 e 4). As sequencias no campo de concentração sob a neve, por ocasião das comemorações do 60º aniversário da libertação, se alternam com tomadas internas dos blocos e trechos do documentário Ritorno ad Auschwitz (1982), de Daniel Toaff, sobre uma das visitas que Levi fez posteriormente ao local [9].

Focalizado o ponto de partida, as filmagens se deslocaram até Katowice, onde Levi (1997c) ficou retido por quatro meses e meio, antes de iniciar efetivamente a viagem rumo à Itália: “O campo [de parada de Katowice] que me acolheu, esfomeado e cansado […], situava-se numa […] elevação, num subúrbio da cidade denominado Bogucice. Era constituído por uma dúzia de barracões de alvenaria, de reduzida dimensões, com um único andar […]. Antes, fora um minúsculo Lager alemão, e abrigara os mineradores-escravos que trabalhavam numa mina de carvão, aberta nas redondezas. […] no dia 8 de maio, a guerra terminou. A notícia, embora esperada, explodiu como um furacão: durante oito dias, o campo, o Kommandantur, Bogucice, Katowice, toda a Polônia e todo o Exército Vermelho explodiram num paroxismo de entusiasmo delirante. […] o nosso sonho […] tornara-se realidade. Na estação […] um trem nos esperava […]. Aquele trem partiu em meados de junho de 1945, carregado de esperança. […] um trem […]: um longo trem de vagões de carga, de que nós, italianos (éramos aproximadamente oitocentos), tomamos posse com fragorosa alegria. O trem percorria planícies cultivadas, cidades e aldeias […] [rumo a] Odessa; depois, uma fantástica viagem pelo mar através das portas do Oriente; e, finalmente, a Itália”.

Para dar uma ideia mais concreta da Polônia hodierna, a equipe foi até Nowa Huta. Sequências de filmes de propaganda sobre a construção da cidade e de um esperançoso porvir, frutos do trabalho coletivo, extraídos de O homem de mármore (Czlowiek z marmuru, 1977), de Andrzej Wajda, são entrecortadas pela entrevista com este cineasta que tem palavras muito duras em relação aos antes tão exaltados trabalhadores, que hoje são apenas uma sombra do que foram. O outrora grande polo industrial transformou-se na “cidade-modelo comunista”, como alardeia a publicidade da empresa Communist Tours.

 

3.

Da Polônia, a equipe deslocou-se para Lvov (parte 5), onde recuperou as imagens clandestinas do enterro de um famoso compositor e cantor ucraniano, Igor Bilozir, morto por conterrâneos de origem russa em 8 de maio de 2000, mas ainda vivo na memória coletiva. A grande comoção popular que acompanhou esse acontecimento e o propósito de preservar a identidade nacional, no entanto, se chocam com as sequências que retratam a juventude da Ucrânia de 2005 já totalmente globalizada.

A terceira etapa levou a trupe para a Bielorrússia (partes 7, 8 e 9), um mundo todavia rural, no qual a religião não parece ter perdido seu espaço, e ainda povoado de lembranças da guerra (como as narradas pela viúva de um partisan) e do regime soviético: bustos de Marx e Lênin, estátuas e quadros que exaltam os heróis do conflito mundial. Lá, as filmagens tiveram de ser interrompidas porque não havia sido solicitada uma autorização ao Representante Distrital para a Ideologia.

Dadas as devidas explicações, os realizadores tiveram que aceitar trabalhar com a supervisão do Representante, o qual, enquanto observava as filmagens, não percebeu que havia passado a ser o objeto das tomadas. Em seguida, no gabinete do diretor da empresa Agrícola Coletiva, os dois bielorrussos resolveram falar da fundação do colcoz [10] e da vantagem desse sistema coletivo em relação ao particular e assim imagens de um filme soviético de propaganda se alternam com tomadas do presente que emulam ironicamente as do passado. No fim, todos os envolvidos no incidente confraternizaram num almoço oferecido pelas autoridades locais. “Viva a amizade entre os povos”, diz uma cartela e, de fato, o lado humano se sobrepôs ao aspecto ideológico e os resquícios da Guerra Fria foram contornados.

Para se despedirem de Stáryie Doróghi, Ferrario e Belpoliti emprestam as lembranças de Levi (1997c): “Quando a partida ficou acertada, percebemos, para nossa surpresa, que aquela terra sem fim, aqueles campos e bosques […], [e] aqueles horizontes intactos e primordiais, aquela gente vigorosa e amante da vida, pertenciam ao nosso coração, penetraram em nós e permaneceram longamente: imagens gloriosas e vivas de uma estação única em nossa existência”.

De volta à Ucrânia, o documentário focaliza as ruínas de Prypiet’, alternando-as com tomadas feitas logo depois da explosão da central nuclear de Chernobil, da consequente evacuação, e de filmes de propaganda que exaltavam o surgimento da cidade mais jovem do país. Na cidade fantasma, parada no momento fatal, foi rodado o filme de terror A volta dos mortos vivos 4 – Necrópolis (Return of the living dead 4 – Necropolis, 2005), uma produção ucraniano-americana, dirigida por Ellory Elkayem. Nesta décima parte, há ainda, o depoimento de um pai, obrigado a se separar do filho para que a criança, altamente contaminada, pudesse receber um tratamento mais adequado na Itália. Uma estátua de Prometeu surge como símbolo do novo desafio lançado pelos homens à natureza, um desafio abortado, como atestam os escombros produzidos por sua ousadia, sobre os quais se erguem as palavras do escritor[11]: “Existem, nesta terra, auroras, florestas, céus estrelados, rostos amigos. Mas este planeta é regido por uma força não invencível mas perversa, que prefere a desordem à ordem, a mistura à pureza, o embaralhamento ao paralelismo, a ferrugem ao ferro, a estupidez à razão. Parece-nos que o mundo avança em direção de um desastre qualquer e nos limitamos a esperar que o avanço seja lento”.

Prosseguindo para a Moldávia (parte 12), o filme revela as condições de vida num país que ainda não alcançou um estágio mais moderno de desenvolvimento. Para os camponeses, a mudança de regime foi desastrosa, porque, com o fim da organização em colcozes, o lucro passou a ser menor e foram obrigados a imigrar, nem que fosse apenas para satisfazer os sonhos de consumo dos filhos, como revela uma enfermeira entrevistada. Um país cuja paisagem geográfica e humana parece corresponder ainda à descrição de Levi (1997c): “nossos olhos viram um cenário surpreendentemente doméstico: não mais a estepe deserta, geológica, mas as colinas verdejantes da Moldávia, com casas coloniais, palheiros, filas de parreiras; não mais enigmáticas inscrições cirílicas, mas […] um idioma familiar na música e hermético no sentido”.

 

4.

Depois de terem cruzado o Danúbio, os realizadores adentram a Romênia, uma nação que, apesar dos contrastes ainda existentes, está em franco crescimento econômico, também graças à presença de empreendedores do Norte da Itália, que, a partir de 1992, ali instalaram suas fábricas, para fugir das obrigações trabalhistas do país de origem, lucrar mais, ter preços mais competitivos e, com isso, conquistar novos mercados. O subtítulo dessa décima terceira parte não se refere a novas perspectivas para os trabalhadores, mas é o nome de uma das fábricas em que estes são espoliados de seus direitos, em troca de um emprego. A ironia do subtítulo evidencia a “condenação ao silêncio”, ou seja, a situação em que são obrigadas a viver pessoas que tinham tudo assegurado, embora não pudessem se manifestar livremente, e que hoje têm de renunciar a suas reivindicações pelo medo de perderem seu ganha-pão, medo implantado pelo neocapitalismo, como fica bem evidente na pergunta sobre o que acham de seus patrões italianos, feita a um grupo de mulheres, pergunta que fica sem resposta.

A presença italiana na Romênia não é de hoje, como é assinalado no documentário com a entrevista feita com Modesto Gino Ferrarini, presidente da RO.AS.IT. (Associação Italiana na Romênia), cujo avós haviam emigrado para lá do nativo Friul (Norte da Itália). Com a chegada dos libertadores soviéticos, muitos italianos regressaram à pátria, como salientou Levi (1997c) ao relembrar o encontro de seu grupo com representantes do ex-regime fascista, cujo vagão foi enganchado ao dos prisioneiros: “chegou… outro comboio de italianos. […] eram, aproximadamente, 600 homens e mulheres, bem vestidos, com malas e baús: alguns com máquina fotográfica no pescoço, quase turistas. Olhavam-nos de alto a baixo como parentes pobres… [e] Com muita complacência, fizeram-nos entender que eles… eram pessoas importantes: …funcionários civis e militares da legação italiana de Bucareste, e… gente variada, que… permanecera na Romênia… Havia entre eles núcleos familiares completos”.

Ao ser alcançada pelo escritor e seus companheiros de aventura, a Hungria (parte 14) os havia consolado, porque nela, como escreveu Levi (1997), “apesar dos nomes impossíveis, já nos sentíamos na Europa, sob as asas de uma civilização que era a nossa, ao abrigo de alarmantes aparições, como aquela do camelo na Moldávia”. Lá, de fato (LEVI, 1997c), “para pôr freio à precoce ilusão doméstica, encontrava-se, parado na passagem de nível, um camelo, remetendo-nos a algum outro lugar: um camelo extenuado, cinza, lanoso, carregado de sacos, expirante altivez e solenidade inerme através do pré-histórico focinho leporino”.

Tão estranho quanto um camelo na Moldávia, que também Ferrario e Belpoliti encontraram, é o “cemitério” das estátuas comunistas, reunidas em Budapeste para atrair turistas de todo o mundo. No comércio de rua, dominado pelos chineses, estão à venda camisetas com a efígie de Lênin, meias com a imagem de Che Guevara, relógios com o rosto de Mao Tsé-tung, isqueiros com a estrela vermelha. Segundo Matteo Contin, a “americanização selvagem” entrou a toda, assim como na Eslováquia, onde, em Bratislava, tomadas do cemitério dos libertadores são substituídas por uma sequência vertiginosa de anúncios luminosos da “nova civilização”. Com a globalização, o passado ficou para trás.

 

5.

O desmantelamento de monumentos comunistas, como consequência da derrocada de uma ideologia, já ilustrado no cinema por Adeus, Lênin! (Good bye, Lenin!, 2003), de Wolfgang Becker, merece uma digressão à parte por causa de um acontecimento estranho ao filme, porque posterior a ele, mas ligado à biografia de Levi e ao modo como países do Leste europeu tentaram apagar seu passado. O governo polonês, que, desde 2007, vinha intimando as autoridades italianas a retirarem do ex-campo de concentração o “Memorial italiano de Auschwitz”, fechou-o em 2012. Posteriormente desmontada, a obra foi transferida para Florença, para ser instalada no Ex 3 – Centro de Arte Contemporânea.

Inaugurado no dia 13 de abril de 1980, no Bloco 21, em homenagem aos 3.431 italianos mortos no lager, o Memorial foi projetado por Lodovico Barbiano di Belgiojoso. O visitante adentrava um túnel e percorria, como se fossem os trilhos que levavam ao campo, os oitenta metros de uma passarela de madeira, para ter a mesma sensação de “pesadelo do deportado, dilacerado entre a quase certeza da morte e a tênue esperança da sobrevivência”, nas palavras do arquiteto do escritório BBPR [12], reproduzidas por Ilaria Lonigro.

O túnel, uma instalação multimídia coordenada por Nelo Risi [13], consistia numa grande espiral, cujos vãos permitiam entrever os demais blocos, revestida por vinte e três faixas de tecido de um cromatismo intenso, pintadas por Mario “Pupino” Samonà, em que, sobre o preto do Fascismo, se destacavam o vermelho do Socialismo, o branco do movimento católico e o amarelo das estrelas de Davi impostas aos judeus. Durante o percurso dessa espécie de “redemoinho mnemônico” (como o denominou Erminia Pellecchia), o visitante era guiado pela música “Ricorda cosa ti hanno fatto in Auschwitz” [Lembre-se do que lhe fizeram em Auschwitz], composta por Luigi Nono em 1966 [14], e por uma breve texto de Primo Levi [15].

Para contar a história não apenas das deportações, mas da oposição aos nazifascistas, de 1922 a 1945, através da resistência da classe operária e de figuras como Gramsci, Turati, Matteotti, os irmãos Rosselli e Dom Minzoni [16], na gigantesca obra de mais de duzentos metros de comprimento, foram representados várias vezes os símbolos comunistas da foice e do martelo, o que a tornou indesejada aos olhos do governo polonês – “Não corresponde aos critérios pedagógicos e ilustrativos indicados para as exposições no ex-campo de extermínio” (como relatou Erminia Pellecchia) – e até de autoridades italianas. Como se com o desmonte do Memorial pudesse ser apagado um pedaço da História, esquecendo também de que o campo havia sido libertado pelo Exército Vermelho, o mesmo que determinará a queda de Berlim, em 2 de maio de 1945, fato que levará à rendição da Alemanha cinco dias depois. A História, no entanto, não pode ser modificada [17].

Esse episódio vem explicitar algo que, no filme, ficou nas entrelinhas: de que forma o Comunismo foi vivido em diferentes pontos da Europa. Se, na antiga União Soviética e nos demais países da chamada Cortina de Ferro, depois dos primeiros impulsos revolucionários, essa doutrina social representou a opressão, numa nação como a Itália, apesar das revelações sobre o stalinismo, foi uma força política que se contrapôs à hegemonia capitalista, permitindo vários avanços sociais. Sem falar de sua marcante presença no cenário cultural do país.

 

6.

E se, no documentário, os realizadores lançaram um olhar nostálgico sobre o universo que retrataram, sobretudo o rural, não é porque saudosos de um regime que não deu certo, mas porque aquelas paisagens, com seus habitantes, seus costumes, suas casas e objetos, remetiam a imagens familiares. No fim da sexta parte, por exemplo, “na terra de ninguém, entre a Ucrânia e a Bielorrússia”, a câmera se demora numa vereda, num passarinho apoiado num fio de luz, em antigos postes de eletricidade, quase como se quisesse resgatar um passado perdido.

Imagens que se foram, que se perderem paulatinamente com o boom econômico e o avanço do neocapitalismo na Itália, a partir do fim dos anos 1950. Imagens do país da infância e da adolescência dos realizadores, quando o futuro ainda resplandecia radioso e as utopias pareciam possíveis. Porque, no fundo, é essa a pergunta que o filme persegue: por que as utopias não se realizaram. Como salienta Contin: “É um mundo de sonhos dissipados esta Europa, parece nos dizer Ferrario (ou, talvez, seja o próprio Velho Continente a nos dizer isso). O sonho do Comunismo, que se dissolveu, e o sonho de uma Europa rica e opulenta como os Estados Unidos, que logo se chocará contra o muro da realidade, talvez sejam as duas feridas mais profundas que cortam a Terra que nos hospeda”.

Não foram apenas a utopia socialista ou a europeia a desvanecer, mas também a representada pela América, não mais a terra prometida dos imigrantes, que foram lá “para buscar pão e liberdade, a felicidade”, mas a das marchas pelos direitos civis, das manifestações contra a guerra do Vietnã, da contracultura, dos que almejavam “uma nova liberdade”.[18]

A Europa e o mundo de hoje se construíram sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial (e também da anterior), com chagas profundas que ainda não cicatrizaram e que tornaram a se abrir, à primeira oportunidade, como atesta a fala de um neonazista na Alemanha, na penúltima etapa da viagem, quando afirma que ele e seu grupo não veem o Velho Continente como a União Europeia, “mas como uma Europa das pátrias”. E, poderia acrescentar-se, um mundo de pequenas pátrias. Bastaria pensar na guerra intestina que levou à dissolução da Iugoslávia no início dos anos 1990, nos movimentos separatistas que assombraram e assombram vários países da União Europeia (EU), ou na saída britânica da EU, o brexit.

 

7.

Em virtude disso, antes de adentrar pela velha Europa em sua jornada, o documentário nos coloca diante da grande ferida do século XXI, os escombros do Ground Zero de Nova Iorque (parte 1),[19] quando é o próprio diretor e não o narrador Umberto Orsini a introduzir a odisseia do escritor e a explicar os vários momentos de trégua presentes no filme. Para Levi (1997c), a trégua pessoal, representada pela longa viagem de regresso – “Os meses transcorridos […], pareciam agora uma trégua […], um dom providencial, embora irrepetível, do destino”, que fazia parte daquele período de suspensão temporal vivido pela Europa, “saída do pesadelo da guerra e da ocupação nazista, ainda não paralisada pelas novas angústias da Guerra Fria”, nos dizeres de Italo Calvino –, e a existência em si (LEVI, 1965): “a própria vida humana é uma trégua, uma prorrogação; mas são intervalos breves e logo interrompidos pelo “comando ao alvorecer”, temido mas não inesperado, da voz estrangeira […], que assim mesmo todos entendem e acatam. Esta voz manda, ou antes, convida à morte, e é abafada, porque a morte está inscrita na vida, está implícita no destino humano, inevitável, irresistível” [20].

Para os realizadores, trata-se do período situado entre a queda do Muro de Berlim (9 de novembro de 1989) e os atentados de 11 de setembro de 2001: “Nós também, cidadãos do novo século alcançamos o fim de nossa trégua. Não sabemos o que nos aguarda, mas, às vezes, podemos enxergar o futuro através das perguntas que o passado deixou sem resposta”. Por isso: “Com os nossos olhos e as palavras dele, retomamos a viagem no caminho de Levi” [21].

Uma viagem que, na tela, começou onde deveria terminar, porque o prólogo nova-iorquino, na verdade, é um epílogo, o que vem reforçar a ideia de que o percurso de Ferrario e Belpoliti, que poderia ter sido linear, mais racional, foi tão labiríntico quanto o havia sido, por força das circunstâncias, o de Levi. Um percurso de iniciação em que os textos do escritor piemontês funcionaram como uma espécie de fio de Ariadne que permitiu aos realizadores não se perderem num emaranhado de veredas e alcançarem o centro de sua investigação [22]: não o passado, mas o presente, com todas as suas contradições. Se, para Levi, escrever havia sido um ato de libertação, para eles rodar o filme foi uma forma de ter consciência das angústias do mundo contemporâneo, de externar as próprias perplexidades diante dele. Por isso, o convite feito pelos realizadores aos espectadores foi o de segui-los numa viagem em que não pretenderam buscar respostas, mas enfrentar novos questionamentos.

Os questionamentos, no entanto, poderiam ter sido aprofundados se, nas duas partes finais do filme, os realizadores tivessem proposto uma reflexão sobre a contemporaneidade, em vez de se dedicarem a focalizar os últimos dias de Levi e as lembranças que o escritor Mario Rigoni Stern tinha do amigo. Isso desequilibrou o conjunto da obra, quando teria sido mais interessante debruçar-se sobre novos prováveis caminhos para uma Europa em declínio e para o mundo ocidental em constante tensão depois do fracasso do Comunismo, assim como foi praticado em países como a ex-União Soviética e a China, por exemplo, e do enfraquecimento da democracia.

Pode existir ainda uma “hipótese comunista”, como defende o filósofo Alain Badiou, em reflexão citada por Fernando Eichenberg, com um “retorno aos princípios fundamentais do Comunismo, ou seja, à ideia de romper com a organização da sociedade em torno da propriedade privada e de acabar com as modalidades de divisão do trabalho”, inventando uma nova forma de convívio social em que o Estado não seja o catalizador do poder? Por outro lado, como revitalizar a democracia, uma vez que assistimos a um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e seus representantes, principalmente depois que partidos de esquerda e de centro-esquerda não souberam propor novas políticas públicas que atendessem às necessidades sociais hodiernas?

Como sublinhou Sérgio Abranches: “A crise da representação se agrava com a oligarquização dos partidos, dominados por grupos políticos que se perpetuam no poder e usam a estrutura da sigla não para canalizar demandas e valores das pessoas que pretendem representar, mas como trampolim para outros cargos e posições. […] A combinação entre essa restrição de recursos e o desgosto com as práticas políticas produz um descolamento perigoso entre as aspirações da sociedade e a satisfação com a democracia”. Por isso, Badiou “chama a atenção para a crise da democracia e para o clima de desorientação global, que podem favorecer regimes autoritários e reforçar discursos nacionalistas e populistas”, nas palavras de Eichenberg. Questões presentes nas entrelinhas do documentário, que Ferrerio e Belpoliti não souberam ou não quiseram explicitar, preferindo um fecho poético a um final político.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).

Versão revista e ampliada da comunicação “Pela Europa de hoje nas pegadas de Primo Levi”, apresentada no 18º Congresso Brasileiro de Sociologia.

Referências


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LONIGRO, Ilaria. “Giorno della Memoria, l’ Italia ‘espulsa’ da Auschwitz. Smantellato il Memoriale: finirà vicino a un Ipercoop”. Disponível em <http://www.ilfattoquotidiano.it/2016/01/26/giorno-della-memoria-litalia-espulsa-da-auschwitz-smantellato-il-memoriale-finira-vicino-a-un-ipercoop/2403565>.

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Notas


[1] Criado em 1942, o Partido de Ação era herdeiro do ideário do movimento antifascista Justiça e Liberdade, fundado em Paris, em 1929, por exilados italianos de tendência liberal-socialista. Nos anos finais da Segunda Guerra Mundial, o Partido de Ação deu a suas brigadas partisans o nome Justiça e Liberdade.

[2] Levi declarou-se judeu em virtude das leis raciais promulgadas em 1938, pelas quais as pessoas de religião hebraica não pertenciam à raça italiana. Isso salvou-o de ser fuzilado incontinenti, mas não tinha um significado especial para ele, como afirmou numa entrevista concedida a Enzo Biagi, em 1982: “Sentia-me vinte por cento judeu, porque pertencia a uma família judia. Meus pais não eram praticantes, iam à sinagoga uma ou duas vezes por ano, mais por motivos sociais do que religiosos, para contentar meus avós, eu nunca. Quanto ao resto do judaísmo, ou seja, o pertencimento a outra cultura, nós não sentíamos muito isso, em casa falávamos sempre em italiano, nos vestíamos como os outros italianos, tínhamos o mesmo aspecto físico, estávamos perfeitamente integrados, éramos indistinguíveis”.

[3] Como explicará, anos mais tarde, o próprio Levi (2004), em Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades (I sommersi e i salvati, 1986): “As primeiras notícias sobre campos de extermínio nazistas começaram a difundir-se no ano crucial de 1942. Eram notícias vagas, mas convergentes entre si: delineavam um massacre de proporções tão amplas, de uma crueldade tão extrema, de motivações tão intricadas que o público tendia a rejeitá-las em razão de seu próprio absurdo. […] O comboio no qual fui deportado, em fevereiro de 1944, era o primeiro que partia do campo de triagem de Fóssoli (outros tinham partido antes, de Roma e de Milão, mas não nos chegara notícia deles)”.

[4] Há uma discrepância em relação ao número de sobreviventes, uma vez que, em Se questo è un uomo, Levi escreve que, das quarenta e cinco pessoas de seu vagão, quatro sobreviveram. Em todo caso, o que importa é que os judeus italianos deportados que escaparam à morte foram pouquíssimos: apenas cerca de cinco por cento, como o próprio Levi registrará, posteriormente.

[5] As citações de trechos de obras de Levi, que remetem a seus textos traduzidos em português, É isto um homem? (1988) e A trégua (1997c), foram extraídas da narração do documentário em tela neste trabalho, respeitando cortes, algumas inversões e pequenos acréscimos (entre colchetes) feitos por Davide Ferrario e Marco Belpoliti. As citações que se referem a Se questo è un uomo em língua original (1991) não foram tiradas do filme.

[6] É isto um homem? não foi filmado, mas teve duas adaptações radiofônicas. A primeira, de 1962, da Rádio Canadense, foi muito apreciada por Levi, conforme reportou Ernesto Ferrero: “Os autores do roteiro, distantes no tempo e no espaço, e estranhos à minha experiência, haviam extraído do livro tudo o que eu tinha encerrado nele e até algo mais: uma ‘meditação’ falada, de alto nível técnico e dramático e, ao mesmo tempo, meticulosamente fiel à realidade qual havia sido”. Entusiasmado, o escritor propôs à RAI uma nova versão radiofônica, transmitida no dia 24 de abril de 1964. O texto, de autoria de Pieralberto Marchè e do próprio Levi foi transformado num drama, que estreou em 18 de novembro de 1966, sendo publicado, no mesmo ano pela Einaudi, segundo Domenico Scarpa.

[7] Crítico cinematográfico, roteirista e diretor, Ferrario (1956) é autor de documentários e filmes de ficção, dentre os quais Depois da meia-noite (Dopo mezzanotte, 2004), exibido também no Brasil.

[8] Docente universitário, escritor e crítico literário, Belpoliti (1954) organizou a edição dos dois volumes das obras completas de Primo Levi (1999 e 2016) e de outros textos do autor: Primo Levi: conversazioni e interviste 1963-1987 (1997), O último Natal de  guerra (L’ultimo Natale di guerra, 2002, contos); A assimetria e a vida (L’asimmetria e la vita: articoli e saggi 1955-1987, 2002) e Tutti i racconti (2005). É autor, também, de Primo Levi (1998), La prova: un viaggio nell’Est Europa sulle tracce di Primo Levi (2007), Da una tregua all’altra: Auschwitz-Torino sessant’anni dopo (2010), junto com Andrea Cortellessa e a colaboração de Davide Ferrario, Massimo Raffaeli e Lucia Sgueglia, Primo Levi: di fronte e di profilo (2015), dentre outros.

[9] Ao relembrar os dois regressos, dizia Levi, em 1984: “Em 1965, menos dramático do que possa parecer. Fui por causa de uma cerimônia comemorativa polonesa. Demasiado alarido, pouco recolhimento, tudo bem arrumado, fachadas limpas, muitos discursos oficiais…”. Em junho de 1982: “Éramos poucos, a emoção foi profunda. Vi, pela primeira vez, o monumento de Birkenau, que era um dos trinta e nove campos de Auschwitz, o das câmaras de gás. A estrada de ferro foi preservada. Um trilho enferrujado adentra o campo e termina à beira de uma espécie de vazio. Na frente, está um trem simbólico, feito de blocos de granito. Cada bloco traz o nome de uma nação” (depoimento citado por Giulio Nascimbeni). O documentário de Ferrario e Belpoliti data erroneamente de 1984 a segunda viagem.

[10] “Colcoz” ou “kolkhoz” (< kolletktivnoe [coletiva] + khozyaystvo [fazenda], 1918): propriedade rural coletiva, típica da ex-União Soviética, que se desenvolveu principalmente a partir de 1930.

[11] Não foi possível localizar a que obra pertence este trecho.

[12] A sigla BBPR é formada pelas iniciais dos sobrenomes dos quatro sócios do renomado escritório de arquitetura criado em 1932, em Milão: Gian Luigi Banfi, Belgiojoso, Enrico Peressutti e Ernesto Nathan Rogers. Em 1944, Belgiojoso e Banfi foram deportados para o campo de concentração de Mauthausen-Gusen, do qual só o primeiro regressou.

[13] Poeta, tradutor e cineasta, Nelo Risi era o irmão caçula do diretor Dino Risi. Dentre seus filmes, os curtas-metragens Il delitto Matteotti (1956) e I fratelli Rosselli (1959), além de Diário de uma esquizofrênica (Diario di una schizofrenica, 1968), exibido também no Brasil. Era casado com a escritora húngara Edith Bruck, uma sobrevivente de Auschwitz, para onde havia sido deportada aos doze anos de idade.

[14] A obra para coro, soprano e material eletroacústico, registrada em fita magnética, deriva da música composta para o oratório em onze cantos Die Ermittelung, escrita por Peter Weiss e encenada por Erwin Piscator em Berlim, em 1965. A peça aborda o processo realizado em Frankfurt, entre 20 de dezembro de 1963 e 20 de agosto de 1965, contra os nazistas responsáveis pelos massacres naquele campo de extermínio. A composição de Nono divide-se em três partes: “O canto da chegada a Auschwitz”, “O canto de Lili Tofler” (membro da Resistência, deportada e morta no lager) e “O canto da sobrevivência”.

[15] “A história da deportação e dos campos de extermínio, a história deste lugar não pode ser separada da história das tiranias fascistas na Europa. É uma velha sabedoria – e a respeito disso já havia nos avisado Heinrich Heiner, um judeu alemão –, quem queima livros, termina por queimar homens. A violência é uma semente que não se extingue. Havia crianças entre nós, muitas, e havia velhos no limiar da morte, mas fomos todos carregados feito mercadoria nos vagões e nosso destino, o destino de quem cruzava os portões de Auschwitz, foi o mesmo para todos. Visitante, observe os vestígios deste campo e medite. Não importa de que país você venha, você não é um estranho. Faça com que sua viagem não tenha sido em vão, que não tenha sido em vão nossa morte. Que as cinzas de Auschwitz sirvam de aviso a você e a seus filhos. Faça com que o horrível fruto do ódio, cujas marcas você viu aqui, não gere uma nova semente, nem hoje, nem nunca” (LEVI, 1980). Um texto enxuto, o qual, apesar da linguagem simples, coloquial, empregada pelo autor, revela “que sua palavra verbal é antes uma palavra escrita”, como escreveu Belpoliti no prefácio do livro por ele organizado em 1997.

[16] Dentre esses opositores, o mais conhecido no Brasil é Antonio Gramsci, que dispensa apresentações. Quanto aos demais, Filippo TURATI, editor da revista Critica sociale (1891), em que defendia a criação de um partido nos moldes da Social-Democracia alemã, foi um dos fundadores do Partido Socialista Italiano (PSI), em 1892. Depois da Primeira Guerra Mundial, chefiou a ala minoritária do PSI, de ideias reformistas, dando origem, em 1922, ao Partido Socialista Unificado (PSU). Em 1926, exilou-se na França, onde continuou sua luta antifascista ao lado do grupo Justiça e Liberdade; Giacomo MATTEOTTI, secretário-geral do PSU, ao denunciar a ilegalidade do regime de Benito Mussolini, foi sequestrado por um esquadrão fascista, em 10 de junho de 1924, sendo seu corpo encontrado no dia 16 de agosto. A morte de Matteotti marcou o início do recrudescimento da arbitrariedade e da violência do Fascismo; Carlo Alberto e Nello ROSSELLI, primos do escritor Alberto Moravia, foram assassinados, em 1937, na França, onde haviam se exilado, por cagoulards, a mando do serviço secreto italiano (a cagoule era uma organização terrorista de extrema-direita, ativa entre 1932 e 1940). Carlo, que estava entre os fundadores de Justiça e Liberdade e foi um dos editores da revista Quarto stato (1926), já havia sido confinado, entre 1927 e 1928, na ilha de Lípari (Sicília), e, em 1936, havia combatido na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos; Dom Giovanni MINZONI, pároco de Argenta (cidadezinha perto de Ferrara, na Emília-Romanha), integrou o Partido Popular e, por ter organizado os trabalhadores das redondezas, foi assassinado numa tocaia armada pelos fascistas, em 23 de agosto de 1923.

[17] Quando lançou A vida é bela (La vita è bella, 1997), Roberto Benigni foi acusado de revisionismo histórico por atribuir ao exército norte-americano a libertação de um campo de concentração, um campo qualquer, mas, que muitos espectadores, como o diretor Mario Monicelli, identificaram com Auschwitz.

[18] As expressões entre aspas foram extraídas da canção Dall’America (1970), de Sergio Bardotti e Sergio Endrigo.

[19] É interessante notar que, durante uma viagem aos Estados Unidos, em abril de 1985, para uma série de encontros e conferências em universidades, ao visitar Nova Iorque (além de Los Angeles, Bloomington e Boston), o Ground Zero foi um dos locais que mais chamou a atenção de Levi (1997b): “Em suas duas extremidades, Manhattan é cheia de orgulho e gigantesca. Os arranha-céus mais recentes são extraordinariamente bonitos, de uma beleza insolente, lírica e cínica. Desafiam o céu e, ao mesmo tempo, nos dias claros, o refletem em suas mil janelas na superfície das fachadas; à noite, resplandecem como dolomitas de luz. Sua verticalidade é fruto da especulação, mas exprime também outra coisa: é obra de engenho e ousadia, e encerra em si o impulso para o alto, que gerou na Europa, seiscentos anos antes, as catedrais góticas. […] Do topo do duplo World Trade Center, a vista é vertiginosa como a de um pico alpino: as paredes descem verticalmente por quatrocentos metros e, lá embaixo, veem-se veículos e pedestres fervilharem feito insetos frenéticos”.

[20] Como observou Belpoliti (em depoimento colhido por Cortellessa): “No livro de Levi, há três acepções do termo ‘trégua’, considerando também as notas da edição escolar de 1965, com as quais termina nosso filme. […] todo o período de andanças pela Europa” é “a trégua pessoal de Primo Levi, entre a libertação do lager – a chegada dos russos, portanto, a salvação – e a volta do pesadelo que vem visitá-lo. […] Portanto, a trégua pessoal, psicológica coincide com a trégua representada pela viagem. […] Depois, há uma segunda forma de entender a ‘trégua’ por parte de Levi: no sentido histórico. Quando o livro foi escrito, no início dos anos 1960, a Guerra Fria estava no auge. Logo naquele momento, ele tem a oportunidade de contar o mundo desconhecido que se encontra atrás da Cortina de Ferro, mesmo retroagindo a 1945. Não o mundo dos russos, mas o dos soviéticos, com uma colocação histórica precisa. E tem a sensação de que, entre 1945, quando termina a guerra com o nazifascismo, e o início da fase mais ‘quente’ da Guerra Fria, houve de fato uma longa ‘trégua’. Por fim, Levi lê a vida humana em seu conjunto como uma ‘trégua’ do ponto de vista biológico. Porque nós viemos do nada e vamos para o nada”.

[21] Segundo Belpoliti (no mesmo depoimento citado na nota anterior): “nossa viagem cruza lugares e tempos nos quais ainda se vive numa espécie de trégua. Se você for à Polônia, à Ucrânia, à Bielorrússia, à Moldávia, não espera que possa haver um atentado de fundamentalistas islâmicos, de uma hora para outra. Estão na retaguarda do Ocidente. De nossa parte, portanto, estávamos no lugar de Levi: o de olhar para trás, para um momento de trégua, quando já estávamos de novo, em guerra. Escolhemos contar a guerra, passada ou presente, num negativo: a partir da Guerra”. Em fevereiro de 2022, a invasão da Ucrânia pelas tropas russas pôs fim à trégua naquele país e levou inquietação às nações que Belpoliti arrolou entre as que estão “na retaguarda do Ocidente”.

[22] Leitura à luz do significado de labirinto segundo Chevalier e Gheerbrant.

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