Celebrando a reforma agrária

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Por JOÃO PEDRO STEDILE*

Discurso na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul ao receber a Medalha Farroupilha

Companheiros e companheiras deputados, parlamentares, companheiros e companheiras do Poder Judiciário, aqui posso chamá-los de companheiros. Companheiros que atuam nas esferas do poder executivo municipal, estadual e federal, que pude reconhecer e abraçar. Diversos companheiros e companheiras, estamos todos aqui celebrando a reforma agrária. Como já foi dito, e estou apenas reconhecendo, a medalha não é para mim, nem para meus méritos. Se houve a medalha, é para o MST. Apenas me tocou essa tarefa de emprestar o peito, assim como em outros momentos tivemos que às vezes carregar um caixão ou, em tempos de alegria, ajudar a receber os títulos de reforma agrária.

O MST é o herdeiro de lutas históricas do nosso povo. Tampouco os militantes do MST devem vangloriar-se por si só, porque nós somos herdeiros apenas que nos tocou nesse tempo histórico. E quero abusar para trazer à consideração de vocês algumas reflexões sobre o significado dessa luta histórica por ver a terra dividida. Desde os tempos imemoriais até 1756 – foram milhares de anos – viviam em nosso território os Guaranis, os Charrua, os Xokleng, os Kaigang, e tinham a terra como bem comum. Não havia propriedade privada, nem cercas, nem exploração.

Mas a metrópole europeia da monarquia espanhola e portuguesa, abençoada pelo Vaticano, invadiu esse território e promoveu a chamada Guerra Guaranítica, massacrou aqueles povos. Em troca da Colônia de Sacramento, que era dos portugueses e passou a ser espanhola, lá no Uruguai, milhares de pessoas foram assassinadas. Outras migraram para Missiones e para o Paraguai. E seu líder, Sepe Tirajuo, nosso padroeiro até hoje, morreu em combate no dia 7 de fevereiro de 1756. E assim, sobre a força do canhão, nasceu nesse território o latifúndio agropastoril, que em seguida implantou a propriedade privada e introduziu o trabalho escravo em muitas atividades e, sobretudo, nas charqueadas.

De 1835 a 1845, muitos trabalhadores negros escravizados foram envolvidos na Guerra dos Farrapos com a promessa de liberdade e de terra. Porém, os líderes farrapos os traíram. O principal batalhão dos negros, os Lanceiros Negros, foi entregue às forças imperiais e todos eles foram massacrados. Mais tarde, de 1864 a 1870, de novo nosso povo se viu envolvido com a Guerra do Paraguai, que só interessava ao império inglês. Muitos trabalhadores pobres, de novo sem terras, negros foram envolvidos, iludidos com a promessa do Duque de Caxias de terra e liberdade. De novo foram traídos.

Com a insustentabilidade da escravidão provocada pelo capitalismo, não por ideal, o governo do Imperador Dom Pedro I motivou então que milhares de camponeses pobres viessem da Europa substituir o trabalho escravo e produzir alimentos. Lá estava o meu bisavô e certamente o bisavô de tantos que eu tô vendo aqui, os Brizola, os Estival e metade do nosso Rio Grande. Sabe-se que houve inúmeras revoltas dos colonos na defesa dos seus direitos e por promessas não cumpridas pelo Imperador. Infelizmente, a história oficial não as registrou.

Ficou registrada a revolta na colônia alemã, liderada por uma mulher religiosa que deu o nome de Revolta dos Muckers, aqui na região de Sebastião do Caí. Porém, muitas outras revoltas houve, inclusive na terra do meu bisavô, lá em Antônio Prado, que tiveram que vir em marcha aqui no Palácio Piratini para conseguir o direito ao título. E um procurador da época garantiu ao padre que liderava os colonos que haveria o título de terra, e então ilusoriamente os colonos deram o nome do seu território de Antônio Prado, em homenagem a esse cidadão, que pelo menos pela primeira vez cumpriu a promessa.

Em 1924, lá nas Missões, estávamos daqui só eu e o Porta Nova (risos). Em 1924, de novo, soldados gaúchos, liderados pelo Tenente Portela e pelo Capitão Prestes, se levantaram em armas e partiram rumo ao Rio de Janeiro. Eram centenas e a história esconde, né, Porta Nova? 80 mulheres combatentes saíram migrando. Lutavam por quê? Por liberdade, por igualdade e pelo direito ao voto igualitário naquela época. Percorreram 27.000 km numa epopeia que ficou registrada.

Deram muitos combates às oligarquias rurais que foram se encontrando, suas milícias daquela época, e foram vitoriosos até que, por aquelas condições políticas, se asilaram todos na Bolívia. Mas ficou o exemplo da Coluna Prestes, que nesse ano celebramos 100 anos da saída de Santo Ângelo e São Luiz Gonzaga. Muita gente que veste a farda e que se acha nacionalista deveria reler o que foi a Coluna Prestes para o Rio Grande do Sul e para o Brasil. Não diriam tantas bobagens como andam dizendo e nem cometeriam tantos atropelos como tentaram fazer nos últimos tempos.

Veio a industrialização a partir da década de 1930 com a famosa Revolução de 30, da qual emergiu uma burguesia industrial. Mas, ao contrário do que havia feito a burguesia industrial dos Estados Unidos e da Europa, que fez a reforma agrária clássica em seus países, aqui a burguesia industrial não fez reforma agrária. Preferiu subordinar os camponeses no modelo que até hoje chamamos de integração à agroindústria.

O século XX, então, na ausência de uma reforma agrária ainda que clássica, foi dominado pelo latifúndio agropecuário na fronteira sul, que nos condenou aos piores índices de desenvolvimento humano até hoje. E o norte industrializado, porém com um campesinato subordinado aos interesses da burguesia industrial.

Foi então que na década de 1960 eclodiu a primeira crise do capitalismo industrial e, no bojo daquela crise, vieram as lutas de massa que produziam no Rio Grande do Sul o primeiro governo popular e de esquerda do nosso companheiro Leonel Brizola. Na minha modesta opinião, até hoje foi o principal governo popular e de esquerda que nós tivemos no estado, porque quando esteve Olívio Dutra era em outras condições no país. Leonel Brizola, então, retomou a ideia da necessidade de uma reforma agrária clássica.

Criou o Instituto Gaúcho de Reforma Agrária, inédito. Criou uma lei de terras no Estado e botou em prática desapropriando as primeiras fazendas. Uma delas histórica, da qual aqui alguns militantes do MST como meu companheiro Vedovato, é filho dessa desapropriação, que foi a Fazenda Sarandi, que tinha 24.000 hectares de um capitalista uruguaio chamado Mailios e que só se dedicavam a madeira e a erva-mate.

Pois o velho Brizola foi lá e desapropriou e entregou pros camponeses da época na década de 60. Na época, o Brizola tinha como assessor na Casa Civil, secretário da Casa Civil, um grande camarada – infelizmente a esquerda se esquece rápido dos seus ícones – que foi Paulo Schilling, um alemão teimoso, sabido, estudioso. Paulo era intelectual do governo Brizola que desenhou essas medidas da reforma agrária clássica daquela época. E eu cito como uma forma de homenageá-lo, porque nem sempre a gente se lembra daqueles que deram lutas heroicas para fazer com que a reforma agrária saísse do papel.

Brizola e o PTB da época tinham uma visão correta da luta de classe e sabiam que a reforma agrária não podia ser apenas um instrumento do estado, do governo, e por isso, de alguma forma, estimularam durante todo aquele período a organização dos camponeses pobres, que se materializou no Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra Gaúchos), que são os nossos avós.

Lá do Master resultaram muitos líderes. Alguns pagaram com a vida e outros tiveram que ir para o exílio, se esconder, como o Jair Calixto, o João Sem Terra e a família Muller de Encruzilhada do Sul. Infelizmente, nem o MST sabe valorizar esses que foram os nossos antecessores. Sem eles, nós não estaríamos aqui. O pobre do João Sem Terra de Rolante marcou os 20 anos de perseguição com outro nome, virou açougueiro em Goiás até que os ventos da democratização o trouxessem de volta.

Bem, veio a ditadura, um regime empresarial-militar patrocinado pelo governo dos Estados Unidos e seus capitalistas. Aliás, dialogando com a conjuntura, um artigo muito sábio: o golpe de janeiro só não deu certo porque não interessava naquele momento aos capitalistas dos Estados Unidos. Senão, eles teriam financiado muito mais do que o dinheirinho do agronegócio. Fomos salvos.

Bem, então, naquele regime militar, houve uma concentração do capitalismo industrial, a concentração da terra, a modernização do campo de uma maneira conservadora, como muitos depois estudaram na academia. Mas aqui o principal era entender que, durante os 20 anos de ditadura, só sobraram duas saídas: exportá-los para a Amazônia nos projetos de colonização ou enviá-los para serem operários baratos nas fábricas. Essa foi a sina que nos tocou durante 20 anos.

Porém, como a dialética nos ensina, na década de 1980 eclode uma nova crise do sistema capitalista industrial, que fragilizou então o processo de acumulação de capital, o desenvolvimento, e gerou a eclosão de novas lutas de massa. Surgiram as greves, os movimentos operários. Daí nasce a liderança do Lula, como ele mesmo reconhece. Sem as lutas de massa, não haveria Lula, nem o Olívio Dutra aqui dos bancários. E com essas mobilizações populares é que nós conseguimos derrotar a ditadura.

Enquanto isso, nesse processo de transição da fragilidade da ditadura e da eclosão das lutas também no meio rural, aqui no Rio Grande nós tivemos a retomada das ocupações de terra e o famoso acampamento da Encruzilhada Natalina, que muitos daqui participaram e devem se lembrar. A ditadura, já nos seus suspiros finais, manda o Coronel Curió intervir no acampamento com força militar total. Mas a nossa turma resistiu durante 45 dias e, ao final, como se diz no popular, ele botou o rabo no meio das pernas e teve que voltar ao Bico do Papagaio. E no acampamento ecoou um grito: “Em terra de quero-quero Curió não pia!”.

Foi assim que então derrotamos a ditadura. Os camponeses perderam o medo e se propagou por todo o país aquela chispa da retomada das ocupações de terra. Não é exibimento, é homenagem aos que fizeram. Nesses 40 anos, nós ocupamos 4.556 latifúndios.

Claro, como de novo explica a dialética, as forças do capital, do atraso, da oligarquia também se rearticularam. Foi aí que surgiu a UDR. Foi aí que muitos governos conservadores estaduais, comprometidos com as suas oligarquias que os financiavam, usavam a força pública para reprimir e, às vezes, abençoado pelas togas. E nós perdemos muitos companheiros, tivemos muita gente presa, houve muitos despejos, além das CPIs.

Nesses 40 anos de tantas lutas, queremos homenagear também com essa medalha, tantos companheiros e companheiras que nós perdemos. Alguns assassinados, outros a vida os levou, porém lutaram a vida inteira pela reforma agrária. Quero aqui citar apenas alguns, como a companheira Roseli Nunes, que foi a primeira a ser assassinada lá em Sarandi, praticamente com uma criança de alguns meses no colo, que se salvou e hoje leva o nome de Sepe Tirajuo. Graças à solidariedade do povo cubano, ele se formou médico lá na ELAM (Escuela Latinoamericana de Medicina) em Cuba e deve estar atendendo por aí.

Faço essa homenagem a Cuba porque, nesses 40 anos, se formaram lá em Cuba pobres brasileiros, 1.080, 580 do MST. E fomos estudar em Cuba não porque queríamos aprender espanhol, alguns até rodavam várias vezes no espanhol, mas fomos estudar em Cuba porque até hoje as faculdades de medicina no Brasil só se destinam às elites. Que algum dia superaremos as cotas para não ser aqueles 10%, mas ser para o povo brasileiro nas universidades públicas, e os riquinhos que vão nas escolas privadas, que para isso que eles criaram.

Bem, lembro além da Roseli outros que nós perdemos ao longo desse tempo, não porque foram assassinados, mas porque lutaram a vida inteira pela reforma agrária, como o companheiro Zecão lá de Palmeiras. Não poderia deixar de citar a companheira Enid Backes, que foi da associação de sociólogos e nos ajudava. Vocês podem imaginar, uma formiguinha atômica? Era ela. Morreu ano passado com seus 90 e poucos anos e ainda andava fazendo discurso feminista popular. Grande Enid. Espero que o legado dela, de uma grande lutadora das causas do povo gaúcho, seja exemplo para toda essa nova geração de feministas que não pode se desligar das causas do povo, assim como nosso querido Adão Preto.

Foi nesse saguão que nós velamos o companheiro Adão Preto, de maneiras que nada mais simbólico do que também essa homenagem nesse espaço da casa do povo. Também quero lembrar o Toninho, lá de Nonoai, uma figuraça da frente de massa, que morreu agora há pouco e eu não pude ir me despedir, assim como não pude estar presente no falecimento do companheiro Itamar Siqueira.

Portanto, a medalha é para todos esses, desde Sepe Tirajuo até o Itamar. Enquanto seguia a cerimônia, eu estava olhando aqui como é que era o metal. Acho que eu vou dar uma de chinês e vamos reproduzir aos centenares para entregar uma dessas para cada um de vocês e aos familiares daqueles que partiram. Não sei se será considerado uma afronta ao parlamento, mas eu entendo que é uma maneira de realizar a homenagem que o parlamento quis fazer a todos os lutadores da reforma agrária.

Pois bem, o capitalismo não resolve os problemas do povo, só os agrava. Por isso, é da lógica do sistema capitalista a concentração da propriedade, o latifúndio, os crimes ambientais, porque o capital, lá no campo, também se alimenta da apropriação privada dos bens da natureza que deviam ser de todos. Foi assim que aprendemos, com a Rosa Luxemburgo, quando nos explicou como funciona a acumulação primitiva, em que os capitalistas se apropriam dos bens da natureza, que não são fruto do trabalho humano, mas que, ao se transformar em mercadoria, geram uma renda extraordinária fantástica que nenhuma fábrica garantiria para eles.

Mas mais do que o sucesso do capitalismo no campo, nosso território está sofrendo as consequências desse movimento do capital que transformou a nossa agricultura num deserto de soja, milho, algodão, cana-de-açúcar (mais ao norte) e pecuária bovina. São commodities, não são alimentos para o mercado interno, mas para alimentar essa sanha do capital. Aqui no Rio Grande, ainda tivemos o tabaco e o eucalipto, que contribuem para esse monocultivo.

Por outro lado, veja nos bons tempos da Conab: a Conab chegou a comprar 367 tipos diferentes de alimentos produzidos pela agricultura familiar, que vão para a mesa do povo brasileiro. Essa é a contraposição. Até quando aguentaremos que o capital só vai produzir commodities, só vai exaurir a natureza em detrimento do uso desses bens para a produção de alimentos para o nosso povo?

Aqui no Rio Grande, quantos gaúchos já morreram de câncer ou de outras enfermidades causadas pelos agrotóxicos? O nosso professor Pinheiro Machado, da UFRGS, se rebelou porque ele encontrou na pesquisa de tabaco que era a principal causa de suicídio. E ainda hoje, a região de tabaco do Rio Grande é a região do mundo que há mais suicídio entre os camponeses. Por quê? Porque os agrotóxicos têm consequências neurológicas, geram depressão e matam. Alguém fez algum levantamento? Alguém pediu para Bayer e Abas reparar o SUS do tratamento dos intoxicados?

Eu acho, Porta Nova, agora que tu tá mais livre das amarras da toga, que nós deveríamos começar um movimento a partir do Rio Grande para condenar a Bayer, porque foi ela que fez os venenos durante a Segunda Guerra que matou no campo de concentração a nossa querida Olga Benário.

Porque a gente diz: fazem homenagens a Olga Benário, nós temos vários assentamentos, fizemos cartazes e ninguém fala quem mandou matar. Ah, foi o Hitler. E com que gás e com que força? Não, nós temos que responsabilizar os capitalistas que se usam, como nós estamos vendo agora, das ideias da extrema direita para se manter no poder sem limites.

Bem, esse modelo espoliador nos impôs mudanças graves aqui no Rio Grande do Sul que ninguém quer comentar. Por que mesmo ocorrem com tanta frequência as secas e as enchentes? Pergunta para o Leonaldo que anda por aí, pergunta para os ambientalistas. Na base disso está o monocultivo, porque o monocultivo não é agricultura, ele destrói toda a biodiversidade. E a consequência foi que as chuvas foram levando as terras para os córregos e rios, e foi assoreando. E esses nossos rios que tinham vales de 20 e 30 metros, agora têm vales de 2 metros. Até navio tá encalhando aqui na Lagoa dos Patos e ninguém explica por quê. A causa principal está nas mudanças da legislação que diminuiu a margem de plantio de árvores na beira dos córregos e rios e está no monocultivo, que deixa parte do ano as terras livres e qualquer chuvinha vira um temporal.

Bem, quantos gaúchos foram atingidos por essas enchentes? E essas só na última enchente, vocês acompanharam. E nas últimas secas, o prejuízo da agricultura foi de 50 bilhões. Não teria sido melhor aplicar em alimentos? O governo federal trouxe, nós batemos palmas, 70 bilhões para liberar as enchentes. Alguma medida preventiva? Não é uma crítica ao governo Lula, antes que alguma companheirinha já me puxou a orelha aí. “João Pedro, para de falar mal do Lula.”

Eu disse a ela: não é um problema pessoal e nem de governo, é que o papel do movimento popular, se quiser ter moral, ele precisa indicar e ter autonomia para indicar os erros para o governo poder acertar, porque o governo é nosso. E se o governo continuar errando, errando, errando, nós vamos colher nas urnas.

Então, chamo a atenção: olhe, 70 bilhões de recursos públicos do povo brasileiro foram aplicados aqui no Rio Grande, necessários, mas quanto mesmo foi aplicado em medidas preventivas para plantar árvores, para resguardar o assoreamento dos rios, para mudar a legislação ambiental?

Terminando, quase companheiros, fico animado porque vocês estão prestando atenção. Nós também tivemos mudanças na reforma agrária no nosso programa. A reforma agrária clássica, que era o sonho do Celso Furtado, que era o sonho do Brizola, do Paulo Schilling, já é inviável. É inviável porque, na reforma agrária clássica, havia necessidade que a burguesia industrial fosse parceira, e ela não quis. Então, agora nós evoluímos para outra formulação programática que nós chamamos de reforma agrária popular.

Ou seja, é uma forma agrária que necessariamente tem que atender os interesses de todo o povo. Não é mais uma reforma agrária camponesa, essa ficou de fato para o passado. A reforma agrária popular que nós defendemos altera os paradigmas e a nossa visão de mundo. Nós costumamos dizer agora já para os acampados e para os assentados: você tem que ser um bom agricultor para produzir alimentos, mas isso não basta. Você agora precisa ser também um zelador da natureza. A sociedade precisa te entregar uma terra para você cuidar da natureza e evitar as mudanças climáticas.

Por isso que nós incorporamos como um dos paradigmas a defesa da natureza, mas que não pode ser só retórica. Tem que se transformar em plano, em programa concreto de desmatamento zero, de um grande programa de reflorestamento, de instalação de viveiros, enfim, recuperar. O cientista Carlos Nobre não tem nada a ver com nós da esquerda, ele é tucano, mas é o cientista que participa com a ONU das análises do Brasil. Ele disse: não há como evitar as mudanças climáticas no Brasil se nós não recuperarmos 50 milhões de hectares degradados pelo capital. E o que o capital oferece para as mudanças climáticas? O crédito de carbono.

Vocês sabem o que é o crédito de carbono? Eles pegam as florestas que já existem, emitem um título igual a esse que vocês me deram aí, registram em cartório e um capitalista daqui vai lá na Europa e vende para outro capitalista. Briga de capitalista. E o que mudou na natureza? Nada. A floresta continua a mesma e a indústria da Europa continua poluindo igual. Essa é a solução dos capitalistas para as mudanças climáticas. Santa paciência. Depois de tantos anos, os capitalistas, além de espoliadores, viraram ignorantes. Depois da Segunda Guerra, eles eram progressistas, agora viraram ignorantes. Por isso que ficam financiando a extrema direita em vários países do mundo.

Então, nós incorporamos o debate da natureza, incorporamos a necessidade de produzir alimentos para todo o povo na forma da agroecologia. Sem agroecologia, não é possível você produzir alimentos sem agrotóxico em escala. E para você desenvolver a agroecologia em escala, que o nosso deputado Marcão estava me cochichando aí, quero saber como é que eu boto uma fábrica dessas lá no meu município.

Daí tá sonhando em ser prefeito, né? Para desenvolver de forma massiva a agroecologia, nós temos que resolver o problema das sementes. Agricultor sem semente não vai produzir agroecologia. Nós temos que resolver o problema do fertilizante orgânico. Nós temos que resolver o problema das máquinas agrícolas para os camponeses. No Brasil, tem oito fábricas de máquinas de cinco multinacionais. A única que não era muito multinacional, mas usava tecnologia alemã, era a Agrale, dos meus parentes lá de Caxias. Tá quebrada. Só sobraram as outras cinco multinacionais. Para quem que eles fazem máquina? Para o agronegócio, nas suas oito fábricas.

Nós fomos lá na China, levados pelo presidente Lula. Na China, tem 8.000 fábricas de máquinas. Praticamente em cada município tem uma fábrica de máquina. Aqui nós temos uma igreja. Não vale comparar, né? Tá bom, vamos continuar com as oito fábricas de máquinas que tem no Brasil. Então, o MST está fazendo esforço para trazer essa tecnologia chinesa de fabricar máquinas pequenas para o camponês, para poder resolver o problema da escala, de aumentar a produtividade do trabalho humano sem sacrifício e das áreas.

E a agroindústria, que sem agroindústria não é possível desenvolver o país, gerar emprego, gerar renda. Nós temos batido quase como um mantra, em homenagem às feministas que eu tô vendo aqui: se a gente não garantir renda para as mulheres assentadas, não há como combater o machismo. Vira retórica. E onde você vai garantir renda para as companheiras mulheres? Na agroindústria.

Nós não somos loucos, nenhuma delas sonha em ganhar uma enxada no dia de Natal, entenderam? Mas a agroindústria oferece oportunidades de trabalho digno, de outras profissões sem estar debaixo do sol ardente, e elas terão renda igual à do marido. Com isso, elas vão ter autonomia dentro de casa e ter soberania das suas ideias e dos seus projetos. Então, a agroindústria é emancipadora das ações humanas para jovens e para as companheiras.

Agora sim, vou terminar. Como vocês viram, procurei argumentar o tempo todo que essa medalha nem é minha, nem é do MST. Essa medalha que nos foi dada pelo Parlamento, e que depois me surpreendeu porque o nosso juiz aí não parava mais de ler as entidades da sociedade civil. Então, eu acho que nós fomos também, os parlamentares foram também aprovados pelas entidades da sociedade civil que reconhecem a importância dessa causa.

Então, a medalha é para todos os que lutaram pela terra e pelos direitos, desde o Sepe Tirajuo até o Itamar Siqueira, que nos deixou na semana passada. Todos esses são merecedores dessa medalha, porque o que nós estamos celebrando aqui é a luta, e a luta é social, é de massas. Ninguém luta sozinho.

Quero apelar, vi que os juízes também apelaram, para dois amigos do MST. O primeiro, Antonio Cândido. Antonio Cândido escreveu uma carta ao MST em abril de 2011 e deixou lá na escrivaninha dele. Só depois que ele morreu é que foi entregue pela neta. Ele escrevia à máquina Lettera 44 e no final da carta ele diz o seguinte, que eu quero compartilhar com vocês: “Na bravura do MST em sua luta histórica palpita o coração do Brasil.” Não é bonito?

Aos que nos acompanham lá fora, olhem o compromisso que Antonio Candido, maior crítico literário que nós temos, nos deu: nós temos que lutar para que o coração do povo brasileiro palpite e não se esmoreça. E termino apelando com outro amigo e apoiador do MST, que nós consideramos um militante da reforma agrária, além do Marcos Palmeira, que ontem no Fantástico fez uma homenagem especial, sobretudo porque ele é um produtor de agroecologia nos 40 hectares que ele tem lá no Rio de Janeiro. Mas o amigo do peito mais próximo que temos é o Chico Buarque.

E como foi dito aqui, durante aquela exposição do Terra, nós pedimos ao Chico: “Chico, faz uma música aí para o MST”. Era a ideia do Sebastião Salgado, o Saramago escreveu o texto das fotos e ele queria botar também som, queria botar cultura. Então fui eu lá falar com o Chico. “Chico, né, será que você podia fazer uma música, vai assim no livro?” E ele fez duas músicas fantásticas. Uma delas se chama “Assentamento”, e ele termina a canção com essa frase: “Quando eu morrer cansado de tantas guerras, morrerei de bem com minha terra.” Muito obrigado.

*João Pedro Stédile é membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Publicado originalmente no site VioMundo.


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