Por ANDRÉ RICARDO DIAS PINTO*
Comentário sobre o filme dirigido por Kiyoshi Kurosawa, em exibição nos cinemas
1.
Em Cloud – nuvem de vingança, o diretor Kiyoshi Kurosawa, premiado por outras realizações, como A cura (1997) e Creepy (2016), se desdobra entre a lógica social de um tempo, o nosso, e os resquícios morais de um tempo morto, outrora sinônimo de uma moral milenar fruto da confluência das diversas filosofias asiáticas, que configurariam uma genuína filosofia prática da virtude.
Kiyoshi Kurosawa ficou conhecido pelos componentes de terror e suspense presentes em seus trabalhos. Mas em Cloud, o real não permite que o terror e a lógica do suspense se realizem plenamente – o que desapontará os entusiastas por ações espetacularizadas e plot twists de tirar o fôlego. Tudo o que se verá não guarda os efeitos persecutórios e surpreendentes daqueles gêneros, pois, hoje não haveria espaço para qualquer irrupção, mas somente a repetição do mesmo.
Neste cenário, o tempo da degradação moral do capitalismo tardio em sua nova face fantasmagórica nos moldes da virtualidade econômica e social, dá face a partir do locus da sociedade japonesa contemporânea, tal qual em qualquer parte deste mundo, apodrecida entre as relações sociais nefastas exigidas pela atual fase do neoliberalismo e o resquício de uma ética milenar marcada pelo coletivismo e por um profundo respeito, caracterizado por níveis veneráveis para com o outro.
Porém, este último tempo surge apenas enquanto alegoria de uma memória moral e ética, relembrada por um dos seus personagens em um arfar de segundos.
2.
A narrativa central de Cloud gira em torno de um protagonista, o jovem Ryosuke Yoshii, trabalhador proletarizado que utiliza as suas horas de descanso e lazer para se dedicar a outra forma de trabalho, afeita à ideia do enriquecimento fácil e rápido proporcionado por toda sorte de artifícios e mecanismos virtuais do “mercado morto”, para fazermos aqui um paralelo com o conceito de “trabalho morto” no pensamento marxista.
Se o trabalho morto é a própria mercadoria, opaca e alienada de qualquer sentido, o mercado morto poderia significar o espaço virtual fictício que amplia a exploração humana em dimensões inimagináveis. Neste cenário, Yoshii se dedica à revenda de produtos adquiridos em grande escala em vistas à sua comercialização virtual, orientado pela lógica da revenda praticada sob precificação abusiva, um crime passível de prisão pela legislação do país. À prática da rentabilização predatória, soma-se a origem duvidosa dos produtos por ele comercializados.
Em suma: Yoshii é um estelionatário, responsável pela ruína de outros oportunistas em busca do mesmo ilícito e de pessoas honestas que são vítimas da exploração impingida pelo personagem em momentos de vulnerabilidade. A prática, em si, não é novidade alguma na lógica do mercado. Entretanto, as configurações atuais desta prática envolvem camadas do processo de subjetivação do indivíduo contemporâneo pautada por elementos típicos das relações sociais virtualizadas.
É aqui que encontramos o núcleo do problema apresentado por Kiyoshi Kurosawa: a virtualização é suporte para a covardia, a mentira, a completa insensibilidade sob um semblante cinicamente pleno de caráter, um caráter falso, sustentado pela invisibilidade. Yoshii, de fato, não consegue projetar um outro por trás dos algoritmos mobilizados pelo comércio virtual.
Embora saiba que se trata de um ilícito, o personagem é alheio à presença humana em cada um de seus atos. Frio, calculista, porém ingênuo e crédulo, Yoshii é o empreendedor atual, empresário de si, oculto pela adoção de um duplo, um nome fictício utilizado como perfil de vendedor, na busca de forma obstinada e viciante por uma ascensão econômica que pode ser assassina e suicida.
Em determinado momento, Yoshii abandona o seu emprego proletarizado para se dedicar integralmente ao negócio. Faz dívidas, sai de um minúsculo apartamento de subúrbio e muda-se, junto à namorada, para uma vila habitada por emergentes que estão alterando a vida local a reboque da especulação econômica incômoda aos nativos. Ainda, o protagonista contrata um garoto local como ajudante – sem imaginar o significado que este viria a ter em sua vida.
Mas esta virada em sua forma de vida atrai uma reação em cadeia contra si. Alheio à sua própria presença no mundo virtual, Yoshii é alertado do fato pelo novo funcionário que, em um ato de desobediência, descobre o perfil virtual do patrão e faz uma varredura sobre este em mecanismos de pesquisa nas redes. O fato é que há uma comunidade virtual que reúne vítimas das práticas comerciais de Yoshii, cujos membros se dedicam a investigá-lo, em vistas a encontrá-lo e vingar os danos sofridos.
A partir de então, com a vida ameaçada, o personagem se vê em uma sucessão de traições e ataques que expõe a redoma de oportunismos na qual todos ali se encontram. A namorada, o ex-patrão, meia dúzia de vítimas desconhecidas, cumprem, cada qual, seus planos de ataque contra Yoshii – atiradores inexperientes, mas sem arroubos ou excitações, seus rostos são a expressão do esgotamento, desânimo e apreensão.
Absolutamente alienado de seus atos, o personagem trata de escapar da caçada movido mais pela necessidade de dar continuidade às suas práticas virtuais do que exatamente preservar a própria vida. Alguém inteiramente entregue não apenas à razão do enriquecimento, mas ao vício da recompensa oferecida pelo padrão de funcionamento dos jogos de azar.
3.
As razões que movem cada algoz de Yoshii refletem a personalidade de cada membro do grupo. São assassinos, estelionatários ou pessoas simples e aproveitadores ressentidos e covardes. Neste meio, o personagem do seu ex-patrão reflete um último lampejo ético e moral sobre os quais nos referimos inicialmente.
Surpreendentemente uma de suas vítimas, sob armamentos pesados e em pleno confronto com Yoshii, o homem velho e cansado, de arma em punho, decreta a falência ética do protagonista e transborda as suas próprias razões de ali estar. O personagem bem que houvera tentado regenerar o seu empregado oferecendo-lhe uma ascensão profissional, mas os limites do trabalho pautaram a recusa da oferta: Yoshii, assim como a sua geração, não quer se submeter a regras e patrões, porém, não movidos pela busca por uma vida plena.
Querem tão somente fazer parte dos mecanismos de exploração capitaneados por si e contra si mesmos. A profunda insensibilidade e o crédulo cinismo de Yoshii transbordam como alvo final daquele homem pasmado. Esta acusação moral, dita por uma frase curta em um cenário de violência iminente, pesa mais que o estampido das munições.
Sob este aspecto, resta o fim da unidade ética clássica oriental, não-finalística, milenar, características das éticas orientais em seus componentes morais, a honra, a fidelidade eletiva, oriundas e praticadas em suas várias origens e vertentes, pois há muito já se fez a tensão da cisão de qualquer unidade holística.
Para um povo orgulhoso de suas virtudes, Yoshii representa o tempo da queda de seus diversos paradigmas, seja da Omotenashi, a filosofia do cuidado para com o outro, à Ikigai, filosofia prática venerada até hoje, dita como sinônimo da vida longeva característica da sociedade japonesa. Tais orientações espirituais restam absolutamente ausentes na vida daqueles personagens, descrentes da humanidade e de qualquer transcendência, dedicados unicamente à autodestruição.
Face a estas ruínas, o espectador ainda se deparará com uma virada narrativa que dá sentido à presença do já citado jovem nativo contratado como ajudante por Yoshii. O que se pode dizer aqui é que Sano (Daiken Okudaira) incorpora algum resquício da prolatada honra feita mandamento em tantas filosofias orientais. Uma honra próxima aos preceitos do bom guerreiro, de ação finalística, pois devoto de um objetivo e de um mestre. Porém, no contexto neoliberal que esmaga quaisquer resquícios da ética entre os indivíduos, a lógica do capitalismo tardio engendra todas as formas de vida e ninguém escapará de ser objeto incessante da produção do lucro, nem mesmo este mestre.
*André Ricardo Dias Pinto é professor de filosofia da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Referência
Cloud: nuvem de vingança
Japão, 2024, 124 minutos.
Direção e roteiro: Kiyoshi Kurosawa.
Elenco: Masaki Suda, Kotone Furukawa, Daiken Okudaira.
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