Verniz de esquerda

Imagem: Luiz Armando Bagolin
image_pdf

Por FRONT*

Comentário sobre o artigo de Florence Carboni e Mário Maestri

Fomos surpreendidos pelo artigo A linguagem escravizada [https://aterraeredonda.com.br/a-linguagem-escravizada/] de autoria de Florence Carboni e Mário Maestri postado no site A Terra é Redonda em 4 de janeiro de 2021. O texto tem como ponto de partida o ato da jovem bancada negra recém empossada na Câmara de Vereadores de Porto Alegre que se recusou a levantar e cantar o hino do Rio Grande do Sul. Cobrados por uma das parlamentares da direita porto-alegrense pela atitude considerada desrespeitosa, o vereador Matheus Gomes (PSol), militante do movimento negro e antirracista, explicou que eles não tinham qualquer obrigação de respeitar um hino que exprimia ideias racistas e ainda desafiou a Câmara a debater o assunto e propor a modificação da letra do hino. A ação de Matheus Gomes e seus colegas rapidamente ganhou as redes com expressões de apoio da esquerda e da militância antirracista.

Não foi essa, porém, a visão de Mário Maestri e Florence Carboni. O texto escrito por eles pretende fazer algo pretensioso em poucas linhas: demonstrar que a caracterização do hino do Rio Grande do Sul como racista, especificamente o trecho “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo”, é uma imprecisão histórica ou, pelo menos, excede o sentido original do texto. A surpresa, no entanto, para além das poucas linhas, deve-se à fragilidade e à superficialidade do argumento levantado. O texto é simplório, o que é grave porque sabemos que os autores são respeitados e reconhecidos conhecedores da história do Rio Grande do Sul e intelectuais identificados com a esquerda e o marxismo. Além da pobreza de conteúdo, alertamos que o texto tem consequências políticas conservadoras recobertas com verniz de esquerda. Em tempos de dominância de um senso comum assentado em mentiras e distorções da história em benefício de um projeto político ultraliberal marcado pelo reforço do racismo, machismo e homofobia, não há espaço para superficialidades por parte daqueles que têm o compromisso com a análise da realidade.

A abertura do referido texto é a seguinte: “O Hino Rio-Grandense é Racista? Ou melhor, as estrofes que propõe “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo” são racistas? Em um primeiro grau, não. Em um segundo, podemos dizer que são classistas, e, apenas em um terceiro, racistas. Mas não racistas anti-negro, como sugeriu o vereador-historiador porto-alegrense negro, apenas eleito. Ao menos no sentido da emissão original do texto, diversa da eventual recepção atual pela comunidade rio-grandense, sobretudo negra”.

Apesar de contundentes, os argumentos estão longe de terem alguma objetividade. Vale a pena pensar em algumas das afirmativas desta passagem. O que significa dizer que um texto não é racista no primeiro grau, mas sim no terceiro? O que são os “graus” do texto? Não sabemos, pois a afirmação não conduz a nenhuma reflexão, é apenas uma afirmação. Em que sentido é possível separar o conteúdo classista do conteúdo racista que o termo “escravo” carrega? Isso seria válido para a tradição greco-romana? E mais, seria válido para o Brasil do século XIX? Do ponto de vista metodológico da análise proposta pelos autores, é possível afirmar que o texto não é racista apenas levando em conta a “emissão original do texto”?

Esperava-se que mais à frente estes pontos fossem desenvolvidos, mas o que se vê é um conjunto de afirmações sem demonstrações que têm como único objetivo desqualificar o sentido original do ato de protesto da bancada negra porto-alegrense.

Na sequência, o frágil argumento dos autores fica mais evidente: “Os “escravos”, na estrofe, não se referem a trabalhadores escravizados africanos ou crioulos. A letra foi desenvolvida no espaço da simbologia do século 19, tributária das representações da época sobre o mundo greco-romano. Como comprovam as estrofes retiradas do verso: “Entre nós/ reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos.”

Aqui há vários problemas. O primeiro deles é de ordem metodológica. A única evidência levantada por Florence Carboni e Mário Maestri para evidenciar seu argumento é a estrofe original do hino escrito na década de 1830. Isto sem qualquer problematização de seus possíveis sentidos, explícitos e implícitos. Os autores tomam acriticamente como verdade um argumento retórico da intelectualidade dos estancieiros do século XIX, que se utilizavam de referências da dita antiguidade clássica, como se isso esgotasse o conteúdo do hino rio-grandense.

Em segundo lugar, o argumento simplório passa por cima de qualquer contextualização histórica. Será plausível acreditar que no “espaço da simbologia do século 19” o conteúdo racial da escravidão brasileira poderia ser ignorado por qualquer intelectual que utilizasse o termo “escravo” num hino? Não seria ingenuidade ou má intenção fazer uma afirmação deste tipo apenas com o argumento de que na sequência a letra original faz menção à cultura greco-romana? Será que os estancieiros escravocratas gaúchos, ao compor seu hino, comportavam-se como Renascentistas italianos, talvez pela convivência com Garibaldi, e tinham em mente a Grécia antiga e não os trabalhadores à sua frente? Poderia-se esperar que este tipo de argumento viesse de intelectuais ligados à Nova Acrópole, mas não de acadêmicos marxistas. Como conhecedores da história, Carboni e Maestri deveriam ter a obrigação intelectual de considerar a influência da independência das treze colônias, da revolta negra no Haiti, da discussão abolicionista, dentre tantos outros fatores relevantes que imprimiram sentido ao termo “escravo” empregado na década de 1830 no Brasil. Como afirmou recentemente Tau Golin “Na cultura dominante do rio-grandense, como de resto do brasileiro, o conceito de escravo não conduz à categoria política, mas sim, devido às implicações sociais, culturais e históricas, à condição de ser de “cor negra”. Concreta e subjetivamente, portanto, o hino rio-grandense é racista!”.

Apesar de todas as evidências, Carboni e Maestri optam por uma interpretação simplória do hino. Pior, a superficialidade do argumento abre margem para a interpretação de que a cultura da classe dominante da província sul-riograndense no século 19 não era racista. Aqui, a separação entre a questão classista e questão racial que apareceu no início do texto pode ter consequências mais graves, tornando-se uma armadilha com repercussões reacionárias.

Além disso, os autores reduzem a história do hino à sua escrita original no século XIX e ignoram que o texto foi alterado posteriormente. É importante perceber que esta alteração tem implicações diretas sobre o trecho mencionado e sobre o tema do racismo. Justamente, ela suprimiu a estrofe “Entre nós/ reviva Atenas/ para assombro dos tiranos/ Sejamos gregos na glória/ e na virtude, romanos.” por ser considerada anacrônica. Deve-se perguntar: porque o trecho “Povo que não tem virtude/ Acaba por ser escravo” não foi também considerado anacrônico e excluído em 1966? Pode-se acreditar que o termo “escravo”, neste momento, ainda fosse entendido conforme a tradição greco-romana e não no sentido do escravismo colonial brasileiro?

O texto segue: “A enorme midiatização do ato do vereador Matheus Gomes, da bancada negra do PSol de Porto Alegre, deve-se possivelmente em boa parte ao preciosismo da denúncia. O fato de se ter mantido sentado quando tocaram o Hino do Rio-Grande do Sul deve ser vivamente aplaudido e apoiado, sobretudo como denúncia do regionalismo que corre solto no Sul e, ainda mais, por irritar a tal comandante Nádia. Não é uma Brastemp, mas …”

Por fim, já longe de qualquer pretensão explicativa, numa linguagem digna da nossa época em que prevalece a ridicularização como argumento, os autores fazem a seguinte exigência: “Certamente a bancada  do PSol terá o mesmo comportamento quando da execução do Hino Nacional, da Semana da Pátria e, sobretudo, quando das celebrações farroupilhas, rememoração de levante dos estancieiros escravistas rio-grandenses. E, em vez de ficarem elogiando os “lanceiros negros”, que aceitaram lutar pelos seus senhores, homenagearão finalmente aos milhares de quilombolas e negros ‘fujões’ da Era Farroupilha”.

Como não há preocupação em elucidar as dinâmicas contraditórias que ao mesmo tempo diferenciam e unem a esfera nacional e regional, os autores igualam processos. Mais triste ainda, não é o desconhecimento histórico que leva os autores a firmarem o argumento torpe que fere a memória de tantos mortos em batalhas pela traição da oligarquia gaúcha e do império na conhecida chacina de Porongos. O recrutamento feito com a promessa de liberdade é algo menor no contexto do século XIX? A aceitação por parte dos escravizados diante da possibilidade real de libertação os diminui historicamente? A história ideal não existe senhores, ela é sempre complexa, contraditória e impõe escolhas que de modo algum estão previamente fadadas à vitórias ou derrotas.  Isso de modo algum é oposto às demais formas de resistência, como os quilombos e a fuga. Talvez os autores possam revisitar os escritos de Marx sobre a Guerra de Secessão dos Estados Unidos (1861-1865) e ler em boas palavras o que o velho alemão pensava dos escravizados que atenderam ao chamado de Abraham Lincoln para lutar na guerra. É provável que confundam uma sofisticada análise materialista da história com “preciosismo da denúncia”.

A justeza da ação da bancada diante do hino não está contida nela mesma, seriam incontáveis as vezes em que muitos não se levantaram para entoar hinos ao longo da história. A justeza está em que este ato joga luz e é uma continuidade da luta e da memória dos homens e mulheres que eram fortes, aguerridos, bravos e com virtudes que não viviam na Grécia ou Roma antiga, elas e eles constituíam a força de trabalho de uma província do Brasil escravocrata do séc. XIX.

*Front – Instituto de Estudos Contemporâneos é um coletivo de militantes de movimentos populares e formadores do Rio Grande do Sul.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES