Por LUIZ MARQUES*
Abordar o poder com o construto da lealdade, afora não incorporar a dimensão classista dos afetos, reforça a concepção personalista da política
A ditadura militar autoproclama a virtude da “honra”; a ditadura burocrática esgrima a “eficiência”; a democracia formal propõe a “igualdade”; a democracia socialista celebra a “solidariedade”. Mas a mídia corporativa analisa a esfera do poder com o valor da “lealdade”, remanescente da época em que o cetro do soberano concentrava o Estado e, súditos, deviam ser leais e valorosos à majestade.
O hábito monarquista é mantido para a catalogação das manifestações de viés político em face da necroeconomia. Governantes que promovem privatizações a preços de compadre para a iniciativa privada são vistos como representantes da “modernização”. A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) é apenas um dos exemplos, em nada edificantes, da Terra brasilis.
Os cargos estatais servem às investidas contra os interesses públicos e as necessidades do povo, a vítima das “elites” ao longo da história. A realeza postiça precisa de “homens sem qualidades”, para reatualizar o título da obra de Robert Musil. O importante é a lealdade aos dez mandamentos do Consenso de Washington – acima do Brasil e de Deus. Os mandatários que rezam pela cartilha do neoliberalismo ganham um salvo conduto dos meios de comunicação para posar de “bons moços”.
Já nos regimes de pluralismo democrático a virtude exigida é a “tolerância”, que renuncia impedir alguns males para não suscitar óbices maiores. Vide saídas de fim do ano de detentos no semiaberto sem crime hediondo. Trata-se de um mal necessário para facilitar a reinserção social e evitar que as tensões nos presídios transbordem em atos de terrorismo nas ruas. Antes a condescendência era uma graça dada pelas autoridades, que podiam retirá-la quando lhes aprouvesse. Agora é um motivo para chantagear o medo e, indiretamente, chancelar milícias. Conforme se lê no romance O leopardo, de Tomasi di Lampedusa:“Algo deve mudar para que tudo fique igual”, nas palavras de um aristocrata diante da inevitabilidade da revolução burguesa na Itália. Melhor perder uns anéis do que os dedos.
Pedras da insatisfação
No alvorecer da Idade Moderna, John Locke escreve a famosa Carta sobre a tolerância (1685) para enfatizar o direito de fazer oposição ao governo, abrindo espaço para reivindicação em outras áreas. Voltaire, no Tratado sobre a tolerância (1763), argumenta que a intolerância religiosa não encontra abrigo na tradição judaica e clássica ou na doutrina evangélica. Apela à razão para amparar uma paz entre os católicos e os protestantes. O racionalismo ceva um otimismo em pleno campo de batalhas.
Sob o prisma teológico, tal significa a indulgência com a alteridade. Sob o ângulo político, é uma possibilidade para a divergência livre de represálias. A tolerância contém as agressões, favorece a discussão franca no relacionamento interindividual. Em conjunturas como a brasileira que mescla o fundamentalismo religioso e o autoritarismo neofascista com o totalitarismo da mercadoria, o vetor da tolerância chega a sinalizar a porta da utopia – uma sociedade sem preconceitos e sem estigmas.
Nos idos do século XIX, o liberalismo incorpora o valor. As críticas feitas à censura apoiam-se no princípio da tolerância identificada com o exercício da liberdade individual. O esgotamento dos predicados de sociabilidade acarretam um esvaziamento da civilidade, o que transmuta a Alemanha no palco dos horrores nazifascistas no século seguinte, que ensaiam um retorno. Então, o direito ao diálogo aberto e o pluralismo político são condenados ao ostracismo. A porta abre, mas à barbárie.
Na virada ao século XX, Friedrich Nietzsche expõe o ressentimento na cultura cristã-ocidental, em A genealogia da moral (1887). Denuncia a moralidade na raiz da questão. Max Scheler, em Sobre o ressentimento e o julgamento moral (1912), descobre pedras da insatisfação no caminho das classes sociais e dos movimentos políticos com as promessas não cumpridas pelos ideais do iluminismo. O igualitarismo republicano entre os desiguais esbarra nas rígidas e impenetráveis hierarquias – a dura realidade. A exclusão das decisões, a precarização da sobrevivência e as humilhações renovam os descontentamentos na consciência de cada um, e cobram alto preço pelo amargor nos ressentidos.
A tolerância repressiva
A extrema direita nutre o ódio para objetivos escusos e posiciona a intolerância no pódio. Os brutos também amam. Em vez de a emancipação, os extremistas adormecem os impulsos de liberação dos grupos oprimidos, absorvendo as contestações no âmbito do mercado. A engrenagem capitalista reage com uma “tolerância repressiva”.
O enquadramento dos embates eleitorais no estilo pergunta e resposta criminaliza os investimentos, para reverenciar o dogma liberal do “equilíbrio fiscal”. Há candidatos que aceitam o guizo, mas simulam bizarrices antissistêmicas para desviar a atenção. O inocente palhaço, de ontem, é o homem-rato que monetiza a idiotia hoje, roendo a vendetta e o próprio fígado no subterrâneo lesa-pátria das negociatas, do rentismo e das emendas milionárias.
O conflito persiste. Se, para progressistas a tolerância é essencial ao desenvolvimento das artes, das ciências e do pensamento; para tradicionalistas a tolerância com o “erro” ajuda na sua propagação. Os valores civilizatórios e a diversidade são desafiados pelas fake news que maquiam bandidos no coaching, com total desapego à “verdade”. O desespero alheio se converte em uma fonte de receitas na rede internética. O canibalismo capitalista engole o corpo social para metabolizar a acumulação distópica, enquanto algoritmos das Big Techs selecionam as próximas vítimas para o abatedouro.
A dominação e a subordinação, a hegemonia e a contra-hegemonia, o sistema de poder e as forças contrárias à ordem são referências teóricas para a compreensão do caos climático, socioeconômico e político-cultural no século XXI: um período marcado pelo sofrimento palestino na Faixa de Gaza. É urgente ressignificar os direitos humanos e esconjurar os fatores do obscurantismo em expansão no mapa-múndi, para organizar a nova gramática da fraternidade entre nações. A tolerância continua sendo uma revolução inacabada, à espera dos sujeitos da transformação e do tempo das cerejas.
Não há tolerância na dialética do capital e trabalho ou nas terceirizações para a hiperexploração das massas. Não há tolerância com povos originários e quilombos, negros e mulheres, LGBTQIA+ ou MTST. Tampouco há tolerância midiática com o contraditório, para investigar o entreguismo dos serviços básicos (água, gás, energia elétrica). Quem se pauta na regulação social está satisfeito. Os que querem romper a grade da desinformação, insatisfeitos. A democracia iliberal acolhe a marcha do capitalismo iliberal na superestrutura. A intolerância negacionista funda o Estado de exceção.
Os sonhos que me levas
Abordar o poder com o construto da lealdade, afora não incorporar a dimensão classista dos afetos, reforça a concepção personalista da política. Avalia-se o governante com base na valorização da: (i) Igualdade para democratizar relações de gênero e raça, garantir segurança, educação, cultura, saúde, moradia, prevenção de cataclismos e o ar que todos respiramos. Vade retro neocolonialistas. (ii) Solidariedade das instituições para implementar as políticas de reindustrialização sustentável e a justiça tributária, com a elevação dos níveis de felicidade e participação. Yuppies são mal-vindos.
Inspirada no Consenso de Washington, a direita e sua extrema é incapaz de propiciar dignidade ao conjunto da cidadania – tarefa para a esquerda guardiã do engajamento da comunidade. Como no poema Cavalgada, de Cecília Meireles: “Ouve, no tumulto sombrio, / passar a torrente fantástica! E, na luta da luz com as trevas, / todos os sonhos que me levas, / dize, ao menos, para onde vão”.
*Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.
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