Como Gertrudes ensina suas crianças

Mona Hatoum, Misbah, 2006-7
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Por VERA TERESA VALDEMARIN*

Apresentação do livro recém-traduzido de Johann Heinrich Pestalozzi

É em boa hora que a Sociedade Brasileira de História da Educação e a Editora da Unesp publicam uma obra canônica da educação, traduzindo do original alemão Como Gertrudes ensina suas crianças, de 1801, que transformou Johann Heinrich Pestalozzi, ainda em vida, na grande referência da pedagogia moderna. A remoção da dificuldade linguística que se interpunha aos leitores brasileiros contribuirá para a circulação do texto entre professores, estudantes e pesquisadores, mas também entre o grande público interessado nas questões educacionais e em suas potencialidades emancipatórias.

Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827) nasceu em Zurique, Suíça, numa família de fé protestante que tinha como ocupações principais a medicina e a religião. Aprendeu a ler, escrever e contar no âmbito familiar e deu continuidade aos estudos formais em escolas de boa reputação. Por volta dos dezoito anos, estudou Teologia, a fim de seguir a mesma carreira que o avô. Porém, a primeira tentativa nessa função não se mostrou satisfatória e ele fez estudos na área de Direito sem, no entanto, definir-se profissionalmente.

Em 1774, fixou residência em Neuhof para cuidar da propriedade familiar e envolveu-se pela primeira vez com a educação, criando uma escola que, além da instrução, oferecia atividades industriais e agrícolas para as crianças pobres e órfãs da região.

A escola funcionou por seis anos e revelou-se oportunidade para canalizar as ideias liberais e republicanas experimentadas no ambiente acadêmico, bem como o desejo de minorar o sofrimento humano, vivenciado por meio da atuação profissional do pai e do avô.

Embora acostumado à vida de pequenas posses, Pestalozzi não conseguiu evitar a falência desse empreendimento e, para garantir a sobrevivência familiar, escreveu um romance bucólico que, alcançando grande sucesso à época, teve continuidade em mais três volumes, entre 1781 e 1787. Trata-se de Leonardo e Gertrudes, no qual o tema da melhoria humana por meio da educação se manifesta em traços iniciais ao lado da descrição dos costumes, das dificuldades e dos valores das pessoas mais simples. Organizou, no mesmo período, na forma de livro, os estudos que fez sobre o desenvolvimento humano de acordo com os princípios da natureza (Meine Nachforschungen über den Gang der Natur in der Entwicklung des Menschengeschlechts), obra que não obteve a mesma repercussão que a anterior.

Nos anos seguintes, o tateamento profissional de Pestalozzi ganharia marcas e definições devido à guerra e suas consequências. É aos órfãos da guerra que passa a se dedicar, são os movimentos das batalhas que ora o desalojavam de suas escolas, ora o impeliam para a abertura de novos estabelecimentos e, por fim, a constituição dos estados nacionais explicitou a necessidade da criação de sistemas educativos para a escolarização popular e de práticas pedagógicas adequadas à nova ordem social, que impulsionaram a disseminação de suas ideias e do trabalho que realizou.

Em guerra contra a Áustria para expansão de seus domínios, o exército napoleônico invadiu o território onde hoje se localiza a Suíça e, vencedor, criou, em 1798, a República Helvética. Em 1799, Pestalozzi começou a atuar num convento abandonado em Stanz, cidade devastada pelos combates e pelo massacre da população insurgente pelas tropas francesas. Enfrentou ausência de recursos, condições precárias da edificação, desconfiança da população e a penúria intrínseca à vida e à saúde das crianças às quais se dedicava.

Essa experiência é descrita na célebre Carta de Stanz, de 1801, que abre a presente tradução brasileira. Considerado um patrimônio pedagógico, esse texto narra em tons dramáticos os conflitos que afetaram a escola, mas também o fortalecimento das convicções de Pestalozzi sobre as possibilidades da educação, desde que desenvolvida de modo diferente daquele então em uso.

Guiado por princípios nos quais se mesclam convicções de cunho religioso e filosófico sobre a natureza humana e amparado na observação diuturna das crianças, Pestalozzi delineou as bases de sua ação educativa. Tratava-se de desenvolver a aprendizagem sem a imposição arbitrária de conhecimentos e valores preestabelecidos, mas valendo-se das forças inerentes aos seres humanos desde a infância: a percepção, a atenção, a capacidade para formar juízos claros.

Os ensaios do autor quanto aos procedimentos e materiais a serem adotados na instrução reforçaram seus propósitos, apesar do crescimento das dúvidas sobre os caminhos mais viáveis para provocar o conhecimento duradouro e autônomo nas crianças. Em pouco tempo, cerca de seis meses, os resultados dessa experiência já podiam ser percebidos. Entretanto, foram interrompidos quando o convento foi requisitado para funcionar como hospital no atendimento aos feridos de guerra.

O reconhecimento do caráter inovador das propostas de Pestalozzi veio com o convite para trabalhar numa escola já existente em Burgdorf, onde permaneceu entre 1800 e 1804. Com a criação da república helvética, pensou-se num sistema educacional para atendimento da educação popular e as experiências por ele já realizadas mostravam-se promissoras para tal objetivo.

As pretensões do governo em Burgdorf eram grandes e abrangiam a criação de um seminário para a formação de professores, escola primária, pensionato e orfanato, isto é, atendimento tanto de crianças que podiam pagar pela escolarização quanto daquelas desprovidas de condições financeiras. Para objetivar tais pretensões, a proposta pedagógica a ser implementada em Burgdorf deveria ser sistematizada e estruturada em termos dos métodos, materiais e conteúdos a fim de que o trabalho pudesse ser amplamente difundido. Ficou acordado que parte da renda obtida com os escritos de Pestalozzi seria revertida para a manutenção da própria instituição.

Como Gertrudes ensina suas crianças é obra resultante desse acordo e, nela, Pestalozzi descreve os fundamentos que deveriam presidir a educação, os princípios estruturantes do método para ensinar, a organização do conteúdo escolar, os novos materiais criados para tal fim, a colaboração essencial de outros professores nessa empreitada, os resultados obtidos e a alegria que obtê-los provocava no autor.

O livro, publicado pela primeira vez em 1801, reúne catorze cartas dirigidas a Heinrich Gessner, um amigo incentivador de seu trabalho e importante editor, destinatário também da Carta de Stanz. O estilo epistolar produz uma impressão muito vívida do processo de construção de uma teoria da educação. Os objetivos de transformação social e diminuição das desigualdades conduzem todas as cartas; nos fundamentos filosóficos, percebem-se ressonâncias de Jean-Jacques Rousseau indicando possibilidades; os dilemas enfrentados para transformar princípios em procedimentos de ensino comportam ensaios e fracassos, mas expressam, sempre, confiança na capacidade humana para desenvolver-se, alimentando a perseverança do autor.

A grande ruptura provocada por Pestalozzi – fundamentar o ensino na intuição sensível e não na memorização – permeia, em maior ou menor grau, grande parte do texto, assim como a articulação entre o cultivo das faculdades perceptivas, a expressão linguística e o progresso do conhecimento nas crianças.

O autor explicita um sentido para o método de ensino que contraria a noção que o entende como conjunto de regras a serem aplicadas para a obtenção de determinados resultados; para ele, o método é um processo inventivo que estimula a elaboração de materiais e de novos procedimentos em resposta às necessidades dos alunos; envolve também a inversão, a alteração ou a seleção criteriosa do conteúdo a ser ensinado, ou seja, diz respeito a grandes mudanças culturais.

Emerge do texto a compreensão de que, se a pedagogia é atividade que deve ser instaurada na prática, a prática não é mecânica; ela é a tradução de um movimento que envolve tanto concepções abstratas quanto o acompanhamento dos efeitos produzidos no próprio indivíduo e nos outros. As cartas são, assim, uma espécie de diário de campo acompanhado de profundas reflexões.

Na descrição desse processo, Pestalozzi nomeia seus parceiros (muitos deles atuariam em outros países, tornando-se também divulgadores) e esclarece as circunstâncias da elaboração de obras complementares, como o ABC da intuição (1803) e o Livro das mães (1804). O conjunto das cartas permite ao leitor o contato com um Pestalozzi pensador, que formula justificativas para a constituição da escola primária que, por terem sido conformadas intrinsecamente, acabaram obscurecidas.

É surpreendente a difusão do trabalho de Pestalozzi, considerando-se as limitadas condições de comunicação de seu tempo. As notas do tradutor, Cauê Polla, informam sobre uma extensa rede de relações mencionadas nas cartas, que incluem autoridades e intelectuais com cujas ideias ou proposições o autor dialoga. Os impressos decorrentes de suas atividades, obviamente, contribuíram para despertar o interesse sobre a experiência que se desenvolvia em Burgdorf, criando um círculo de leitores atentos às inovações ali produzidas.

A presença de visitantes na instituição para conhecer in loco a nova organização também era frequente: estiveram em Burgdorf, entre outros, o filósofo Arthur Schopenhauer; Daniel Alexandre Chavannes, um dos primeiros divulgadores de Pestalozzi na França, e Johann Friedrich Herbart, pedagogo alemão que, simultaneamente, dedicava-se a teorizar a aprendizagem infantil numa perspectiva mais idealista. Pode-se dizer que as tentativas iniciadas em Neuhof e continuadas em Stanz, mesmo em condições muito adversas, foram amadurecidas, sistematizadas e disseminadas a partir de Burgdorf.

Pestalozzi deixou a instituição em 1804 em circunstâncias não muito claras, possivelmente relacionadas a conflitos administrativos decorrentes da tentativa de atender públicos muito diversos. Em 1805 começou a atuar na cidade de Yverdon, naquela que seria sua experiência mais duradoura, ali permanecendo até 1825.

Com a reputação de reformador já estabelecida, o fim das turbulências das guerras napoleônicas e uma estrutura escolar mais complexa que incluía edificações adequadas, muitos professores e diferentes níveis e modalidades de instrução (elementar, secundária, industrial, normal e educação para surdos-mudos), o Instituto Pestalozzi se tornou uma referência europeia em educação, para onde continuaram a acorrer visitantes, que descreviam entusiasticamente o que haviam observado. É desse período a segunda edição de Como Gertrudes ensina suas crianças (1820), entre muitos outros textos.

Nas décadas subsequentes, o projeto para a educação descrito nesta obra seminal foi tomado como sinônimo da pedagogia moderna, difundido em outros países e “adaptado às condições locais”, na expressão de seus adeptos. Essa adaptação, inerente à dinâmica de circulação do conhecimento, teve como foco prioritário a formação de professores, preparando-os para atuar na escola primária de acordo com o método pestalozziano.

A criação de sistemas educacionais organizados em escolas graduadas projetava a ampliação do atendimento às crianças, principalmente das classes populares, e a resposta à necessidade de padronizar procedimentos e conteúdos veio com a proliferação de manuais destinados a sintetizar brevemente os princípios formulados por Pestalozzi e apresentar modelos de lições a serem utilizados na sala de aula para desenvolvimento da percepção dos sentidos e da linguagem mediadas pelos objetos postos à observação infantil. A mudança de escala deslocou a ênfase dos princípios para as regras metodológicas, das ideias para os modos de uso, do método de Pestalozzi para o método pestalozziano.

Nos países de confissão protestante, a recepção do método pestalozziano foi mais positiva do que na França, onde Como Gertrudes ensina suas crianças só foi traduzido em 1882. Charles Mayo, pastor inglês que esteve no Instituto de Yverdon entre 1819 e 1822 para conhecer seu funcionamento, ao retornar dedicou-se à implantação do método em cursos de formação de professores, a partir de 1836. Elizabeth Mayo, sua irmã, elaborou manuais constituídos por modelos de lições que obtiveram grande circulação: Lessons on Shells, em 1838, e Lessons on Objects, as Given to Children between the Ages of Six and Eight, in a Pestalozzian School at Cheam, Surrey, que, em 1855, já havia alcançado a 14a. edição.

Nos Estados Unidos, os manuais de Edward A. Sheldon adaptaram as prescrições de Elizabeth Mayo às condições locais acrescidas de lições elaboradas por H. Krüsi, filho de um dos primeiros colaboradores de Pestalozzi em Burgdorf, contratado para atuar no condado de Oswego (Nova York): A Manual of Elementar Instruction, for the Use of Public and Private Schools and Normal Classes; Containing a Graduated Course of Object Lessons for Training the Senses and Developing the Faculties of Children, que, em 1862, estava na sexta edição.

No Brasil, a recepção ocorreu principalmente pela rota norte-americana; originário do mesmo sistema educacional da cidade de Oswego, o manual de Norman A. Calkins, Lições de coisas, foi traduzido no Brasil em 1886 por Rui Barbosa, a partir de sua quadragésima edição, e, após a proclamação da República, o método de ensino intuitivo tornou-se um dos símbolos da renovação pedagógica instaurada no estado de São Paulo. A prática da Escola Modelo era conduzida e ensinada por professoras que adquiriram experiência e formação nos Estados Unidos – Miss Marcia Browne e dona Maria Guilhermina Loureiro de Andrade – e divulgada nas páginas da revista A Eschola Publica.

Durante todo o século XIX, Pestalozzi foi a grande referência invocada para introduzir reformas educacionais mais próximas da experiência infantil, para justificar a adoção de objetos comuns como materiais didáticos e para basear a formação de professores num conjunto de saberes específicos: o desenvolvimento infantil, o conteúdo a ser ensinado e os meios para a condução do ensino.

No entanto, as prescrições para a prática pedagógica nos sistemas escolares, postas em circulação por meio de diferentes impressos, prevaleceram sobre o que se poderia denominar como o espírito do método descrito em Como Gertrudes ensina suas crianças. As críticas às regras metodológicas não tardaram e Charles Dickens foi um de seus porta-vozes, satirizando sua rigidez na figura de Mr. Thomas Gradgrind nas páginas de Tempos difíceis (1854).

Assim, a obra agora lançada no Brasil permite retomar o contato com as ideias de Pestalozzi sem a mediação de seus intérpretes e, por isso, a publicação torna-se tão relevante. O investimento na educação popular, o rompimento das desigualdades sociais, a força inventiva que deve presidir a ação pedagógica e os dilemas enfrentados pelos professores estão aqui apresentados com o drama e com as alegrias que lhe fazem companhia. A obra ainda desenha um campo de conhecimento – a pedagogia – a partir de seus elementos constitutivos e da dinâmica de seu funcionamento, que permanecem válidos e podem afiançar a manutenção de “razoáveis esperanças” no futuro.

Os limites históricos do pensamento de Pestalozzi – a mística religiosa e o conhecimento sobre a psicologia infantil – não invalidam a potência da educação que ele expressa na Carta 7: “Não desejo nem nunca desejei ensinar ao mundo nenhuma arte ou ciência – não conheço nenhuma –, mas desejei e desejo facilitar a aprendizagem do povo em relação aos elementos iniciais de todas as artes e ciências, despertar a força esquecida e embrutecida dos pobres e miseráveis da terra com o acesso à arte, que é o acesso à humanidade”.

Vera Teresa Valdemarin é professora do Departamento de Educação na Unesp-Araraquara. Autora, entre outros livros, de Histórias dos métodos e dos materiais de ensino: a escola nova e seus modos de uso (Cortez). [https://amzn.to/475U4f0]

Referência


Johann Heinrich Pestalozzi. Como Gertrudes ensina suas crianças. Tradução: Cauê Polla. São Paulo, Unesp, 2023, 260 págs. [https://amzn.to/3tNy0rb]


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