Por DIOGO FAGUNDES*
Considerações a partir de polêmicas entre membros do PCB e o PC do B
O problema das polêmicas de rede sociais é que elas costumam adquirir um tom fulanizado, que frequentemente encobre o essencial: o conteúdo político por trás das trocas de farpas verbais. Vejam o caso desta polêmica dentro do mundo do comunismo brasileiro digital, entre membros do PCB e Elias Jabbour. Parece que a origem do affair reside num texto, em tom polêmico e assertivo, o que é típico do seu estilo bastante próprio, do intelectual do PC do B, afirmando que o “programa máximo” da esquerda consistiria naquela lista do PT que causou polêmica na imprensa. Isto é, o nosso horizonte estratégico deveria ser a reversão de reformas liberais e a consolidação de uma política de indução econômica pelo Estado, retomando os aspectos mais desenvolvimentistas do segundo governo Lula.
Particularmente discordo dessa concepção, pois acredito que este deveria ser o programa mínimo de qualquer governo de esquerda. Se partimos do pressuposto que o máximo que queremos é algo tão limitado, provavelmente colheremos coisas bem menores, já que o máximo nunca é atingido.
De qualquer forma, “programa máximo” é sempre uma expressão que se refere não só a conjunturas particulares, mas a escalas temporais distintas. Por exemplo, se seguirmos à risca Marx, Engels e Lênin, nosso programa máximo sequer é a conquista do poder para socializar os meios de produção. Isto seria apenas uma transição para o comunismo avançado, no qual sequer há Estado como aparelho coercitivo externo à “sociedade civil” e o internacionalismo viceja acima das divisões nacionais, pois sequer há mercado capitalista e disputas inter-estatais.
Teríamos também o “trabalhador polimorfo” descrito em tons poéticos por Marx, superando os antagonismos essenciais da divisão do trabalho: campo e cidade; trabalho manual e intelectual. Evidentemente, no entanto, ninguém, a não ser agrupamentos de ultra-esquerda, realizam política tendo este horizonte último como objetivo próximo.
No caso do Elias Jabbour, penso que há sentido e coerência em ver no programa petista – que é provavelmente muito mais avançado do que pretende concretamente Lula – nosso horizonte, pois as coordenadas estratégicas que balizam sua visão não são as mesmas dos jovens intelectuais do PCB. Precisamos entender a política do PC do B em geral, e do Elias, em particular. Traços pessoais, características de personalidade e psicologia individual são, ao meu ver, totalmente insignificantes, se a intenção é travar uma polêmica de qualidade.
O objetivo máximo do PC do B, pelo menos para a etapa histórica em que vivemos, não é destruir o Estado burguês e combater o capitalismo brasileiro em sua totalidade, apenas suas partes “estragadas” – o parasitismo financeiro que impõe políticas de austeridade, baixo crescimento econômico, etc. Pelo contrário: nesta visão, o objetivo dos comunistas é defender a democracia e a “política” em abstrato (isto inclui inclusive defender políticos tradicionais e o parlamentarismo habitual) e os setores capitalistas nacionais mais desenvolvidos e importantes para o crescimento.
Isto soa muito esquisito numa primeira mirada, mas tem uma longa linhagem histórica, desde, ao menos, o movimento comunista da segunda metade do século passado. Desde os anos 1950, mas já com ensaios no período das frentes populares dos anos 1930 e nas políticas de união democrática-nacional nos anos 1940, interrompidas pelo momento mais duro da Guerra Fria no imediato pós-guerra, os partidos comunistas que reivindicam a herança da III Internacional e o alinhamento com a União Soviética, em geral, seguiram um caminho reformista, mesmo quando a revolução era mantida no vocabulário.
A estratégia dos PCs ocidentais, em geral, não era a de acumular forças para um embate antagônico entre capitalismo e socialismo, mas de aproveitar as inéditas liberdades democráticas para criar uma “democracia avançada” (no vocabulário do PC francês, por exemplo) e fazer o “capitalismo monopolista de Estado” francês (lembremos que neste período até a indústria automobilística era estatal) virar uma espécie de socialismo, bastando mudar sua coloração e seu conteúdo de classe, ou fazer “reformas estruturais” (no linguajar do PC italiano, o maior, mais relevante e influente) mas dentro de um quadro político consensual, estabelecido pela Constituição.
É por isto que uma hora ou outra todos estes partidos tiveram que revisar elementos fundamentais da visão clássica sobre a transição socialista, para adaptá-las ao contexto no qual a democracia burguesa se tornara um marco intransponível. Não à toa, conceitos clássicos como “ditadura do proletariado” passaram a ser vistos mais como problema, a ser escondido ou simplesmente jogado fora, do que solução.
No Brasil não foi diferente, com a particularidade de que aqui a democracia era muito mais limitada, excluindo de antemão a possibilidade de qualquer vitória eleitoral dos comunistas, além de o capitalismo ter aspectos arcaicos (lidos como “semi-feudais” e “semi-coloniais”, no léxico das formulações da III Internacional e da Revolução chinesa) que induziam à hipótese de que, no caso brasileiro, o capitalismo não era problema, mas algo a ser desenvolvido e defendido.
Estas duas características condicionaram os comunistas pátrios a serem uma espécie de ala esquerda do nacional-desenvolvimentismo e das correntes ditas populistas, tanto no movimento sindical quanto na política em geral, o que influenciou inclusive na visão sobre o Estado e o capitalismo nacional. Não é aleatório que Jabbour utilize de Ignácio Rangel, um intelectual do ISEB, o núcleo do pensamento nacional-desenvolvimentista brasileiro, para formular sua visão sobre socialismo, nem que Celso Furtado tenha sido por tantos anos, e até hoje, a grande referência do pensamento de esquerda na economia.
Exagero? Leiam o documento de março de 1958, o mais importante para entender a orientação do PCB no seu período de maior influência social e política. Até a aliança com setores dos latifundiários não subordinados à política dos EUA é colocada como possibilidade, já que o objetivo era combater o imperialismo, em especial o norte-americano, e os setores mais atrasados da propriedade fundiária, para, enfim, haver desenvolvimento capitalista progressivo.
A ironia histórica é que o PC do B, que nasceu como cisão combatendo esta linha política, lida como direitista, hoje é o mais fiel representante desta subjetividade típica do que eu chamaria de “comunismo reformista” dos PCs após a Segunda Guerra. Mas não é o único: há inúmeros, inclusive pessoas extremamente valorosas, valentes e justas (como eu disse, não é uma questão de valoração pessoal), nos mais diversos movimentos sociais e partidos de esquerda. Trata-se de um tipo subjetivo muito característico, predominante na história real dessa corrente política.
Diria que o “comunista reformista” se guia por dois axiomas: “a ampliação de alianças é sempre melhor que o isolamento” e “o caminho para o socialismo é desenvolvimento econômico conduzido por um Estado democrático de direito”. Ambos muito lógicos e coerentes para quem lutava por democracia (num contexto de extrema repressão dirigida pela ditadura militar) e desenvolvimento do capitalismo “bom” (gerador de renda, mercado interno e investimentos produtivos) contra os elementos mais atrasados da sociedade brasileira.
Quem pretende, de verdade, acertar contas com este passado, acaba necessariamente por tratar o “comunista reformista” como obstáculo, o que também torna lógicas as críticas ao Elias Jabbour. Foi exatamente isto que fez Luiz Carlos Prestes, na sua famosa “Carta aos Comunistas”, passando a limpo de forma dura toda a história do partido do qual foi tanto tempo o líder máximo, ou o que faz o PCB refundado após o liquidacionismo de seus elementos mais oportunistas no final da Guerra Fria.
Na verdade, já o PT fazia isto, ainda que de forma parcial, na tal estratégia “democrática-popular” do famoso V Encontro de 1987, supostamente superando a experiência de derrota do comunismo brasileiro. No entanto, historicamente o partido não fez algo muito diferente do que repetir os hábitos e cacoetes do velho Partidão, num contexto ideológico, cultural e político muito diferentes.
Escrevo tudo isto para tentar contribuir à demarcação precisa e justa das linhas de contato, mas também das zonas de fricção entre aqueles que reivindicam a tradição comunista brasileira. Se o combate ao inimigo principal nos une, isto é, o combate ao liberalismo (que nada mais é do que é a ideologia espontânea do capitalismo liberado de suas amarras coletivas e sociais), no momento hegemonizado por uma corrente de viés neofascista, é preciso deixar claro que embates ideológicos vão e devem ocorrer entre quem acredita que o renascimento do comunismo implica uma ruptura com o “comunismo reformista” clássico – o que implica uma revalorização dos aspectos mais radicais do marxismo que foram deixados de lado no século passado – e quem é fiel a uma continuidade aos parâmetros clássicos da esquerda brasileira.
Resumindo. Em comum, o combate ao liberalismo (incluindo os social-liberais bem fortes, na verdade hegemônicos, dentro da esquerda); em disputa e tensão permanente, os princípios estratégicos (se devemos considerar a revolução e a transição ao comunismo um objetivo concreto, da nossa época, ou não). Eis a marca traçada pelo risco do giz. E que vençam os melhores – os mais aptos a liderar e conduzir demandas históricas do proletariado brasileiro.
*Diogo Fagundes é graduando em direito na USP.