Conhecimento prático-operatório

Imagem: Matthias Cooper
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Por HENRIQUE PEREIRA BRAGA*

Comentários sobra as recentes mudanças nos currículos de ciências econômicas

Em matéria publicada no jornal Valor econômico são relatadas as reformas curriculares em cursos de graduação em ciências econômicas, conduzidas por algumas das instituições mais tradicionais no ensino de economia no país.[i] Com o propósito de atrair os jovens, essas instituições de ensino flexibilizaram a grade curricular, ampliando o número de disciplinas optativas; concentraram o ensino da “teoria econômica” nos primeiros dois anos do curso; e inseriram, cada qual a seu modo, disciplinas relacionadas à análise de dados por meio da tecnologia conhecida como “Big Data”. Celebrada com jubilo pelo jornal, por sua suposta adequação às necessidades do mercado, essas medidas parecem revelar, em nosso juízo, a tecnificação do curso de “ciências econômicas”.

Ao concentrarem as disciplinas “teóricas”, que compreendiam três (ou quatro) anos de estudos, nos primeiros dois anos do curso de graduação, o seu ensino ficou comprometido, para dizer o mínimo, haja vista que não é possível operar essa redução sem alterar os escopos e os conteúdos das disciplinas. Neste sentido, o espaço para crítica (quando existente) fica limitado a algumas pinceladas – por certo reducionistas – que impedem o debate sério e franco das diversas formulações sobre o fenômeno econômico. Não que esse debate ocorra hoje, mas a questão principal é a sua completa interdição.

Um ponto que merece atenção, a meu ver, é que a ênfase dada pelas reformas à análise de dados sugere a subordinação do estudo da teoria à manipulação dos “dados”. Dito de outro modo, as teorias serão ensinadas como um conjunto de princípios heurísticos para manejarem as informações que emergem dos sistemas computacionais complexos. Com isso, o ensino da “ciência econômica” se torna a transmissão de um conhecimento somente prático-operatório, consolidando a ausência do ensino das explicações sobre a natureza e o sentido dos fenômenos econômicos. O que implica tomar como dado, por exemplo, o indivíduo aquisitivo, insaciável e racional – ou mesmo abordar a economia brasileira como desprovida de particularidade oriundas da sua “formação nacional”.

Cabe notar que um conhecimento desta natureza não pode ser denominado de “ciência”, pois se furta ao debate das explicações sobre o fenômeno que se debruça. E, por conseguinte, presta-se a reforçar a forma social em que vivemos – e, não menos importante, somente mitigando suas mais variadas mazelas, que são tomadas como “dadas”. Em suma, a direção das reformas reforça, ao que parece, o pensamento parcial, acrítico e tecnocrático, consolidando uma forma de ensino de economia hegemônica nos departamentos de economia estadunidenses desde meados do século XX, animados pela ideologia do livre mercado e pela perseguição do Macarthismo (MIROWSKI; PLEHWE, 2009).

Outra face dessas reformas está no conjunto de palavras-chave: flexibilidade, itinerário e escolha. São as mesmas palavras utilizadas para caracterizar a reforma do ensino médio iniciada durante o governo Michel Temer (2016-2018). Nessa forma de enquadrar a relação entre a formação do estudante e o mercado de trabalho, coloca-se a causa da queda do interesse pelo curso (de ensino médio ou de ciências econômicas) no currículo engessado e defasado. Contudo, o desinteresse pelos cursos de graduação (em particular nas ciências humanas) resultam de inúmeras razões, sendo uma delas o fato de vivermos numa época de expectativas decrescentes (ARANTES, 2014).

Para os jovens do capitalismo periférico, isso significa, dentre outras coisas, que o futuro que os aguarda será uma luta fratricida pela sua sobrevivência. No caso do curso de ciências econômicas, podemos acrescentar o declínio do emprego nos setores que os economistas tradicionalmente atuavam – como o planejamento e a gerência das indústrias e do governo – fruto dos rumos desse mesmo capitalismo. Com isso, restaram áreas restritas de atuação, disputadas com outros profissionais, que vão da “gestão de portfólio” à aplicação da austeridade na política pública.

Não parece que a inserção da “análise de dados” e “inteligência artificial” dará conta de endereçar esses problemas, uma vez que, de saída, interdita o ensino da crítica ao próprio discurso econômico (e sua prática) que tem contribuído, desde os anos 1990, para o aprofundamento de nossa condição periférica e subalterna. E, por isso, sublinhamos que não se trata de ser contra ou a favor do ensino destas disciplinas; mas, outrossim, de como o seu ensino é desarticulado da reflexão crítica sobre os fenômenos econômicos.

Isso posto, as medidas adotadas certamente atrairão, num primeiro momento, os jovens interessados nas novas tecnologia para esse novo curso de economia. Mas, pelo próprio convívio no campus, os estudantes poderão se questionar: ao invés de fazer um curso no qual a manipulação de dados aparece ao final, não seria melhor ser iniciado nesta investigação desde o começo (como fazem a estatística, a engenharia e outras ciências)?

Os mais críticos poderiam inclusive pensar: em vez de analisar os dados já viesado por certo pensamento econômico, não seria melhor aprender a produção de dados por esses sistemas complexos para não incorrer em erros grosseiros de sua análise? Em suma, para que fazer um curso genérico de manipulação de dados, se eles poderiam fazer os originais, conhecendo, por dentro, a operação destes sistemas?

Quando enfrentarem a concorrência, num mercado trabalho estreitado que caracteriza esse mercado no capitalismo periférico, os questionamentos serão ainda mais viscerais – em particular da parte dos inúmeros derrotados. Sem o aparato crítico para enfrentarem a situação em que se encontrarão, é provável que engrossem as fileiras dos diplomados ressentidos, que são objeto de fácil manipulação pelos discursos de ódio proferidos pela extrema direita.[ii] Por isso, as intenções da reforma podem ser até boas à primeira vista, mas suas consequências podem ser deletérias para a formação profissional dos economistas e, dada a centralidade da economia em nossa vida social, para o país.

*Henrique Pereira Braga é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Referências


ARANTES, P. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

MIROWSKI, P.; PLEHWE, D. The Road from Mont Pèlerin: the making of the neoliberal thought collective. Massachusetts: Harvard University Press, 2009.

Notas


[i] “Veja o que as faculdades de economia estão fazendo para atrair os jovens”. Jornal Valor Econômico, 11 de abril de 2023. Disponível em: http://glo.bo/3UTiEe8.

[ii] Não por acaso, as pesquisas de intenção de votos da última eleição presidencial mostraram a inclinação dos votos dos mais escolarizados no candidato da extrema direita.


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