Por RUBENS PINTO LYRA*
O voto facultativo amplia a autonomia do cidadão, que pode aprender por si próprio a construir a sua cidadania
Na medida em que o voto é soberano, a expressão voto obrigatório é uma contradição em termos. Com efeito, se o voto é soberano, ele não pode ser imposto. Não pode ser livre um voto quando não se vota por livre escolha, mas sim pelo temor de sanções. Quando se comparece para votar nessas condições, muito decidem anular o voto, votar em branco, ou em candidato sem expressão, como forma de protesto. Ou então, votam, por pirraça, em candidatos fictícios, como o Bode Cheiroso, Cacareco ou outros que tais, ou em candidatos folklóricos, sabidamente incompetentes, como Tiririca. Em nenhum desses casos, o voto obrigatório funciona como legítimo instrumento da vontade popular.
Argumenta-se que essa modalidade de voto deve existir enquanto parte da população não estiver dotada de consciência política “amadurecida”. Assim pensa, por exemplo, Pelé, que desde os anos 1970 já afirmava, do alto de sua sabedoria política que “O povo não está preparado para votar”. Mas o brilhante ministro Luís Roberto Barroso adota a mesma linha de raciocínio. Ainda não defende o voto facultativo porque acha que “a democracia brasileira vem se consolidando, mas ainda é jovem e, portanto, ter algum incentivo (sic) para as pessoas votarem é positivo” (BARROSO:2021).
Cabe então a pergunta: nós já votamos incontáveis vezes na base do voto obrigatório, e ainda não amadurecemos? O problema é que a concepção esposada pelos dois ilustres personagens acima citados, que infantiliza o cidadão, também é compartilhada por não poucas mentes esclarecidas no âmbito da esquerda,
Na minha maneira de ver, ela é de um paternalismo chocante. Qual seria o critério a ser adotado para definir quem tem consciência política ou dela é destituído? As classes subalternas, mesmo incultas, revelam-se, muitas vezes, mais capazes de identificar melhor seus interesses, e os interesses nacionais, do que uma suposta elite econômica, cultural ou política, como, aliás, as atuais eleições para Presidente da República deixaram, mais uma vez, patente. Não faz, pois, sentido que o Estado trate o eleitor como um ser hipossuficiente.
Vale lembrar aos defensores da coerção estatal que o voto obrigatório funciona, sobretudo em pequenas cidades e grotões, como tradicional fonte de votos em favor de “coronéis” e de outros manda-chuvas, que fazem do eleitor massa de manobra para a manutenção de seus privilégios (CONY: 2008).
Ademais “o voto obrigatório pode contribuir para o atraso do desenvolvimento na medida em que desobriga os partidos do trabalho de cativar os eleitores por todo o tempo e não apenas no período das eleições. Essa necessidade de cativar o eleitorado poderia levar os partidos políticos a serem mais abertos, transparentes e representativos da sociedade” (OLIVEIRA: 2022).
Nos países de tradição democrática consolidada, o voto é facultativo: votar ou não votar é um direito que não deixa, regra geral, de se manifestar de forma massiva, quando os eleitores percebem que os interesses maiores do povo estão em jogo, o que parece, aliás, ter ocorrido no segundo turno das eleições presidenciais de 2022.
Mas quando outra é a sua percepção, o não comparecimento pode indicar, segundo Norberto Bobbio, “legítima recusa de consentimento” aos governos. Nesse caso, a abstenção pode significar que quem se abstém pode estar convencido do bom funcionamento do sistema, daí resultando uma “benévola indiferença’ em relação aos candidatos.
Por contraste, nos países ditatoriais que querem manter a fachada democrática, o voto é sempre obrigatório, e, regra geral, sempre favorável aos que o impõem.
Para a esquerda democrática, o voto legítimo só pode resultar de um processo de tomada de consciência de sua necessidade, a ser alcançado no confronto dialético entre a práxis social do eleitor e as propostas políticas em debate no processo eleitoral, É esse confronto – e não uma imposição institucional externa, burocrática – que fornecerá ao cidadão os elementos necessários e suficientes para a sua escolha.
O voto obrigatório, ao contrariar a liberdade de escolha do eleitor, revela-se ontologicamente incompatível com o Estado Democrático de Direito vigente entre nós desde a proclamação da “Constituição cidadã”.
Mesmo críticos mais contundentes da obrigatoriedade do voto desconhecem os efeitos deletérios, sofridos por muitos que não comparecem às urnas para votar – especialmente os mais vulneráveis. Chegam a considerar, como o Procurador do Ministério de Contas, Júlio Marcelo Oliveira, “a virtual ausência de qualquer consequência prática pessoal negativa para o cidadão que se abstém do processo eleitoral” (2022).
Ledo engano! Não percebem que o autoritarismo embutido no voto obrigatório não se esgota no seu caráter impositivo, mas tem consequências materiais concretas, bastante danosas. O que ocorreu em João Pessoa – e certamente em muitas outras cidades brasileiras – ilustra bem essa afirmação. Nessa cidade, a rede TV Globo mostrou a longa fila a que tiveram que se submeter, em eleição recente, os que não compareceram às urnas para justificar a sua ausência. Permaneceram durante horas, fora do Tribunal, debaixo de copiosa chuva, aguardando, aglomerados, o momento de adentrar nas suas dependências para justificar a abstenção nas eleições.
Mas os prejuízos para os trabalhadores não param por aí, já que muitos perdem uma jornada de trabalho para justificar sua inadimplência, além de arcarem com as despesas de ida e volta de transporte e de eventuais refeições. Somente um elitismo entranhado explica que essa questão passe desapercebida e que as autoridades judiciárias e o público a ignorem solenemente. A percepção do sofrimento dos despossuídos pela burguesia é reduzida a sua menor expressão por lentes opacas, que contaminam também a da maioria da população. Caso os mais afortunados tivessem que sofrer essas agruras, será que teríamos a obrigatoriedade do voto?
Para avançar no processo de democratização das instituições brasileiras, é preciso extingui-la, pois que engessa o comportamento do cidadão mediante a imposição de obrigações legais incompatíveis com as liberdades garantidas pela Constituição. Existem soluções, muito mais simples, práticas e democráticas para ampliar a participação popular, como a que foi adotada nas eleições de 2022, consistindo em assegurar a gratuidade do transporte coletivo para os eleitores de que dele necessitarem.
Concluímos que o voto facultativo, para além de nos livrar dos procedimentos burocráticos e cartoriais que acompanham as “justificativas” que nos são impostas, encarna esse valor irrenunciável: o da autonomia do cidadão, que pode aprender por si próprio a construir a sua cidadania.
*Rubens Pinto Lyra é Professor Emérito da UFPB. Autor, entre outros livros, de Bolsonarismo: ideologia, psicologia, política e temas afins (CCTA/UFPB).
Referências
BARROSO, Luiz Roberto. País iniciou a transição para o voto facultativo. Folha de São Paulo, São Paulo, 19.6.2021.
CONY. Carlos Heitor. O voto obrigatório. Folha de São Paulo: São Paulo, 17.8.2008.
OLIVEIRA, Júlio Marcelo. O voto obrigatório é compatível com a democracia? Congresso em Foco, 20.10.2022.
SCHÜLER, Fernando (Já votamos 20 vezes e ainda não estamos maduros para o voto facultativo? https:www.folha.uol.com.br/fsp/facsimile/2021/01/28).
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