Contra o mal sagaz – Emicida e Machado de Assis

Imagem: Josh Hild
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por FABRÍCIO CESAR DE OLIVEIRA*

O “racismo reverso” de Antônio Risério e da Folha de São Paulo

“Reconheça a sério que o mal foi sagaz”, é assim que, machadianamente, o rapper paulistano Emicida solta um verso crucial no meio da bela e aérea melodia da música “Paisagem” – do disco Amarelo (2019). Os arpejos da guitarra elétrica, ao longo de toda canção, não disfarçam a denúncia à apatia social frente ao racismo estrutural – nosso mal mais sagaz. Como ignorar tais críticas nos versos: “agora quantas árvores condecoram nossos raptores/nos arredores tudo já pertence aos roedores//é louco como adianta pouco, mas ore, talvez piore//não se iluda, pois nada muda//em um silêncio que nos permite ouvir as nuvens cruzar o céu// ver que os monstros aqui têm origem// Dizem os jornais, calma rapaz, tudo está em paz”?

Toda essa habilidade linguística e artística é típica ao rapper que ganhou notoriedade nas batalhas de rima nas periferias e centros do país, neste início de século XXI. Típica também da ironia fina e secular do Bruxo do Cosme Velho, o negro escritor, em pleno século XIX, Machado de Assis faz uso de sua “Estratégia de Caramujo” na arte da literatura para mostrar os podres da burguesia aristocrata de seu tempo. Foi assim que sobreviveu e virou gênio em uma sociedade marcada por diferenças estruturais – vide o conto “Pai contra mãe”, em que as inúmeras violências simbólicas e físicas recaem sobre uma mulher negra e escrava.

Não é exceção, é norma tanto em Machado de Assis quanto em Emicida a denúncia ao mal sagaz que nos estrutura. Não é a primeira e nem será a última vez que Emicida  – irônico – usará de versos críticos em contraste com uma melodia leve para destilar sua verve contra o sistema, nota-se isso na harmoniosa canção “Passarinhos”, em dueto com Vanessa da Mata, 2015. Lá, embora a canção faça os pássaros “voarem dispostos”, a letra não deixa brechas, pois vai insidiosamente denunciar o agronegócio, a depressão, o uso abusivo de agrotóxicos, a crise hídrica, a sociedade do desempenho, o capitaloceno – a próxima extinção em massa no planeta. Já ouviram e leram os versos: “E dá-lhe antidepressivo// em colapso o mundo vira// a babilônia é cinza e neon// cidades são aldeias mortas/ desafio non sense/ competição em vão que ninguém vence// quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus // água em escassez, bem na nossa vez// assim resta nem as baratas//escolha qual veneno te mata”?

Diante desses versos, o que vejo é a realidade óbvia declarada por uma camada de arte – um espelho de Perseu para enfrentar a monstruosa realidade, um jeito humano de não se desumanizar e ou petrificar. Assim é Emicida, assim fora Machado de Assis na mídia de sua época – ocupando a literatura e os jornais. Sem exceção, ambos lidam com a norma da denúncia. Só não vê quem não quer, ou quem já não ouve, mesmo tendo suas plenas capacidades ópticas, auditivas e reflexivas. Pior ainda é quando isso parte de alguém com respeitado lugar de fala em nossa sociedade: pois, não dá para tratar exceções como regra, anedotas como ciência, casos isolados como norma. Porém, tristemente, essa foi a atitude do antropólogo baiano Antônio Risério, em artigo de opinião, publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 15 de janeiro de 2022, intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.

Antônio Risério faz parte, neste artigo na Folha, do mal sagaz. Para mim, o artigo pode ser implodido pelo seu final, quando o autor escolhe a norma, a partir das exceções que pinça durante o artigo, para falar de uma generalização absurda: “O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente, penso que é norma.” Aqui, neste trecho, ele mostra sua visão pessoal e anedótica e nela se fundamenta, como disse, apenas baseado em exceções. A norma, pensa ele, são as exceções que recolhe. E elas são anticientífica, absurdas, delirantes e graves. Amplamente graves em uma sociedade em que o racismo é um sistema político, social, jurídico, midiático e histórico.

Antônio Risério pinça casos isolados – anedotas – para tentar denunciar um suposto “racismo reverso”. E assim nega o que nos estrutura, para apoiar-se em pilhérias da vida de negros e negros que tiveram em suas trajetórias contradições, como a de Abdias do Nascimento com passagem pelo movimento Integralista, ou em exemplos majoritariamente estadunidenses. Falo isso por que o texto de Risério é embebido de um pensamento colonizado que vê nos EUA nosso pilar de referência. São oito exemplos de “racistas antibrancos” do hemisfério norte, sete deles nos EUA e um no Canadá. Casos isolados no metrô de Washington, falas de adolescentes no Brooklyn, brigas de gangues em Michigan.

Estes são os exemplos que viram norma para Risério. A maioria vindo dos EUA; de um lugar onde teve uma guerra civil sangrenta e declarada e há apenas 11% da população negra, hoje. Quem estuda um pouco de História das Américas, sobre Guerras de Independência ou Guerras Civis irá logo esbarrar no extermínio negro dos EUA e quais são as consequências antropológicas disso. O outro exemplo, vem do Canadá, atribuído a uma “jovem mulata sudanesa”. É com esses termos saídos do esgoto do século XIX que Risério cita uma ativista que é uma exceção dentre pessoas que valem a pena ouvir falar.

Ela não representa a luta dos negros. Ela não me representa e muitos dos meus, posso garantir. Não representa Lélia Gonzalez, nem Sueli Carneiro, nem Angela Davis, nem Silvio Almeida e Thiago Amparo. A norma para essas e esses intelectuais hoje é a luta pela igualdade de direitos e pela não violência, mesmo que suas trajetórias apresentem contradições, a regra em seus escritos é o antirracismo, pois isso é ser antissistêmico. A missão delas e deles, portanto, nossa, é de enfrentamento ao “mal sagaz”, assim como as artes de Emicida e de Machado de Assis fazem tal enfrentamento.

Risério não se vê satisfeito e diz: “Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo.” E mais, para piorar vaticina sem mostrar provas, sem comprovar com exemplos o absurdo que é o parágrafo: “O fato é que não dá para sustentar o clichê de que não existe racismo negro porque a “comunidade negra” não tem poder para exercê-lo institucionalmente. Mesmo que a tese fosse correta, o que está longe de ser o caso, existem já meios para o exercício do racismo negro.” Risério é o próprio clichê do homem branco doído.

Não, Antônio Risério! Ninguém precisa ter poder para ser racista, mas quando o sistema é estrutural e historicamente racista, os instrumentos de poder privilegiam certos grupos, fazendo com que versos de Emicida sejam, verticalmente, verdadeiros: “Existe pele alva e pele alvo”. E não precisamos aqui – eu, você e os leitores – apontarmos quem é quem entre alvos e “alvos”. O óbvio grita de dor dilacerante e fatal a cada 23 minutos no Brasil. Isso não é exceção, é a covarde regra, é a triste norma.

Não, Antônio Risério! Existe racismo no Brasil e, pior, existem alguns negros que não se libertaram ainda da opressão do sistema e que acabam reproduzindo a violência estrutural, estruturante e sistêmica; como existem mulheres machistas que não se libertaram ainda – pois é assim que o patriarcado ainda persiste. Mas esses casos são poucos, cada vez menores, mais raros, muito poucos no meio de uma multidão de negres e mulheres.

Por exemplo, Sérgio Camargo não é regra, é exceção. Nossa régua anda em outro nível. Ler mais Machado de Assis e ouvir Emicida podem ajudar-nos, a todos, a entender que exceção não é norma, mas pode, com eles no alforje dos dias, nos guiar para outras letras, outros versos, outros artigos de opinião com mais honestidade intelectual. Só para dizer ao final, que se o “mal é sagaz”, nós somos, por resistência, mais.

É preciso reconhecer a sério que o mal é sagaz. Dias antes, o Tiago Leifert, filhinho da Globo, levou uma invertida desconcertante com o texto magistral do ator negro Ícaro Silva e seu talento que a diferença. O jornal Folha de S. Paulo também meses antes já havia perdido a intelectual negra Sueli Carneiro de seu conselho editorial. Agora, vale lembrar que o Artigo de Antônio Risério na Folha de S. Paulo inaugura um ano em que “A lei de cotas” será rediscutida nos âmbitos legais e governamentais. O ano de 2022 só começou, mas logo veremos quem é mais sagaz hoje. Nossa resistência ou o conjunto de anedotas de alguns homens brancos?

Nós e nossas ancestralidades levamos a sério que o mal até aqui foi sagaz. Mas nossa resistência é mais.

*Fabrício Cesar de Oliveira, professor e poeta, é doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

 

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES