Crânios de vidros

Imagem: Mike Navolta
image_pdf

Por LETÍCIA NÚÑEZ ALMEIDA*

Considerações sobre o livro recém-lançado de Luiz Eduardo Soares

O que é a realidade? Nós a produzimos ou somos produzidos por ela? A verdade é sempre relativa? Quais as fronteiras entre o consciente e o inconsciente? Existe uma (in)consciência coletiva? O novo livro de Luiz Eduardo Soares é a antítese de São Tomé, não é recomendado aos que só acreditam no que podem ver, tocar, ler. É o(a) leitor(a) no meio da tempestade elétrica da encruzilhada desenhada pelo autor.

O tombo é maior para quem espera uma continuidade na tradição literária dos romances que são hoje manuais obrigatórios das ciências sociais como a Elite da Tropa I e II, Justiça, Espírito Santo, Cabeça de Porco entre tantos. Puxada de tapete aos que seduzem pela capa fosforescente com ares mexicanos, a tormenta é interna e lenta, não é possível identificar o momento em que essa perturbação acontece, como numa sessão de psicoterapia, vai sendo elaborada e de repente a luz do insight do “dar-se conta” da Gestald.

O livro se passa no Rio de Janeiro e em São Paulo, as cidades não são personagens e mesmo assim se pode sentir o cheiro de Copacabana, a luminosidade tensa das ruas do Centro do Rio e o ar sedutor e misterioso da região central under da capital paulista.

O livro começa nos deixando confortáveis na poltrona, um auto-romance biográfico? O autor falando dos seus sentimentos, compromissos, histórias na política por meio do seu (des) encontro com Mártin, um companheiro das lutas políticas pela democracia do Brasil. O cara reaparece discretamente depois de trinta anos em um evento público e diz que acompanhava o trabalho do autor. Estão em 2013, sem whatsapp, seguidores frenéticos e essas coisas. É curiosa a categoria de ser “acompanhante” da trajetória de alguém, não é seguidor, nem fã, acompanha. E mais raro ainda pensar que isso não se dá pela internet.

Confesso que me identifiquei imediatamente com Mártin. Acompanho o trabalho de Luiz Eduardo Soares desde 2001. Na minha primeira aula do meu curso de mestrado, a sala estava lotada, todos pareciam íntimos, a grande maioria eram doutorandos, estavam ali só para escutar o Luiz Eduardo Soares. Eu com o xerox do livro O Rigor da Indisciplina (1994) no colo, tinha achado o texto difícil, nem sabia direito o que era um mestrado, estava conhecendo o habitus que por alguma razão me encantava.

Terminei o curso sem nunca ter conversado com Luiz Eduardo, depois se passaram anos em que li boa parte de tudo o que ele publicava, assisti dezenas de palestras e debates em Porto Alegre, São Paulo, Niterói, Rio de Janeiro, Brasília, Anpocs, SBS e por aí vai. Dei um jeitinho e estava no auditório do Programa do Jô Soares quando ele foi entrevistado, dia em que abracei O Gordo. Briguei com vários professores por causa dele, causei constrangimentos que ele nem sonha. Nesses últimos 23 anos o Luiz Eduardo foi meu professor, meu chefe, é meu amigo e não digo colega porque sei meu lugar no mundo.

Tudo isso para contar que o livro Crânio de vidro do selvagem digital nos leva a refletir como se dão as conexões entre as pessoas, as histórias de vida, tudo o que nunca será dito, mas, sim, vivido. O livro nos leva a ser afetado por sentimentos que nos colocam como parte dessa encruzilhada onde não há escolhas, ela é reunião de esferas e dimensões que formam algo novo, que somos nós no momento da leitura.

E que fica liberando um efeito lento de algo que pode ser chamado de consciência, como faz o Ayahuasca, este que é um assunto que permeia todo o livro. O autor nos leva a vivenciar algo sobre o qual ele está ensinando, sem a narrativa, um processo dialógico onde o leitor participa para que a energia do livro siga seu rumo, sensacional.

Crânio de vidro do selvagem digital nos apresenta a nossa história recente a partir de uma perspectiva decolonial, multidisciplinar, corajosa, é possível saber mais sobre o Brasil e sobre nós mesmos depois dessa experiência, somos todos parte do mesmo mar, mas o que é um mar para nós?

*Letícia Núñez Almeida é professora da Univerdad de lá República del Uruguay. Autora, entre outros livros de Lua: um griô de Porto Alegre (Editora Coralina). [https://amzn.to/3PAxa8N]

Referência


Luiz Eduardo Soares. Crânio de vidro do selvagem digital. Porto Alegre, Brasa Editora, 2024, 176 págs. [https://shre.ink/bKA5]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES