Por EDUARDO GONÇALVES GRESSE & PEDRO ROBERTO JACOBI*
O desenvolvimento urbano brasileiro tem sido historicamente influenciado pela pressão do setor imobiliário e por agendas de uso e ocupação do solo imediatistas
Enquanto a ciência alerta para a iminência de não atingirmos as metas do acordo de Paris e para os riscos que isso representa,[i] os impactos das mudanças climáticas têm aumentado a cada ano. O ano de 2023 foi o mais quente já registrado na história[ii] e inúmeras catástrofes atribuídas à combinação entre aquecimento global e o fenômeno climático El Niño foram registradas no Brasil e ao redor do mundo.[iii]
Os chamados “eventos climáticos extremos”, como as recentes ondas de calor com temperaturas médias bem acima do normal, têm ocorrido com cada vez mais frequência e afetado a qualidade de vida nas cidades. De acordo com o último relatório síntese do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU (IPCC, para a sigla em inglês), os efeitos negativos das mudanças climáticas já observados têm prejudicado sobremaneira a saúde humana, seus meios de subsistência e a infraestrutura de sistemas urbanos.[iv]
As cidades são atores-chaves para se entender os problemas e potenciais soluções para a crise climática. Mais da metade da população mundial vive hoje em cidades,[v] e projeções recentes revelam uma tendência crescente, indicando que até 2050 essa proporção poderá chegar a 70%.[vi] Áreas urbanas consomem a maior parte da energia do mundo e são responsáveis por emitir uma grande parcela das emissões globais de gases de efeito estufa.[vii] Ao mesmo tempo, elas são extremamente vulneráveis aos impactos e riscos associados às mudanças climáticas.
As cidades e seus respectivos processos de desenvolvimento têm, portanto, enorme influência na governança climática em diferentes escalas de governança (local, regional, nacional e global), tanto no que diz respeito à redução das emissões (mitigação) quanto com relação à elaboração e implementação de estratégias de adaptação às mudanças climáticas que podem ser replicadas ou inspirar soluções em diferentes contextos socioambientais.[viii]
No Brasil, há municípios que têm se engajado em redes de ação climática e elaborado planos para a mitigação e adaptação às mudanças climáticas. No entanto, poucas são as cidades com planos e ações concretas implantadas e há enorme disparidade tanto no enfrentamento a eventos climáticos que já ocorrem com cada vez mais intensidade quanto na capacidade das cidades para adaptar-se às mudanças climáticas e minimizar os riscos e impactos iminentes.[ix] Mesmo as cidades consideradas pioneiras em ação climática no Brasil ainda estão muito longe de um modelo de desenvolvimento sustentável e resiliente às mudanças climáticas.
A cidade de São Paulo, por exemplo, tem um histórico de protagonismo nacional e internacional em redes de ação climática e de pioneirismo no estabelecimento de leis e políticas ambientais e climáticas. O Plano Diretor de 2014 originalmente contemplava ações climáticas promissoras, tais como os chamados “Eixos de Estruturação da Transformação Urbana” que pretendiam estimular o uso do transporte público, permitindo um maior adensamento nas faixas próximas aos corredores de ônibus e às estações de metrô. Tal medida ajudaria a evitar o espraiamento da cidade sobre reservas verdes e áreas rurais e, somado à eletrificação do transporte público, poderia reduzir significativamente as emissões e a poluição do ar.[x]
No entanto, o Plano Diretor de São Paulo foi recentemente revisado e a lei de zoneamento atual deturpa esses instrumentos urbanísticos, estimulando a verticalização descontrolada e prejudicial às áreas urbanas. De fato, São Paulo carece de um planejamento urbano mais robusto e integrado e de uma gestão pública que alinhe o atendimento às demandas básicas da população com as necessárias transformações urbanas e sociais para que a cidade ofereça qualidade de vida e resiliência em um mundo com temperaturas médias mais altas. Entre elas destacamos a necessidade de investimento em infraestrutura e mobilidade sustentáveis, eficiência energética, a implementação de políticas e leis que garantam uma ambiciosa redução nas emissões de gases de efeitos estufa e com isso a melhoria na qualidade do ar, bem como uma gestão hídrica transparente e eficiente.[xi]
Não há dúvidas de que as cidades brasileiras terão de estar cada vez mais preparadas para eventos climáticos extremos, sobretudo as crescentes ondas de calor e volumes de chuva que muitas vezes têm sido em um ou dois dias maiores do que o volume pluviométrico médio mensal.[xii] Segundo os dados da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, no ano de 2023, cerca de 14,5 milhões de pessoas foram afetadas por eventos climáticos extremos e mais da metade dos municípios brasileiros decretaram situação de emergência ou estado de calamidade, gerando gastos de R$1,4 bilhão.[xiii]
De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN), “o Brasil bateu recorde de ocorrências de desastres hidrológicos e geohidrológicos em 2023”, com 1.161 eventos de desastres registrados, 716 deles associados a eventos hidrológicos, tais como transbordamento de rios, 445 de natureza geológica, como por exemplo deslizamentos de terra.[xiv]
Neste contexto, cabe destacar que persistentes problemas estruturais, tais como as enormes e crescentes desigualdades sociais, o uso irregular da terra, bem como a impermeabilização das várzeas de rios e os consequentes problemas na drenagem de águas pluviais contribuem para a intensificação dos efeitos dos eventos climáticos extremos sobre a população e o meio ambiente. Vale destacar também que os impactos e efeitos adversos das mudanças climáticas sobre a saúde e o bem-estar humano são especialmente pronunciados entre os residentes urbanos que enfrentam marginalização econômica e social.[xv]
Entre as principais causas do grande impacto dos eventos climáticos extremos sobre a população brasileira destacamos a ausência de políticas de ação climática integradas e, neste contexto, a insuficiência ou incapacidade das políticas públicas na gestão do uso do solo, assim como a setorialidade na implementação de políticas ambientais com impacto no planejamento urbano.
Os desastres mais comuns e devastadores após um evento climático extremo expõem não somente as enormes vulnerabilidades sociais e ambientais dos territórios, mas sobretudo o despreparo das autoridades e a insuficiência de iniciativas de prevenção de desastres climáticos, o que se reflete na fragilidade na capacidade de enfrentamento aos impactos das mudanças climáticas nas áreas urbanas.[xvi] De fato, a grande maioria das cidades brasileiras ainda estão mais preocupadas em resolver problemas de curto prazo através ações e abordagens setoriais limitadas do que em responder, de forma integrada e sustentável, aos impactos já observados e iminentes das mudanças climáticas.
O maior desafio para as cidades brasileiras se tornarem sustentáveis e resilientes é a implementação de políticas que garantam a articulação entre desenvolvimento urbano e a necessidade de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Como destacado acima, há ainda uma enorme lacuna em termos de implementação no Brasil, na medida em que poucas cidades têm políticas climáticas municipais, sendo que uma minoria das políticas municipais existentes estabelece diálogo entre o seu respectivo Plano Diretor e regulamentação ambiental, como por exemplo as leis de uso e ocupação do solo.[xvii]
O desenvolvimento urbano brasileiro têm sido historicamente influenciado pela pressão do setor imobiliário e por agendas de uso e ocupação do solo imediatistas em detrimento de ações mais efetivas e de longo prazo, como por exemplo as chamadas “soluções baseadas na natureza” (SbN), que utilizam os processos naturais para proteger as cidades e reduzir os impactos das mudanças climáticas.[xviii] Tais soluções podem incluir a conservação e a implantação de áreas verdes e a recuperação de ecossistemas, como mangues e florestas, que ajudam a controlar enchentes, absorver carbono e reduzir a poluição atmosférica.[xix]
É preciso reconhecer que processos de transformação tais como os necessários para se promover resiliência climática costumam envolver muitos conflitos e demora na sua realização. Diante da janela de tempo cada vez menor para evitarmos cenários climáticos ainda mais extremos, a mobilização de diversos atores da sociedade e o controle social são fundamentais para o enfrentamento da crise climática, que não é somente uma crise ambiental, mas já é também e acarretará múltiplas crises sociais e econômicas. É igualmente importante que os planos de governo e gestores públicos incluam a participação social e a justiça climática como pontos centrais da ação climática municipal.
Após o pleito nacional de 2022, as eleições municipais de 2024 serão muito importantes para os rumos das cidades e do país com relação à governança climática e às perspectivas de transformações necessárias para o desenvolvimento urbano sustentável. Afinal de contas, é nas cidades que os principais desafios e as principais ações de enfrentamento às mudanças climáticas se fazem presente.
Portanto, para que o desenvolvimento urbano sustentável e resiliente seja possível, é preciso promover o fortalecimento da democracia e de agendas políticas municipais que priorizem a ação climática como necessidade emergencial e até mesmo como oportunidade de promover o desenvolvimento sustentável. Além disso, é preciso mobilização e controle social para combater o negacionismo climático, bem como desarticular as narrativas e agendas políticas baseadas no chamado “retardamento climático” (do inglês “climate delayalism”), que aceitam a existência das mudanças climáticas, mas justificam a inação ou esforços e abordagens convenientes ao status quo e portanto inadequadas para o enfrentamento da crise climática.[xx]
Tais ações são necessárias não somente em anos eleitorais, mas também ao longo das gestões municipais. Por isso, para além do voto é extremamente importante que a população pressione os governantes ao longo de seus respectivos mandatos de modo a garantir que políticas climáticas não sejam ex-post, ou seja, mera reação a catástrofes já ocorridas, mas ex-ante: medidas que garantam a prevenção de riscos e impactos e promovam transformações rumo a um modelo de desenvolvimento que garanta justiça social, prosperidade econômica e sustentabilidade ambiental nas cidades e em todo o país.
*Eduardo Gonçalves Gresse, cientista político e sociólogo, é pesquisador sênior no Centro de Excelência “Climate, Climatic Change, and Society” (CLICCS) na Universidade de Hamburgo e pesquisador visitante no Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP).
Pedro Roberto Jacobi, sociólogo e especialista em planejamento urbano, é professor titular sênior e pesquisador do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Desde 2011 preside o Conselho de Governos Locais pela Sustentabilidade ICLEI-América do Sul.
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Notas
[i] Engels et al., 2023; IPCC, 2023, p. 6.
[ii] Copernicus, 2023; INMET, 2023a
[iii] Talbot-Wright & Vogt-Schilb, 2023.
[iv] IPCC, 2023, p. 6
[v] No Brasil, de acordo com o último censo, as concentrações urbanas no ano de 2022 representavam cerca de 124,1 milhões de pessoas, ou 61% da população total. Fonte: IBGE, 2023.
[vi] Rosenzweig et al., 2018; UN, 2019
[vii] UN-Habitat, https://unhabitat.org/topic/urban-energy
[viii] Gresse et al., 2023
[ix] Portela e Bresciani, 2022; Di Giulio, 2024
[x] Anelli, 2020;
[xi] Anelli & Lima, 2023; Jacobi et al., 2019
[xii] Ver, por exemplo, INMET, 2023b
[xiii] Câmara dos Deputados, 2023
[xiv] CEMADEN, 2024
[xv] Ver IPCC, 2023, p. 6
[xvi] Jacobi & Sulaiman, 2016
[xvii] Anelli & Lima, 2023
[xviii] UNEP, 2022
[xix] Ximenes & Maglio, 2022
[xx] Um exemplo de retardamento climático é a ação política que criminaliza movimentos sociais pelo clima enquanto promove a crença de que inovações tecnológicas resolverão a crise climática sem a necessidade de profundas transformações socioambientais.
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