Crise do pix e “crise fiscal”

Foto Lula Marques/ Agência Brasil
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Por MATHEUS COLARES DO NASCIMENTO*

O projeto político de austeridade fiscal da linha política que Fernando Haddad ocupa dentro do PT é preocupante, mais preocupante ainda, porém, é que o ministro tenha tamanha força para implementá-lo

1.

O governo Lula inicia o ano de 2025 com um caos gerado em torno de uma instrução normativa da receita federal ampliando o escopo de monitoramentos financeiros após a publicação de um vídeo enganador postado pelo deputado Nikolas Ferreira (PL -MG). Apesar de nefasto, o vídeo não abrange toda a dimensão problemática do acontecimento. É necessário ir a fundo nisso para evitar situações do tipo, o que chama a necessidade de uma crítica voraz ao ministério da Fazenda, presidido por Fernando Haddad.

Uma semana após uma das maiores crises políticas do governo, o ministério da Fazenda lança um documento manifestando as suas 25 prioridades para 2025. Infelizmente, parece que Fernando Haddad não aprendeu nada com a crise do pix, o que não é de se admirar afinal essa não é a primeira – e aparentemente nem será a última – crise que ele provoca no governo.

Essas prioridades seguem a linha da austeridade fiscal, projeto político que Fernando Haddad – e seus verdadeiros patrões (FEBRABAN, Faria Lima e cia.) – perseguem inescrupulosamente. A crise do pix demonstra isso claramente e, por isso, é necessário abordá-la no contexto mais amplo da realização desse projeto fora da dualidade simplista demonização moralista da extrema direita e defesa cega do governo. Neste ensaio, abordo os sérios problemas por trás da atuação de Fernando Haddad na atuação na práxis política concreta. Tentarei mostrar na segunda parte que a necessidade de neutralizá-lo politicamente é, na verdade, uma tentativa de neutralizar “seu” projeto austericida.

2.

A instrução normativa da receita federal publicada inicialmente em setembro de 2024[i] visava a adaptar regras de controle fiscal e fornecimento de dados de transações financeiras existentes desde 2003 para a fiscalização de novas tecnologias de pagamento, principalmente o pix. A normativa não representa um decreto de aumento da carga tributária sobre os brasileiros, embora a sua finalidade também não esteja clara.

A repercussão negativa da instrução se apoiou exatamente nessa zona cinzenta e aconteceu em janeiro deste ano quando o deputado oportunista Nikolas Ferreira publicou um vídeo enganoso, mas sutil na sua enganação, que tocava precisamente numa preocupação real e justa dos brasileiros com relação ao aumento da carga tributária. No vídeo, o deputado distorce o conteúdo da emenda falando que ela implicaria necessariamente em aumento de impostos.

Esse deputado é, sem dúvida, um oportunista da pior espécie. Sabendo disso, qual a efetividade de uma estratégia política conduzida através de uma mera crítica moral ao deputado? Por que, ao invés disso, o governo não se concentra em evitar vacilos desse tipo que dão abertura para que esse tipo de ataque previsível aconteça? Isso aponta não para um problema da oposição que sai vitoriosa desse confronto, mas sim para um problema de linha política, cujo principal responsável é Fernando Haddad.

Na bolha governista, a autocrítica que se fazia colocava no centro do problema um problema de comunicação do governo. Embora isso também não esgote a questão, tem um fundo de verdade aí se compreendermos problema de comunicação como problema de organização partidária. Afinal, a forma com que o governo lidou com a questão depois do estouro mostra que a instrução normativa não partira de uma iniciativa centralizada. Isto é, decidida coletivamente nas votações internas do partido. Ela, na verdade viera de tivera uma iniciativa individual e isolada do ministério da economia.

Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo o presidente Lula se mostrara extremamente irritado com a condução que a campanha de monitoramento tomara. Segundo ele, dentre os principais motivos estava o fato de “[…] uma medida dessa magnitude ter recebido um tratamento burocrático da equipe econômica, sem a definição de uma estratégia de comunicação. [Ademais] O presidente e a Casa Civil afirmam que não tinham conhecimento da medida até a repercussão nas redes sociais”.[ii]

Em outras palavras, isso significa que não houve discussão política interna partido sobre a viabilidade dessa medida. Ou seja, parece que a ideia tivera origem simplesmente na cabeça de Fernando Haddad e de seu secretário executivo – que depois saiu como laranja na situação – e fora imediatamente transformada em decreto. Isso mostra a delicadeza e sensibilidade do ministro que apresenta um trato político análogo ao de um elefante dentro de uma loja de cristais.

Fora o impulsionamento de postagens de extrema direita protagonizado pelas suas redes sociais, o vídeo se alimenta de uma preocupação real do povo brasileiro. Afinal, como ter certeza que a medida não implicaria taxação? Por que motivo o governo estaria interessado em realizar esse monitoramento se não para depois, quem sabe, elaborar algum tipo de taxação sobre ele? Esses questionamentos são plenamente justificados, principalmente tratando-se de Fernando Haddad conhecido pela sua sanha de arrecadação que se volta exclusivamente contra os pobres e as classes médias, alvos do monitoramento.

A medida em questão tinha como objetivo monitorar movimentações totais de R$ 5.000 para pessoas físicas e R$ 15.000 para pessoas jurídicas. Ora, esse é um valor irrisório haja vista não se tratar de poupança, mas de movimentação. Isso significa que a medida abrange sim grande parte do povo trabalhador. Imagine um vendedor de picolé que faz um investimento inicial de R$ 1.500 em um carregamento de 3.000 unidades de picolé. Se o picolezeiro vender cada picolé a R$ 2 reais, ele arrecadará um valor de R$ 6.000, ou seja, R$ 1.000 a mais do que a medida prevê. Porém, o seu lucro real é de apenas R$ 4.500. Esse vendedor obviamente não possui R$ 6.000 dando sopa na sua conta – provavelmente muito menos. Imagine ainda se esse picolezeiro usa esse valor para sustentar a sua família de quatro pessoas.

O que a medida de Fernando Haddad implica é que tal vendedor passaria a ser fiscalizado e poderia ser chamado para depor na Receita Federal para esclarecer seus gastos. Haja vista que a justificativa do governo federal para a medida era combater fraudes fiscais,[iii] para Fernando Haddad, seu idealizador, esse humilde vendedor de picolé é um criminoso sonegador de imposto e outros trabalhadores como ele devem ser punidos. Mas os grandes oligopólios da aviação que tiveram uma dívida de R$ 4,8 bilhões de reais perdoada no início do ano pela AGU são empresas completamente idôneas.[iv]

3.

Essa não é a primeira vez, porém, que, na sua inabilidade política, Fernando Haddad demonstra o seu ódio pela base da pirâmide social. Podemos dizer já que essa é uma abordagem padrão do ministro. Há outros episódios bastante significativos, a saber, o ataque ao BPC e ao salário mínimo anunciado em outubro de 2024 com o pacote de corte de gastos.

Em meados de outubro – durante uma das eleições mais tensas da história da cidade de São Paulo – Fernando Haddad, com sua sensibilidade política inigualável, dá uma entrevista à jornalista Monica Bergamo da Folha de S. Paulo anunciando, com essas palavras, “a prioridade do governo Lula deveria ser o corte de gastos”[v]. Na mesma entrevista, Fernando Haddad afirma que o mercado está correto em estar preocupado com o fato de o orçamento não caber dentro da regra fiscal”[vi]. O que temos aqui não é um funcionário do governo, mas um agente infiltrado do mercado. Além disso, esse pacote foi outra medida do ministro que não foi discutida nas reuniões da cúpula do governo[vii]

Outro episódio lamentável ocorreu durante as mobilizações de 2024 pelo do fim da escala 6×1. Sobre a questão que provocou mobilizações por todo o país, Fernando Haddad disse não saber o que estava acontecendo e não ter acompanhado o debate.[viii] Ora, se um ministro da administração pública do Partido dos Trabalhadores não está acompanhando uma reivindicação de tamanha relevância para a classe trabalhadora, o que ele está fazendo então?

Por fim, um último e emblemático episódio data de mais de 10 anos atrás, mas retém a sua importância à luz dos últimos acontecimentos. Em 2013, o Brasil passou por um período de rebuliço político que levara ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. Como relembra o grande jornalista Mauro Lopes, as insatisfações contra o seu governo já vinham se acumulando, mas o estopim dos protestos teve lugar em São Paulo a partir de um decreto de aumento de R$ 0,20 centavos nas passagens de ônibus e metro. Quem assinou o decreto? Fernando Haddad, então prefeito da cidade.[ix]

O projeto político de austeridade fiscal da linha política que Fernando Haddad ocupa dentro do PT é preocupante, mais preocupante ainda, porém, é que o ministro tenha tamanha força política para implementá-lo a despeito das suas consequências desastrosas. O caso do Pix é só mais um no nefasto currículo de Fernando Haddad e, por isso, devemos contextualizá-lo. A falta de tal contextualização foi o que levou o debate sobre a questão nas redes sociais tomar direções superficiais.

Os progressistas e governistas se limitaram a denunciar o chauvinismo e oportunismo do deputado mineiro afirmando que ele não se importa com as pessoas que ele enganosamente disse que seriam taxadas. E Fernando Haddad, por acaso, se importa? Dia sim dia não o ministro propõe algum ataque contra direitos básicos, demoniza o investimento público e sabota o próprio partido.

Há, porém, uma esperança a partir dos acontecimentos recentes. Lula já demonstrou insatisfação com as decisões monocráticas do ministro.[x] Esperemos que essa seja sua pá de cal, que ele perca força dentro do partido e que tenha a sua capacidade de ação política neutralizada, pelo bem do próprio governo.[xi]

*Matheus Colares do Nascimento é Mestre em filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutorando em filosofia pela University de East Anglia (UK)

Notas


[i]http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?naoPublicado=&idAto=140539&visao=original

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/01/presidente-lula-ve-sucessao-de-erros-e-derrota-para-oposicao-em-norma-sobre-pix.shtml

[iii] https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/janeiro/nova-norma-fortalece-combate-a-crimes-financeiros-e-nao-monitora-transacoes-diarias

[iv] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2025/01/azul-e-gol-fecham-acordo-com-a-uniao-para-renegociar-dividas-de-r-75-bilhoes.shtml

[v] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2024/10/haddad-diz-que-batata-quente-dos-gastos-virou-prioridade-nos-debates-com-lula.shtml

[vi] Ibid.

[vii] https://www.ocafezinho.com/2024/11/11/gleisi-diz-que-haddad-nao-consultou-o-pt-sobre-corte-de-gastos/

[viii] https://www.instagram.com/reel/DCRU5ZrJnJe/

[ix] https://exame.com/brasil/decisao-sobre-iptu-em-sp-deve-afetar-tarifa-de-onibus/

[x] https://veja.abril.com.br/economia/a-cutucada-de-lula-em-haddad-antes-da-reuniao-ministerial#google_vignette

[xi] Cf. também: https://www.youtube.com/watch?v=wVOJDtnHtJ0;


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