Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*
A visão de curto prazo, tanto dos governantes à esquerda quanto à direita, gera déficits na conta corrente, criando uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica
Era uma vez um país que poupava e investia 18% do seu PIB, quando os países que crescem rapidamente e fazem o “catching up” poupam cerca de 30%. Por outro lado, o déficit na conta corrente do país era de 2% do PIB, ou seja, o país gastava mais do arrecadava e sua dívida externa aumentava. “O que fazer?”, pergunta o governo. A solução chega rápido a ouvidos ansiosos: é tomar emprestado e crescer com poupança externa. Dez anos depois, porém, o que aconteceu? A taxa de investimento continuou a mesma e o país continuou a crescer pouco, muito pouco.
O excelente correspondente do jornal Valor econômico em Genebra Assis Moreira apresentou em 29 de fevereiro algumas das informações que o Human Development Report 2023/2024 do Pnud/ONU apresentará nos próximos dias. A história triste é que os países, muito parecidos com a nossa historieta do parágrafo anterior, estão muito endividados e semiestagnados. “De 59 economias em desenvolvimento examinadas, 32 têm notas de crédito classificadas abaixo do grau de ‘não investimento’. Pelo menos 36 estão classificadas como em risco ou em alto risco de endividamento”. Pior: “Entre 22 dos países mais pobres, o pagamento do serviço da dívida representa mais de 20% de sua receita”. E, segundo o FMI, representa 59,1% do PIB desses países.
Para não haver dúvida sobre o absurdo da situação, “o Pnud estima que países de baixa renda gastam 2,3 vezes mais em média com o pagamento de juros do que com assistência social para sua população, 1,4 vez mais que com gastos domésticos com saúde ou 60% do que destinam para educação”.
Desculpem a citação, mas aí estão os dados de uma tragédia que está sempre acontecendo – uma tragédia contínua que de tempos em tempos se agrava. E que confirma uma tese mais geral que defendo: quanto mais um país se endivida, menos cresce.
Sei que estou indo contra a corrente – contra o saber estabelecido. Estou dizendo que os países devem evitar o mais possível déficits em conta corrente e, portanto, não devem se endividar em moeda estrangeira.
Um comportamento frequente de ministros de finanças dos países em desenvolvimento é buscarem reduzir o déficit público para conseguir crédito no exterior e, assim, poder contar com a poupança externa. Serem responsáveis no plano fiscal é ótimo, mas não por esta razão. Excetuados alguns casos especiais, o principal deles é o país já estar crescendo em ritmo de milagre. Então, a propensão marginal a consumir cai, a propensão marginal a investir aumenta, e a taxa de substituição da poupança interna cai, e a poupança externa se soma à interna. Fora dessa situação, os países não devem buscar poupança externa para crescer, porque a poupança externa simplesmente substitui a interna, enquanto o país se endivida.
Não devem tentar crescer com poupança externa por dois motivos que ocorrem sucessivamente. O primeiro deles é uma das ideias básicas do “Novo Desenvolvimentismo”. Quando um país tenta crescer com poupança externa, ou seja, com déficits na conta corrente financiados por empréstimos ou investimentos diretos, a taxa de câmbio do país se aprecia no longo prazo (enquanto estiverem entrando mais dólares do que saindo devido aos déficits), as empresas industriais perdem competitividade, e o país, ao invés de se industrializar, se desindustrializa. Este fato já conta com um número elevado de comprovações empíricas.
O segundo motivo se subdivide em dois. Primeiro, é o elevado peso do serviço da dívida externa pública sobre o PIB, cujos dados recentes vimos acima. Como pode o Estado investir se 20% de sua receita é destinada a pagar juros ao exterior? Sem falar no custo da dívida interna. Segundo, é o risco de o país quebrar, entrando em uma crise de balanço de pagamentos.
Uma crise dessas é provável nos países de renda baixa, mas acontece também em países de renda média, como é o caso da Argentina desde o governo de Mauricio Macri. E pode acontecer até em países ricos, como foi o caso do Reino Unido em 1976. Ela prejudica o crescimento de um país por muitos anos.
Os países ricos ignoram o primeiro motivo, mas não podem ignorar o segundo. Diante da ameaça de crise financeira nos países mais frágeis, eles poderiam limitar seus empréstimos a esses países exportar seus capitais – não os investimentos diretos das multinacionais que não são causa de crise de balanço de pagamentos porque não têm data de vencimento.
Ao invés disto, porém, encontraram uma “solução”. John Williamson, nos anos 1980 (a década da grande crise da dívida externa), formulou o conceito de taxa de câmbio de “equilíbrio fundamental”, que eu prefiro chamar de taxa de câmbio de “equilíbrio de dívida externa”. É um conceito simples: o país pode se endividar em moeda estrangeira desde que seus déficits em conta corrente em relação ao PIB não sejam maiores que o crescimento do PIB. Em outras palavras, desde que a relação dívida externa/PIB não aumente, não ocorrendo, portanto, o problema do peso excessivo de juros, nem a ameaça de crise de balanço de pagamentos.
Há uma fórmula que permite aos economistas ortodoxos calcularem essa taxa de câmbio “de equilíbrio” e a propô-la como o caminho do desenvolvimento para a periferia do capitalismo. Essa política, porém, implica sobreapreciação cambial (o que já é péssimo) e mais, se o país descuidar quanto ao limite do equilíbrio de dívida externa (o que é muito comum), verá o custo do serviço da dívida aumentar senão entrar em crise de balanço de pagamentos.
Estas considerações me levam afirmar que déficits na conta corrente são sempre maus, mesmo se forem financiados por investimentos diretos, porque sempre apreciam o câmbio. E também empréstimos em moeda estrangeira são sempre maus não apenas pelo primeiro, mas pelos dois motivos já discutidos.
Por que, então, os países periféricos insistem em se endividar? Porque no curto prazo, enquanto não operam os motivos negativos, as entradas de capitais de empréstimo podem aumentar a taxa de crescimento. E porque os governantes, sejam de direita ou de esquerda, além de pensarem só no curto prazo, preferem déficits na conta corrente e uma taxa de câmbio porque isto aumenta o poder aquisitivo dos salários e eles são reeleitos. Como se vê, há aqui uma perfeita sintonia entre o populismo dos políticos e a ortodoxia econômica.
*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) e ex-ministro da Fazenda. Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (Editora FGV).
Publicado originalmente no jornal Valor econômico.
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