Por RENATO DAGNINO*
Aprendendo com a greve das instituições federais de ensino superior
1.
Dois artigos[i] recentemente publicados, pelo seu pertinente conteúdo e pela importância de seus autores, devem ter sido lidos atentamente pelas lideranças que se envolveram com a greve e pelo que aqui denomino, circunscrevendo-as, esquerda universitária.
Por essa razão, me animei a tentar conversar com ela sobre aspectos que, complementando as avaliações e proposições ali contidas, podem ajudar nosso aprendizado.
Faço isso comentando brevemente algumas de suas passagens na ordem em que os artigos foram publicados e que, em cada caso, foram neles mencionadas. Com isso, pretendo, a partir das excelentes contribuições desses destacados professores, enriquecer o debate que, por certo, como eles dizem, deve marcar os “próximos passos” sem “medo” e com muita “esperança”.
Esclareço, desde logo, que as passagens foram selecionadas à luz do entendimento que venho acumulando ao longo de minha participação em grupos acadêmicos (na Unicamp e em outras instituições de ensino e pesquisa), sindicais (como o GT de C&T do Andes) e políticos (como os NAPPs da FPA e nos Setoriais do PT).
Por isso, sem justificar ou argumentar, remeto quem me lê e está interessado em seguir a reflexão e a discussão aos textos em que venho divulgando esse meu entendimento.
2.
Começando com o primeiro artigo, de Luís Eugênio e Naomar, destaco:
Primeira passagem: “… é preciso construir um programa político articulador de todos os segmentos populares em suas lutas diversificadas: assalariados/as em luta por melhores condições de trabalho, trabalhadores/as precarizados/as na busca por direitos…”.
Meu comentário: Em relação à constituição desse arco de alianças e do significado de suas proposições para balizar a ação da esquerda universitária, tenho enfatizado a necessidade de nele incorporar com centralidade a Economia Solidária[ii]. E de diferenciá-la de outras “economias” que, apesar de apresentarem algum grau de inconformidade em relação à economia capitalista, não propõem uma alternativa com a potência que demanda a crise de nosso capitalismo periférico[iii]. Mais do que outros segmentos, ela é capaz e produzir um ciclo de crescimento econômico, de projetar um novo estilo de desenvolvimento[iv] e de conferir governabilidade[v] ao atual governo para implementar aquele programa político.
Segunda passagem: “… Na dimensão acadêmica, as IES organizariam suas atividades de modo a favorecer a coprodução e a disseminação de um saber emancipador que reflita as realidades de educandos/as e educadores/as, identificando as necessárias transformações…” … “Essas são as características principais de um projeto de Universidade a ser defendido, urgentemente, na sociedade, no parlamento e no governo. Trata-se de uma proposta que se opõe radicalmente não apenas ao projeto autoritário de aniquilamento da Universidade, mas também a um projeto de educação acrítica, tecnicista e adestradora”.
Meu comentário: Num plano mais abarcante, é crescente a percepção que cabe à esquerda universitária enfrentar o desafio de construir um novo pacto sobre a educação na periferia do capitalismo[vi].
Terceira passagem: “A Universidade pública, solidária, popular e inclusiva, hoje interessa, sobretudo, às classes trabalhadoras e às populações excluídas…”
Tenho insistido também, num plano mais específico, na necessidade de reorientar nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão visando ao reprojetamento da tecnociência capitalista mediante uma Adequação Sociotécnica que leve ao desenvolvimento da tecnociência solidária[vii]. E chamado a atenção para iniciativas como o Programa Manuel Querino de formação de quase 200 professores dos IFs como formadores dos atores da economia solidária e para a possibilidade de que as eleições municipais possam vir a catalisar a mudança dessas agendas num sentido de baixo para cima[viii]. No mesmo sentido, tenho chamado a atenção para iniciativas como a curricularização da extensão[ix] que podem apontar caminhos para trazer para dentro da universidade aquilo que “… hoje interessa … às classes trabalhadoras e às populações excluídas…”
3.
Sobre o segundo artigo, de João Carlos Salles, destaco:
Primeira passagem: “Continua em curso e é acelerado um processo de destruição da universidade pública tal como a conhecemos ou, melhor ainda, como a desejamos, enquanto parte essencial de um projeto de nação soberana e radicalmente democrática. Os sinais são muitos, alguns antigos, enquanto outros tornam-se agora mais fortes”.
Meu comentário: De fato, esses “sinais” vêm sendo apontados desde a década de 1970, quando os fundadores do Pensamento Latino-americano sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade criticaram a caricatura ofertista-linear adotada por nossa elite científica para elaborar de modo hegemônico nossa política cognitiva e a inaugurar sua orientação transferencista[x]. E é também verdade que a orientação empreendedorista[xi] que com essa orientação passa a conviver sob a égide do neoliberalismo, tem causado um progressivo afastamento da universidade pública do seu “projeto de nação soberana e radicalmente democrática”. A sucessiva aplicação da equivocada idealização que fazem essa elite e seus tecnocratas da realidade dos países centrais vem minando a tal ponto o ethos da universidade que seus professores mais jovens sequer conhecem o componente de soberania tecnocientífica que animava o nacional-desenvolvimentismo.
Segunda passagem: “… ao longo de décadas, Marilena Chauí tem insistido na corrosão interna da universidade, que ora se transformaria em operacional. Sua reflexão é, sem dúvida, uma das mais consistentes contribuições intelectuais a esse respeito, flagrando razões externas e internas à degradação da essência mais virtuosa da universidade”.
Meu comentário: A corajosa e pouco usual menção às “razões internas” desse processo de “corrosão” é essencial! Mais do que isso, é vital para a esquerda universitária mostrar à sociedade que no nosso meio não somos todos iguais. É necessário identificar os arautos dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse (cientificismo, produtivismo, inovacionismo e empreendedorismo) que invadem a universidade pública. Aqueles que, autodenominando-se pesquisadores-empreendedores são corresponsáveis pela sua crescente disfuncionalidade e fragilidade que levam às greves que a todos prejudicam[xii].
Terceira passagem: “Afinal, se outrora temíamos que as fundações funcionassem como uma espécie de puxadinho das universidades, cabe temer agora que as universidades se tornem um puxadinho das fundações.”
Meu comentário: A disseminação no seio da comunidade de pesquisa brasileira do inovacionismo (aquilo que eu tenho caricaturado como o filhote tecnicista do neoliberalismo) tem sido avassalador. Para os que assistiram sua gestação no início dos anos de 1980, com a criação das primeiras incubadoras universitárias de empresas, é triste constatar como ele contaminou nossas agendas de ensino, pesquisa e extensão já então emuladores do que se fazia no Norte. Sob a alegação de que a chamada terceira missão nos deve orientar para a geração de inovações que, como está mais do que empiricamente demonstrado, não interessam às empresas brasileiras, aqueles pesquisadores-empreendedores estão transformando a universidade pública num “puxadinho” desabitado.
Quarta passagem “Será que, nesse contexto de diminuição da aura da instituição e de aprisionamento de seu orçamento a interesses externos ou parciais, algum iluminado não aparecerá com solução de uma Empresa Brasileira de Serviços Universitários, uma EBSERU?”
Meu comentário: Minha impressão, a julgar pelo que há tempos venho assistindo ao longo da pesquisa-ação que por dever de ofício realizo como professor-militante da política de CTI, essa “solução” já apareceu. A proposta de “oessização” das universidades estaduais paulistas que de tempos em tempos vinha aparecendo já foi magistralmente anunciada[xiii].
Quinta passagem: “… devemos convir, o programa Future-se pode ter sido um mero ensaio de amadores. Aliás, em minha experiência na instituição, nos diálogos que pude ter quando um governo fascistóide tentou impingir-nos a proposta, identifiquei adeptos do Future-se em lugares os mais improváveis”.
Meu comentário: O fato de professores de esquerda, preocupados em retribuir ao povo pobre que com seu imposto paga seu salário, seu laboratório equipado e seu ar-condicionado funcionando, considerarem que é seu dever desenvolver inovações, patentear e gerar startups, é uma das consequências da disseminação do inovacionismo. Por isso, quando criticamos aquele “ensaio de amadores”[xiv] também nos surpreendeu a reação de alguns colegas.
Para concluir, dirigindo-me à esquerda universitária, combino a penúltima frase de João Carlos, “Não podemos renunciar à nossa condição de professores e de membros da comunidade universitária; não podemos abrir mão da própria universidade, que, afinal de contas, é nosso horizonte e nossa razão de ser” com a epígrafe do artigo de Luís Eugênio e Naomar que fala em “acumular forças e buscar alianças com outros setores dispostos a lutar pela reconstrução do país”. Que sigamos aprendendo com eles!
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Tecnociência Solidária, um manual estratégico (Lutas anticapital).
Notas
[i] Universidades Públicas: os próximos passos, de Luís Eugênio de Souza e Naomar de Almeida Filho; e O medo e a esperança, de João Carlos Salles.
[ii] Economia solidária e política.
[iii] A Economia Solidária e as outras “economias”.
[iv] A Economia Solidária como eixo da reconstrução nacional.
[v] Saídas para o momento político;
[vi] Formación docente y estudiantil: reflexiones sobre la universidad como lugar formativo.
[vii] Para Explicar a Tempestade e Sulear a Bonança.
[viii] Propostas para os candidatos da esquerda.
[ix] A Curricularização da Extensão e a Extensão Disciplinar Solidária.
[x] Política de ciência, tecnologia e inovação.
[xi] Política de ciência, tecnologia e inovação — parte 2.
[xii] Ciência, Tecnologia e Inovação, e greve na universidade.
[xiii] A “questão do 1% da Fapesp” e a novidade que apareceu na ALESP.
[xiv] Future-se e o aporte de recursos de empresas.
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA