Dialética do racismo

image_pdf

Por JUAN MICHEL MONTEZUMA*

Considerações sobre o movimento pela autonomia política negra

Desde que o fim da escravidão promoveu uma mudança no estatuto do trabalho, tornando-o “livre”, o povo negro vem enfrentando um longo ciclo de lutas que pode ser sintetizado no seguinte desafio: a busca por autonomia política.

Um problema certamente que não se mantém nos mesmos termos hoje no século XXI, tal como estava posto para as primeiras gerações de negros “livres” que experimentaram na imobilidade social, na inadequação ao mercado de trabalho, tanto por conta do racismo aberto quanto da ausência de capitais necessários para integrar, nas mesmas condições que os brancos pobres a sociedade do trabalho assalariado, especialmente em seus eixos mais dinâmicos, que atingiriam níveis de industrialização incipiente na primeira metade do século XX, mesmo para uma zona periférica do sistema interestatal capitalista.

Ainda assim, mesmo que estejamos em contexto econômico relativamente diferente, temos uma questão persistente, pois mesmo que se considerarmos a sociedade de castas imperial como um constructo político desagregado há muito tempo, substituída em nome do progresso social por formas mais democráticas de organização do poder político, a falta de autonomia do povo negro persiste, mesmo na atual forma política da sociedade nacional.

Como explicar, então, essa permanência e a aparente contradição na qual ela se assenta? Primeiramente, como toda problematização histórica, e também sociológica, precisamos tomar os elementos que constituem esse quadro através da diacronia. Submetendo assim, a posição do nosso objeto, o povo negro, no tempo presente a um estranhamento. Noutras palavras, precisamos ponderar sobre como hoje, numa era de comunicação instantânea e massificação da participação no debate público o povo negro pode carecer de autonomia?

Sendo assim, tão raros os nossos líderes, tão fragmentados nossos movimentos e tão tutelada o grosso da nossa massa popular, seja ela urbana ou campesina, nordestina ou sudestina e assim em diante. Necessitamos perceber a permanência desses problemas como parte um movimento político geral da nossa gente no tempo, necessitamos recolocar os problemas da comunidade em termos de processo histórico.

Ritmado por um ciclo conflituoso de construção e destruição de mecanismos sociais de representação política, onde a arquitetura das formas de participação do poder nunca encontra em nosso grupo racial algum gênio criador, e sim sujeito coadjuvante, logo então dominado. Pois mesmo sem estar entre os idealizadores e reformadores do regime político, o povo negro é condenado a manter essa ordem, ou forma de supremacia política de uma classe sob as outras, a fim de assegurar os seus mínimos vitais numa ditadura que não lhe pertence.

Assim, na dialética do racismo, podemos consolidar nossa posição comos cidadãos negros, com direitos e deveres? Sim, por quê, não? Desde que sejamos defensores de um ordenamento social, onde não dispomos de autonomia, podemos nos pintar e fazer, quase tudo que quisermos, exceto, obviamente, desafiar o pacto político firmado pelas elites econômicas e classe dirigente.

No regime de poder sob o qual vivemos, somos livres para opinar, discursar, segregar e fazer concessões, porém não somos livres para agir sem tutela, dirigir sem supervisão ou romper, radicalizando e subvertendo a forma política do nosso corpo social. Esse é hoje, ainda, inapelavelmente um direito dos brancos. Ainda senhores das nossas vidas em todas as esferas da vida social responsáveis por dar sustentáculo a atual organização do poder político.

Nessa perspectiva, vai ficando mais nítido também as relações histórico-sociológicas entre as formas políticas da sociedade nacional e as posições de subalternidade do nosso grupo racial. A transformação em um polo não se dá sem a alteração do outro. Dentro dessa dinâmica, se a configuração do regime muda, seja através de um golpe como em 1889; 1964 e 2016, uma revolução como em 1930, ou uma transição “democrática”, tal como se deu em 1985, é alterada também a estrutura político-institucional que assegura a estabilidade da ordem social. São modificadas em diferentes ritmos, é óbvio, as formas de dominação.

Entretanto, não há dúvida que a própria natureza conflituosa do processo corporificada no antagonismo dos grupos que dão o perfil formação social brasileira, leva também a modificação das condições de luta, abrindo assim, no caso da comunidade negra, o espaço social para o desenvolvimento movimentos políticos antirracistas de novo tipo através da nossa história.

Mesmo assim, se mantivermos a consideração de que o atual estado do povo negro é o da fragmentação política, veremos, mediante o devido estudo histórico desse grupo racial, que o problema da ausência de autonomia política persiste. O que pode nos levar a consolidar a crítica de que, muito embora existam transformações nas possibilidades de intervenção política da comunidade negra, a situação de fragmentação evidencia a falta de autonomia no quadro geral da participação da comunidade negra no poder.

Dessa forma, os termos do nosso problema se tornam mais claros, pois percebemos que a autonomia política do negro é possível dentro do atual regime político, ela apenas não se dá de maneira geral, é filtrada, tutelada e, obviamente, restringida aos limites da ditadura burguesa. Logo, o problema da autonomia política negra é ausência de condições materiais para emergência na arena política do nosso povo enquanto sujeito coletivo consciente da sua unidade.

Outro elemento que podemos identificar de maneira melhor ao desenvolver essa crítica, mesmo que de forma incipiente tal como está nesse breve texto, é o caráter descontinuado da dominação e da resistência, assim como também o caráter perene de sua renovação.

Afinal, identificando que se a dominação se mantém historicamente através do conflito, antagonismos que são um conjunto de tensões sociais entre as formas de resistência e dominação, podemos considerar que naquilo que diz respeito ao problema da autonomia política negra, tanto sua defesa, quanto ataque estão em perpétua renovação, mas que pode sim ver suas condições fundantes serem esgotadas.

Nessa contradição entre renovação e finitude da sua capacidade de reprodução política, nem o racismo e o antirracismo são expressões políticas construídas por símbolos anacrônicos. Não, simplesmente não podem sê-lo, porque são fórmulas de disputa pelo poder que se renovam continuamente no tempo presente, formando incessantemente novos códigos para sua difusão no aqui e agora, enquanto, é claro, houverem condições materiais favoráveis para continuidade desse processo, ou em outros termos, para sua provável perpetuação em cenários futuros.

Por isso, não é absurdo dizer que, quando consideramos o problema da autonomia política negra em movimento, o jogo entre as formas de dominação e resistência não sem continuidade através do tempo como algo dado. Obviamente, se forem esgotadas as condições de reprodução política, um dos polos vai vencer, seja aquele onde se dá a produção às formas de dominação ou das formas de resistência. Noutras palavras, o racismo pode ainda ter uma longa existência em nossa história, mas a luta contra ele não.

Portanto, quais são os fatos, além desse perigo real, que no decorrer desse texto buscam nos compelir à reflexão? É possível responder alegando que talvez seja a real necessidade do nosso povo de apreender o problema da autonomia, ou mais precisamente a ausência dela na política da comunidade, como um movimento político geral cuja articulação podemos interpretar ao compreender a história como processo, uma forma de assimilação do transcorrer do tempo social que pode ter saído de moda no nominalismo acadêmico, mas ainda é muito arraigada na relação do nosso povo com a cultura na qual vive.

Talvez, também, porque apenas entendendo que o estado da realidade social é um processo em movimento, aqueles que buscam a transformação de alguns dos seus aspectos, ou a total transformação da sociedade, podem entender realmente entender de onde no nosso passado vieram os obstáculos estruturais e, por conseguinte, institucionais no caminho dessa tarefa histórica que é nossa libertação. Se os nossos notáveis não compreendem isso, seremos, sem dúvida, derrotados no século XXI, tal como fomos no século XX e nos outros que lhe antecederam.

*Juan Michel Montezuma, professor de história na educação básica e popular, é mestre em história social pela UFBA.

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES