Dicionário de música

Imagem: Glauco Rodrigues
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Por JEAN-JACQUES ROUSSEAU*

Prefácio do livro recém-traduzido

A música é, de todas as belas-artes, a que tem o vocabulário mais extenso e para a qual um dicionário é, consequentemente, o que há de mais útil. Assim, não se deve incluí-lo no rol das compilações ridículas que a moda, ou melhor, a mania dos dicionários, multiplica a cada dia. Se este livro é bem-feito, ele é útil aos artistas. Se ele é ruim, não o é pela escolha do assunto nem pela forma da obra. Assim, seria um erro rejeitá-lo já pelo título. É preciso lê-lo para julgá-lo.

A utilidade do assunto não fundamenta, hei de convir, a do livro; ela apenas justifica o seu empreendimento, e isso é tudo o que posso pretender. Eu bem sinto, aliás, o que falta à sua execução. Trata-se menos de um dicionário quanto à forma que de uma compilação de materiais para um dicionário, os quais apenas aguardam mãos hábeis para seu emprego. Há quinze anos, os fundamentos desta obra foram lançados tão às pressas, na Enciclopédia, que, quando quis corrigi-la, não pude lhe conferir a solidez que teria se eu tivesse disposto de mais tempo para melhor assimilar seu plano e para executá-lo.

Não concebi esta empresa por mim mesmo, ela me foi proposta; acrescentou-se o fato de que o manuscrito inteiro da Enciclopédia devia estar completo antes que uma só linha fosse impressa; deram-me apenas três meses para cumprir minha tarefa, e três anos seriam suficientes somente para ler, extrair, comparar e compilar os autores de que necessitava: mas o zelo da amizade cegou-me quanto à impossibilidade do sucesso. Fiel à minha palavra, à custa de minha reputação, executei rápido e mal, não podendo fazer bem em tão pouco tempo; no fim de três meses, meu manuscrito inteiro foi escrito, passado a limpo e entregue; desde então, não o revi mais. Se eu tivesse trabalhado volume por volume, como os outros, este ensaio, mais bem elaborado, poderia ter permanecido no estado em que fora feito. Não me arrependo de ter sido correto; mas me arrependo de ter sido temerário e de ter prometido mais do que podia executar.

Magoado por causa da imperfeição de meus artigos, à medida que os volumes da Enciclopédia apareciam, resolvi reformular o todo em meu rascunho e fazer, a meu bel-prazer, uma obra à parte, tratada com mais cuidado. Estava, ao recomeçar este trabalho, ao alcance de todos os recursos necessários. Vivendo no meio dos artistas e entre os homens de letras, podia consultar tanto uns como os outros. O sr. Abade Sallier fornecia-me, da biblioteca do Rei, os livros e manuscritos de que eu necessitava, e, dos nossos encontros, muitas vezes tirava esclarecimentos mais seguros que os de minhas pesquisas. Creio dever à memória desse honesto e sábio homem um tributo de reconhecimento que, seguramente, partilharão comigo todos os homens de letras aos quais ele pôde servir.

Meu retiro no campo esgotou todos os meus recursos, no momento em que começava a desfrutá-lo. Este não é o lugar de explicar as razões do meu retiro: concebe-se que, no meu modo de pensar, a esperança de fazer um bom livro sobre a música não era uma razão para recolher-me. Afastado dos divertimentos da cidade, logo perdi os gostos a eles relacionados; privado das comunicações que poderiam me esclarecer sobre meu antigo objeto, deste também perdi todas as perspectivas; e, admitindo que nesse tempo a arte ou sua teoria tenham feito progressos, não estando nem mesmo ao alcance de nada disso saber, não estive mais em condições de acompanhá-los.

Convencido, no entanto, da utilidade do trabalho que havia empreendido, nele trabalhava de tempos em tempos, mas sempre com menos sucesso e sempre sentindo que as dificuldades de um livro dessa espécie exigem, para vencê-las, esclarecimentos que eu não estava mais em condições de adquirir, e um ardor de interesse que eu havia cessado de lhe dedicar. Enfim, desesperançoso de jamais estar em condições de melhor fazer e desejando abandonar para sempre as ideias das quais meu espírito se afasta cada vez mais, ocupei-me, nestas montanhas, em reunir o que eu havia feito em Paris e em Montmorenci; e, deste amontoado indigesto, resultou a espécie de dicionário que se vê aqui.

Este histórico pareceu-me necessário para explicar como as circunstâncias forçaram-me a entregar, em condição tão ruim, um livro que eu poderia ter feito melhor, com os recursos dos quais sou privado. Pois sempre acreditei que o respeito que se deve ao público não é o de lhe dizer coisas insípidas, mas apenas o que é verdadeiro e útil ou pelo menos o que julgamos como tal; de nada lhe apresentar sem ter dispensado todos os cuidados de que se é capaz e de acreditar que, fazendo o seu melhor, nunca se faz o bastante para ele.

Não acreditei, no entanto, que o estado de imperfeição em que fui forçado a deixar esta obra devesse impedir-me de publicá-la; pois, sendo útil à arte, é infinitamente mais fácil fazer um bom livro desta espécie a partir deste que ofereço do que ter de começar a criar tudo. Os conhecimentos necessários para isso talvez não sejam muito grandes, mas são muito variados e raramente encontram-se reunidos na mesma cabeça. Assim, minhas compilações podem poupar muito trabalho àqueles que estão em condição de nelas colocar a ordem necessária; e alguém, apontando meus erros, pode fazer um excelente livro, mas jamais teria feito nada de bom sem o meu.

Advirto, então, àqueles que somente querem tolerar livros bem-feitos, que não empreendam a leitura deste; logo se sentirão enjoados. Mas, àqueles que o mal não desvia do bem; aqueles que não são tão ocupados pelos erros, que nada exigem para redimi-los; aqueles, enfim, que terão boa vontade em buscar aqui algo para compensar os meus, talvez encontrem aqui bastantes bons verbetes para tolerar os maus, e até nos maus, bastantes observações novas e verdadeiras, para que valham a pena de ser triadas e escolhidas em meio ao resto. Os músicos leem pouco, e, no entanto, conheço poucas Artes em relação às quais a leitura e a reflexão sejam tão necessárias. Pensei que uma obra com esta forma seria precisamente a que lhes conviria, e que, para torná-la mais proveitosa possível para eles, dever-se-ia dizer menos o que sabem do que aquilo que teriam a necessidade de aprender.

Se os executantes inexpertos e os musicastros muitas vezes ressaltam erros aqui, espero que os verdadeiros artistas e os homens de gênio encontrem pontos de vista úteis, dos quais saberão tirar proveito. Os melhores livros são aqueles que o vulgo despreza e que as pessoas de talento aproveitam sem deles nada dizer.

Após ter exposto as razões da mediocridade da obra e as da utilidade que estimo que ela pode ter, neste momento deveria entrar no detalhe da própria obra, apresentando um resumo do plano que tracei para mim e a maneira por meio da qual tentei segui-lo. Mas, à medida que as ideias a ela relacionadas apagaram-se do meu espírito, o plano sobre o qual as arranjava da mesma maneira apagou-se da minha memória.

Meu primeiro projeto era tratar os verbetes de maneira tão comparativa, de ligar tão bem as sequências, por meio de remissões, que, com a comodidade de um dicionário, o todo teria a vantagem de um tratado fluente. Mas, para executar este projeto, teria sido necessário que se me tornassem constantemente presentes todas as partes da Arte, não deixando de tratar nenhuma sem me lembrar das outras; o que a falta de recursos e meu gosto arrefecido logo tornaram impossível, e que também me teria custado bastante realizar em meio às minhas primeiras anotações, e ainda pleno de meu primeiro fervor.

Abandonado a mim mesmo, não tendo mais eruditos nem livros para consultar; consequentemente forçado a tratar cada verbete por si mesmo e sem considerar aqueles que lhe diziam respeito, tive de fazer muitas repetições para evitar lacunas. Mas acreditei que, num livro desta espécie, era ainda um mal menor cometer falhas que arriscar omissões.

Empenhei-me, sobretudo, em tornar bem completo o vocabulário, e não somente sem omitir algum termo técnico, mas preferindo, às vezes, ultrapassar os limites da Arte a não atingir meus objetivos: muitas vezes, tal fato obrigou-me a espargir palavras italianas e palavras gregas neste dicionário; algumas tão consagradas pelo uso que é preciso mesmo compreendê-las na prática; outras igualmente adotadas pelos eruditos e às quais, considerando o desuso daquilo que exprimem, não foram fornecidos sinônimos em francês. No entanto, tentei me limitar à minha regra e evitar o excesso de Brossard, que, ao apresentar um dicionário francês, concebe o seu vocabulário todo italiano e o enche de palavras absolutamente estranhas à Arte de que trata. Pois, quem jamais imaginaria que a virgem, os apóstolos, a missa, os mortos, sejam termos de música, pelo fato de haver músicas relativas àquilo que exprimem; que estas outras palavras: página, folheto, quatro, cinco, garganta, razão, já sejam também termos técnicos, porque nos servimos deles algumas vezes ao falarmos sobre arte?

Quanto às partes que concernem à arte sem que lhe sejam essenciais, e que não são absolutamente necessárias à compreensão do resto, evitei o quanto pude abordá-las. Tal como a dos instrumentos de música, parte ampla e que sozinha preencheria um dicionário, sobretudo em relação aos instrumentos dos antigos. O sr. Diderot havia se encarregado dessa parte na Enciclopédia, e como ela não fazia parte do meu primeiro projeto, não cuidei de acrescentá-la em seguida, depois de ter intensamente sentido a dificuldade de executar este projeto tal como ele era.

Tratei a parte harmônica no sistema do baixo fundamental, embora este sistema, em tantos aspectos imperfeito e defeituoso, não seja absolutamente, a meu ver, aquele da natureza e da verdade, e do qual resulta um estofo surdo e confuso, antes que uma boa harmonia. Mas é um sistema, enfim; é o primeiro e era o único até o do sr. Tartini, no qual se haviam unido, por meio de princípios, essas multidões de regras isoladas que pareciam todas arbitrárias e que faziam da arte harmônica antes um estudo de memória que de raciocínio. Ainda que, na minha opinião, o sistema do sr. Tartini seja o melhor, embora ainda não tão amplamente conhecido e sem possuir, pelo menos na França, a mesma autoridade que o do sr. Rameau, não lhe coube substituí-lo em um livro destinado principalmente à nação francesa.

Contentei-me, então, em expor da melhor maneira possível os princípios desse sistema em um verbete de meu dicionário; e, de resto, acreditei dever essa deferência à nação para a qual escrevia, ao preferir seu sentimento ao meu a respeito do fundamento da doutrina harmônica. No entanto, na ocasião não tive de me abster das objeções necessárias à compreensão dos verbetes de que precisava tratar; isso teria sido sacrificar a utilidade do livro em prejuízo dos leitores; teria sido adular sem instruir e trocar a deferência pela covardia.

Exorto os artistas e os amadores a lerem este livro sem desconfiança e a julgarem-no com a mesma imparcialidade que tive ao escrevê-lo. Rogo-lhes que considerem que, como não exerço sua profissão, não tenho aqui outro interesse a não ser o da arte, e, mesmo que tivesse, deveria naturalmente favorecer a música francesa, na qual posso ter um lugar, contra a italiana, na qual não posso ser nada. Mas, visando sinceramente ao progresso de uma arte que eu amava apaixonadamente, meu prazer calou minha vaidade. Os primeiros hábitos ligaram-me por muito tempo à música francesa e por ela era abertamente entusiasta. Comparações atentas e imparciais levaram-me à música italiana e a ela me entreguei com a mesma boa-fé.

Se alguma vez gracejei, foi para responder aos outros no mesmo tom; mas não ofereci ditos espirituosos como toda prova, como eles o fizeram, e só gracejei depois de ter raciocinado. Agora que os infortúnios e os males enfim me liberaram de um gosto que havia conseguido poder demais sobre mim, só pelo amor à verdade persisto nos julgamentos que unicamente o amor à Arte me fez sustentar. Mas, num trabalho como este, consagrado à música em geral, conheço apenas uma que, não sendo de nenhum país, é a de todos; nunca entrei na querela de duas músicas, a não ser quando se tratou de esclarecer algum aspecto importante ao progresso de ambas. Cometi muitos erros, sem dúvida; mas estou certo de que a parcialidade não me fez cometer nenhum deles. Se ela faz com que me seja erroneamente imputado algum erro pelos leitores, o que posso fazer? São eles, então, que não querem que meu livro lhes seja bom.

Se em outras obras vimos alguns verbetes pouco importantes que também fazem parte desta, aqueles que poderão fazer essa observação terão a boa vontade de lembrar que, em 1750, o manuscrito saiu de minhas mãos sem que eu saiba o que houve com ele desde então. Não acuso ninguém de ter tomado meus verbetes, mas não é justo que outros me acusem de ter tomado os seus.

*Jean-Jacques Rousseau (1712-1788) foi filósofo e escritor. Autor, entre outros livros, de Do Contrato Social.

Referência


Jean-Jacques Rousseau. Dicionário de música. Tradução: Fabio Stieltjes Yasoshima. São Paulo, Unesp, 2021, 196 págs.

 

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