Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*
Comentários sobre um dos mais importantes regentes do Brasil
Na madrugado do dia 17 de agosto de 2022 se foi nosso querido maestro, aos 96 anos bem vividos, marcados por extraordinária dedicação à sua arte. E ao fomento da cultura musical, a contracorrente de um retrocesso planetário.
Muita gente acostumou-se a seus programas de rádio e TV por décadas a fio, divulgando música clássica para as massas, com doutos comentários. Atuou na Globo, Eldorado, Cultura, e nesta última até quase o ano de sua morte. A par com a carreira de maestro de casaca e batuta, foi crítico militante de jornal.
Aluno de Hans-Joachim Koellreuter e discípulo de Eleazar de Carvalho, este, ante a vocação e os talentos do jovem, tomou-o sob suas asas. Fez dele seu assistente na Orquestra Sinfônica Brasileira e cuidou de sua formação, com bolsas no exterior.
O jovem maestro, que tinha um traço saliente de humor e molecagem, distinguiu-se pela valorização das vanguardas e pela experimentação que o aproximou do popular. Interessou-se pela poesia concreta e fez recitais misturando-a à musica. Isso nos anos 1960, quando tudo era possível. Sempre irreverente, mas profissionalmente seríssimo, criou, com Paulo Herculano, Samuel Kerr e Henrique Gregori, todos eles regentes e instrumentistas profissionais, eruditos de alto bordo, o quarteto vocal Mestres Cantores, que se apresentava com sobrepelizes de alva renda, em camuflagem de coroinha.
O experimento que mais celeuma originou, pela inusitada combinação, foi a escalação de Elizeth Cardoso, que sobressaía entre as cantoras populares, como solista nas Bachianas no. 5. Abalando as convenções, ela soltou a poderosa voz no espaço nobre do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e no de São Paulo.
Depois nosso maestro faria Alaíde Alaúde, com Alaíde Costa e seu timbre incomum, capaz de cromatismos incríveis, rivalizando com cantoras de jazz como Sarah Vaughn e outras. Ela brilhou num recital de melodias medievais e renascentistas, no Theatro Municipal de São Paulo.
Se selecionava cantoras populares para solfejar música erudita, Diogo Pacheco podia reverter o processo, convocando artistas do bel canto para interpretar números pop, que ouvíamos habitualmente entoados por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa. O espetáculo no Teatro Maria Della Costa chamou-se A Jovem Guarda em estilo clássico. Orquestra de câmara e cravo no palco, Zwinglio Faustini e seu belo basso profondo, Eládio González, Stella Maria: o resultado foi extravagante e divertido. Aqueles homens sisudos, de traje a rigor, em poses de cantor de ópera, escandindo com a voz potente e educada frivolidades como “Ei Ei/ que onda/ que festa de arromba…” – e por aí afora… É de lamentar que de nada disso restem gravações, por penúria do maestro e desinteresse das empresas.
Outra iniciativa pouco ortodoxa deu-se no João Sebastião Bar, boate de Paulo Cotrim em pleno coração da concentração estudantil, na esquina da rua Major Sertório com a Maria Antônia em que ficava a Faculdade de Filosofia. Patrocinada por intelectuais e artistas, a casa tornou-se um sucesso. Ali pontificaram como atrações fixas a cantora Claudete Soares e o pianista Pedrinho Mattar, este um grande nome do jazz, de prestígio internacional, que tocou até na Casa Branca.
Nosso maestro encarregou-se da programação de música erudita do simpático endereço, decisivo na difusão da Bossa Nova em São Paulo, de que se tornou uma espécie de embaixada. Também encenava shows “de bolso” interessantes e variados. Num desfile ininterrupto de atrações, passaram por lá de Tom Jobim a Elis Regina, do Tamba Trio a Geraldo Vandré.
Em seu afã de levar a música clássica a audiências mais amplas, Diogo Pacheco compôs inúmeras trilhas sonoras de montagens teatrais e cinematográficas. Seu trabalho para o filme Veredas da salvação, dirigido por Anselmo Duarte em adaptação de peça de Jorge Andrade, ganhou o prêmio Governador do Estado, o maior do país. Era requestado pelos mais influentes diretores do palco, em peças relevantes.
Quem teve a sorte de ter contato com a brilhante carreira e feitos inolvidáveis do maestro, pode contar, sorte redobrada, com a biografia Diogo Pacheco, um maestro para todos, de Alfredo Sternheim.
*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul).
A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA