Por VINÍCIO CARRILHO MARTINEZ*
1° de abril é o dia da mentira e do golpe de 1964
Considerações iniciais
Objetivamente, diremos que: onde desfila a miséria humana, já se destilou o ódio social – objetivando-se quem “poderia” sofrer violências e negações. Esse é o tipo de ódio que gruda e teima, como segunda pele. É esse ódio que faz distinção de vida: quem deve viver, quem pode (“merece”) morrer. Esse tipo de ódio é retratado em nossa história como um contínuo, um assombroso eterno retorno, em continuidade ao escravismo em sua mentalidade e nas suas práticas.
Esse ódio social nos explica porque modos de produção antigos, obsoletos, necrosados, atávicos como marquises de mitologias degeneradas, ainda subsistem no Brasil. Trata-se de um ódio escravista, encrustado, sacramentado religiosamente, supremacista, condescendente com a morte planejada e aguardada. Por isso vemos tantas pessoas serem resgatadas das condições de trabalho análogas à escravidão. Em alguns casos há até grilhões.
Esse ódio social ainda exemplifica o fato de que o Brasil combinou perfeitamente, num hibridismo de plantation, a escravidão e o capitalismo – na fase de acumulação primitiva de capitais. O consumo e o bem-estar sempre foram do colonizador.
Desse modo, resta evidente que, a luta pela integralidade dos Direitos Humanos Fundamentais, classistas, contudo, pela angular de quem olha a “contrapelo”, tem por objeto central a derrota do ódio social, racista, misógino, disruptivo da dignidade humana.
Um pouco mais sobre o objeto
A luta pelos Direitos humanos continua, é contínua e é sempre uma luta sistêmica, especialmente contra o arbítrio, as desigualdades, as intolerâncias, e toda forma de autocracia. É uma Luta pelo Direito, no sentido de Rudolf Von Ihering,[1] como luta política por dentro da luta de classes.
Para vermos a luta de classes, basta-nos abrir a janela e olhar para as ruas – sobretudo, se estiverem afastadas do conforto das classes médias em seus labirintos de condomínios excludentes, prontos a repelir, banir, como ávidos e hábeis sistemas banópticos.
O dia 1º de Abril de 2023, o primeiro sob a vigência da democracia ainda insuficiente, no pós-golpe de Estado de 2016, deve assim ser visto: ícone do atentado contra a nação, o povo, a classe trabalhadora, os pobres, as mulheres negras e os indígenas.
O golpe de 1964 só trouxe arbítrio e trevas, gerou por exemplo 2018 e as piores sequelas fascistas. Ainda estão em todo lugar. Assim, o dia 1° de abril é o dia da mentira e do golpe de 1964.
O golpe foi real, até hoje tem efeitos maléficos no povo e no Estado, porém, é Mentira (maiúscula) que houvesse iminência de comunismo. E, pior ainda, que o comunismo fosse prejudicial ao país. O comunismo não come criancinhas, mas fascistas degenerados sim; aliás, o fascista-mor desse país gaba-se de “ter pintado um clima”, com meninas de 12 anos.
O entreguismo da soberania nacional, as torturas, os assassinatos, as gravíssimas violações de direitos humanos, o AI-5 que eliminou formalmente os direitos fundamentais, tudo isso foi muito real, no pós-64. Os efeitos dessa realidade, escondidos em escombros de mentiras, tudo isso foi e ainda é muito real.
Portanto, o dia 1° de Abril deve ser considerado como o dia da pior mentira nacional. O dia em que teve início o planejamento meticuloso da corrupção dos nossos símbolos, das nossas riquezas nacionais, da própria “alma brasilis” – com reflexos na incapacidade de reflexão histórica que ainda nos compele.
Também deve ser tido como o dia da verdade, da verdade histórica impulsionada pelas inúmeras lutas de resistência política e popular. O dia da verdade que até hoje buscamos, e lutamos para que não seja esquecido. tratamos da luta de todos e de todas que perseveram na luta pelos direitos humanos – agora como eixo da diversidade cultural brasileira, nosso processo civilizatório, pela dignidade do povo, pela mais justa e equilibrada “unidade na diversidade”.
Pois, é disso que tratam os Direitos Humanos. Acrescente-se que devemos tratar dos direitos humanos fundamentais, ou seja, da fixação de urgência da dignidade do povo pobre, negro e oprimido. Como urgência, urgentíssima, afinal, a fome não espera. A fome de tudo, porque tudo lhes é negado.
Este deve ser o fundamento do Estado democrático de direito. Em que pese o fato óbvio que a dignidade humana de ninguém possa ser mitigada, secundarizada, é ainda mais óbvio e contundente (a quem tenha inteligência social) que a dignidade do povo pobre, negro e oprimido deve ser a guia social, política e econômica.
Se contabilizarmos os esforços por dizimar os povos tradicionais, os indígenas, os povos da floresta, os quilombolas, os miscigenados à força, a conta crescerá muito. Porém, ainda devemos acrescentar todos os atos criadores de privilégios, em benefício da tecnocracia, das hostes do poder público, aburguesadas e enviesadas pelo capital concêntrico, aglutinador de espólios e da renda nacional. Esse é, por exemplo, o perfil do Poder Judiciário, encastelado em redomas, sob a vertigem de uma casta que flutua sobre a realidade prosaica dos “reles mortais” (os contribuintes de suas benesses). Essa história, se não fosse um conto do vigário, seria uma replicação de Kafka, em seu processo descontínuo da credibilidade (honestidade pública) e do seu Castelo: onde vivem os jurisconsultos herdeiros dos piores tipos da Roma antiga.
Somemos a isso os verdadeiros atentados político-jurídicos cometidos contra a classe trabalhadora, as reformas trabalhistas que, praticamente, nunca trouxeram um benefício, um direito real aos trabalhadores – menos ainda para a mulher negra da classe trabalhadora.
Não é difícil perceber, entender, quando temos alguma inteligência social, que a luta pelos Direitos Humanos é muito mais do que uma luta pelo Direito; efetivamente, é uma luta política por meio da luta de classes. É uma luta que tem hora para começar, hoje, agora mesmo, neste instante em que escrevo, mas que não tem término: o malfeito sempre nos atingirá. E o pior a se fazer é, notoriamente, nada fazer.
Daí que a luta pela eficácia dos direitos humanos fundamentais é o miolo de urgência na retomada do Estado democrático de direito. Trata-se, então, de colocar a dignidade do povo pobre, negro e oprimido, como requisito essencial da luta pela recuperação dos Direitos Humanos neste país. Esta é a premissa do que aqui considero como direitos humanos fundamentais: lastrear a dignidade do povo pobre, negro e oprimido para que não mais conheçamos a miséria humana.
Por isso insistimos, mais do nunca: é imperiosa a luta pelo direito, como luta política por meio da luta de classes, em defesa e na promoção da efetivação dos direitos humanos fundamentais do povo pobre, negro e oprimido.
*Vinício Carrilho Martinez é professor do Departamento de Educação da UFSCar.
Nota
IHERING, Von Rudolf. A luta pelo direito. São Paulo, Martin Claret, 2002.