Dois físicos

Imagem: João Nitsche
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Por OSAME KINOUCHI FILHO*

Dois intelectuais conversam sobre o estado do mundo atual e fazem uma crítica ao social-darwinismo

Noam: “Concordo com você quanto à eficácia do jornalismo, acho que é um veículo poderosíssimo hoje em dia. Só não sei se concordo com a metáfora da mídia sendo a “mente social”. Se assim o for, então estamos vivendo sob a mente de uma sociedade religiosamente fanática, completamente adepta às maravilhas do Deus livre mercado, fechada a quaisquer críticas ou propostas alternativas, rígida, implacável, violenta e mentirosa. Meu problema principal é o absurdo e enorme grau de homogeneidade que foi atingido na opinião da imprensa [um processo que o Chomsky chama de “construção do consenso”]. Uma homogeneidade totalmente à direita, claro está. Isso corresponde à destruição da biodiversidade na memesfera, com consequências que talvez mal consigamos imaginar”.

Freeman: Eu usei a metáfora de mente social no mesmo sentido (ou no sentido inverso) de A Sociedade da Mente, de Minsky. Mas acho que o consenso não é necessariamente conspiratório, é mais um fenômeno emergente baseado na preguiça intelectual dos agentes de mídia, no campo externo efetivo sobre cada jornalista (que opiniões são aceitáveis numa dada época, modismos intelectuais etc.), nas constraints sociais que você bem conhece etc.

Noam: “A ideia de escrevermos artigos para jornais me agrada bastante. Você acha que especificamente esta questão do vocabulário Newtoniano ainda é relevante? Digo, depois dos crashes mundiais todos, do hype da “complexidade” a la Santa Fé Institute + o log-loguismo fácil de “How Nature Works“, e depois do prêmio Nobel de Black-Sholes e do surgimento de Econophysics, os economistas ainda continuam falando em equilíbrio estático e os cientistas políticos usando metáforas como tensão social, correlação de forças, esfera de influência etc.? A pergunta não é retórica. É que eu não sei mesmo”.

Freeman: Economistas talvez não, mas jornalistas sim. Estou pensando em publicar em algum lugar o meu Engels: Um precursor da ciência da complexidade no século XIX. Eu reformulei toda a ordem de apresentação e poli um pouco mais o final. Se você quiser dar uma olhada, estou mandando anexo. Acho que o que a Econophysics vai acabar mostrando é que o sistema capitalista inevitavelmente leva a leis de potência na distribuição de riqueza e poder (Leis de Pareto). E que tudo isso será, cada vez mais, acompanhado de crashes auto-destrutivos como bem falava Engels. Acho que, se isso for verdade, ou seja, se os modelos econômicos-computacionais realmente criarem um consenso em torno disso, então toda a retórica liberal de Adam Smith (e Roberto Campos) (mão invisível que leva a benefícios generalizados para todos) estará morta e enterrada dentro de 20 anos…

Noam: “Na verdade, acho que o que falta no Brasil *mesmo* é um estudo sério sobre a mídia, mostrando como ela é efetivamente governada pelo interesse dos grandes [um estudo a là “Necessary Illusions”, do Chomsky, que e’ bastante objetivo], seguido por uma discussão também séria sobre como resolver esse pepino”.

Freeman: Sim, Noam, mas nós não temos background ou cacife para fazer isso, concorda?

Noam: “Para comentar seus artigos, acho que vou me concentrar mais no artigo que você fez com o Marco, já que o outro está submetido (eu gostei do outro). Olha, me deixa começar advertindo que eu não entendo muito de Econophysics e sinceramente não tenho muito interesse nisso, ou pelo menos não em “Capitalistophysics” – o mundo em que vivemos hoje é tal que economia virou sinônimo de administração do capitalismo. Portanto não sei o quanto o modelo é pertinente nesse sentido. Lendo a sua interpretação do modelo, fiquei com a pergunta: o que acontece quando o problema é não-LS (não Linearmente Separável), do ponto de vista “econômico”? Que o environment flutua e aleatoriamente beneficia a todos os agentes econômicos? (lembre- se que estou sem as figuras, posso estar falando uma bobagem)”.

Freeman: A situação não-LS representa um estado em que existem mais agentes econômicos que os comportados pelo mercado. As diversas constraints não podem ser satisfeitas todas ao mesmo tempo e o bem-estar geral (  médio) é baixo. Resolve-se o problema aumentando o mercado (N) ou diminuindo o número de agentes (P).

Noam: “Eu também não sei se entendi direito a motivação para o algoritmo “extremal”, no contexto de economia. Acho que na verdade ocorre o outro extremo. Quem está “melhor” tem mais poder pra atuar sobre o environment, levando à concentração de renda. Existe algum modelo neste sentido? Ou o fenômeno é obvio demais pra merecer modelagem?”

Freeman: Na verdade, Noam, o algoritmo Hebb extremal é socialista, ou seja, o mercado é mudado (por algum agente externo tipo Estado) de modo a favorecer os agentes de menor estabilidade. Isso faz com que o sistema atinja a capacidade máxima de suporte de agentes econômicos diferentes, α crítico = 2.

No jogo do livre de mercado, o algoritmo a ser usado para descrever a dinâmica seria um tipo de anti-Adatron: a força F de cada agente econômico seria uma função crescente de sua estabilidade λ. Isso levaria, possivelmente a um colapso (alinhamento) do mercado na direção dos agentes mais poderosos (tipo oligopólio, Microsoft etc…). Para quem quiser apostar uma cerveja: acho que usando um algoritmo não extremal (ou seja, sorteando os agentes ao acaso) em que a mudança na direção de S é proporcional a sua estabilidade (F = λ), obterei a Lei de Pareto para as estabilidades P(λ) = ˉτ para λ grande, ao contrário da semi-gaussiana com função delta, que é a distribuição de máxima estabilidade (ou seja, todo mundo acima da linha de viabilidade econômica λ = 0).

Tô chutando feio, hein! Se vocês não aceitarem, estarão perdendo uma cerveja! Semana que vem estarei fazendo as simulações. Notem que essa descrição é conservadora, pois estou supondo que a força econômica de um agente para alinhar o mercado J consigo mesmo é linearmente proporcional à sua saúde econômica λ. Uma descrição mais realista provavelmente assumiria que F cresce com λy, com y>1

Façam suas apostas!

Noam: Oi Freeman, começando pelo seu PS: “Eu usei a metáfora de mente social no mesmo sentido (ou no sentido inverso) de A Sociedade da Mente, de Minsky. Mas acho que o consenso não é necessariamente conspiratório, é mais um fenômeno emergente baseado na preguiça intelectual dos agentes de mídia….”.

Freeman: Concordo. O meu ponto (razoavelmente óbvio) é justamente que sistemas ou situações político-econômicas diferentes geram diferentes “constraints sociais” e, portanto, diferentes níveis de preguiça intelectual dos agentes da mídia. O processo é muito simples: se um jornalista de peso da Folha de S. Paulo conseguisse botar na manchete da capa “Corporações destroem a sociedade brasileira”, esse sujeito estaria na rua no dia seguinte, e o jornal sofreria retaliações nos anúncios, correndo risco de extinção. Num sistema capitalista um pouco menos bárbaro (admitindo que isso possa existir), com considerações sociais-democratas, digamos, a tese do jornalista seria levada a sério e pelo menos discutida. Portanto estaríamos aí com uma biodiversidade memética maior. A concentração de renda que se observa no capitalismo acaba se traduzindo em concentração de ideias também. E isso é duplamente nocivo (e as concentrações se alimentam em feedback positivo).

Noam: “Acho que o que o que a Econophysics vai acabar mostrando é que o sistema capitalista inevitavelmente leva a leis de potência na distribuição de riqueza e poder (Lei de Pareto). E que tudo isso será, cada vez mais, acompanhado de crashes autodestrutivos como falava Engels. Acho que, se isso for verdade, (ou seja, se os modelos econômico-computacionais realmente criarem um consenso em torno disso) então toda a retórica liberal de Adam Smith (e Roberto Campos) (mão invisível que leva a benefícios generalizados para todos) estará morta e enterrada dentro de 20 anos…”

Freeman: A pergunta que eu te faço é: você acha “mesmo” que os dirigentes do FMI e do Banco Mundial, ou mesmo o tapado do Roberto Campos, acreditam que a tal mão invisível leva a benefícios generalizados para todos? Você acha que o dono da Ford acredita nisso? Ele pode dizer isso na TV, para ver qual é o governador que vai dar mais isenção de impostos, mas você acha que eles acreditam nisso? Eu acredito na sinceridade dos neoliberais “teóricos”, digamos assim, como o Jean. Mas quanto aos “práticos”, os tubarões, eu não posso acreditar que eles acreditem que estão “gerando benefícios para todos”. Abraços, Noam.

Freeman: Noam, note que eu disse que a retórica liberal estaria morta… Não que a exploração capitalista estaria morta…

Que retórica? A retórica do Roberto Campos de que estudos modernos apontariam para a auto-organização benéfica do mercado, enquanto que só os dinossauros intelectuais da esquerda ainda achariam que a atuação do Estado na economia seria importante. Mostraríamos que, em matéria de sofisticação intelectual, dinossauro seria quem defendesse essa postura “ingênua” frente ao mercado. Roberto Campos não possui o ferramental da Econophysics, nós possuímos. Concordo com você que para os tubarões, isso não tem nada de ingênuo. Mas eu poderia lembrar que as pessoas em geral precisam de ideologias que legitimem sua ação (tipo sou empresário, mas estou contribuindo com empregos, tenho uma função social etc.). Afinal, o que você acha que tem nesses livrinhos Nova Era ou budistas para empresários?

O que estou dizendo é que, no nível do debate intelectual, basicamente o que se faz é essa guerra de legitimação e deslegitimação ideológica. E isso é importante, pois atualmente até uma superpotência como os EUA se curvam se a opinião pública considera uma ação ilegítima (isso começou com a guerra do Vietnã).

Até os nacional-socialistas precisavam dessa autolegitimação, eles realmente acreditavam que estavam fazendo um grande movimento de libertação do mundo do capitalismo selvagem judaico-liberal globalizante que dominava a mídia mundial! Desculpe a provocação! Mas é que eu acho que essa fusão recente de nacionalismo+socialismo feita pela esquerda antiglobalizante precisa ser repensada… Eu sou mais favorável a um Internacionalismo + ONU + Globalização = livre acesso migratório sem green card + Ecologia Profunda Gaiana + Controle de fluxo de capitais por órgãos internacionais + Internet democrática + ONGs + “O planeta Terra é o meu País” + Justiça internacional pegando ditadores + eleições livres para CEOs de multinacionais + tudo o que pudermos criar no mesmo sentido).

Isso não é apenas utopia, pois já existe um monte de grupos sociais que funcionam assim, e não são grupos marginais. Por exemplo, esse tipo de auto-organização e autogestão dos produtores com hierarquia fluida e dependente de mérito, com extrema cooperação internacional, livre troca de produção intelectual – ou seja, propriedade pública e coletiva do conhecimento, sem copyright mas com copyleft – é realizada, e sua viabilidade e eficiência econômico-produtiva é exemplificada, pela comunidade científica internacional (Hum… O Jean vai me chamar de evangelista da ciência de novo…!). Tudo bem, esqueci que existem leis de Pareto na distribuição de citações, a big-science, o trabalho escravo dos pós-docs… Ok…Ok… tudo bem! O copo meio-cheio, meus amigos!

O Richard diz que eu (assim como ele) sou elitista. Afinal, toda pessoa que se irrita com a mediocridade o é. Eu concordo. Mas nisso já chegamos a uma conclusão. Uma coisa é elitismo intelectual, artístico, esportivo ou o que quer que seja. Afinal, ninguém quer que as Olimpíadas virem uma brincadeirinha de café com leite (vocês já notaram como a Esquerda cai às vezes nesse maternalismo, tratando as pessoas como se não fossem adultos autônomos, mas crianças café com leite a serem protegidas?).

Entretanto, elitismo econômico é diferente. Ninguém morre por causa da Olimpíada ou do Prêmio Nobel. Crianças morrem de fome devido ao campeonato econômico. Paulo de Tarso era elitista (ao contrário do que Nietszche pensava): ele distinguia os fortes dos fracos, mas propunha que os fortes, justamente por serem fortes, deveriam receber menos proteção e servir aos fracos.

Mas no fundo, no fundo, não é uma questão de um sistema econômico ser capaz de prover ou não o bem-estar das massas, é uma questão de concentração de poder, de concentração absoluta de poder (Lei de Pareto do poder com expoente menor que um), de um poder que corrompe absolutamente. Como dizia Platão, não existem homens ricos honestos porque a desonestidade produz muito mais recompensas…

A menos que os CEOs dos bancos e das multinacionais comecem a ser eleitos democraticamente, ou pelo menos que cada acionista conte como um voto, uma ideia que não é absurda: lembram que no princípio na democracia apenas votavam quem tinha renda acima de certo limiar, e que seu voto tinha peso proporcional à sua riqueza. Ou seja, estamos nos primórdios da democracia nas empresas de livre-mercado. O que seria uma proposta bastante interessante, não? Afinal, os estados-nações estão mesmo sumindo: A Microsoft é o meu país! Bill Gates é um déspota esclarecido, uma espécie de Fidel do capitalismo. Mas e quando Bill Gates morrer? Quem vai gerenciar todo aquele poder acumulado? Burocratas carreiristas pouco idealistas e reacionários? Talvez a política do século XXI se organize em torno disso.

Noam: “Bom, na verdade eu não sei se é tão difícil assim. Mas acho que você tem razão no que diz respeito ao “cacife”, não sei se alguém prestaria atenção. Mas enfim, você acabou não respondendo: a questão do vocabulário socioeconômico Newtoniano permanece ou não? Eu topo escrever um artigo sobre isso (e vou começar a prestar mais atenção a esse ponto nas minhas leituras diárias de jornal…)”.

Freeman: Eu pensei em escrever um texto comentando certo artigo do Roberto Campos na Folha em que ele tentava usar ideias de ciências da complexidade de uma forma inábil e mal-informada (supondo que não ouve dolo). Mas parece que o R. Campos teve um derrame, não está mais escrevendo as colunas, nem sei se ele vai se recuperar, coitado… Ou seja, estamos ficando velhos, as pessoas que eram importantes na nossa geração estão morrendo todas…

Freeman: Noam, vou tentar recapitular as ideias para o artigo jornalístico que discutimos por telefone, e uma possível divisão de trabalho entre nós para coletar dados para o artigo.

1. (Freeman) Gancho introdutório: A liberação para o público dos diários de Pareto no dia 21 de junho de 2000. Breve biografia de Pareto.

2. (Freeman) Descrição da Lei de Pareto da distribuição de renda, discussão de sua validade e de suas implicações para a sociedade (distribuição extremamente desigual de poder e riqueza; riqueza de um indivíduo = resultado não-linear, desproporcional, ao esforço do indivíduo).

3. (Noam) Exemplo: Distribuição de tamanhos de propriedades rurais no estado de São Paulo. Seria interessante se houvessem dados sobre Mato Grosso e Goiás também, onde existem grandes propriedades. Talvez uma comparação com distribuição de tamanhos nos EUA ou na França.

4. (Noam) Relação entre o expoente tau da distribuição de Pareto e outros índices de desenvolvimento humano (IDHs, Gini). Feudalismo (tau = 1), capitalismo selvagem (tau = 1.5), capitalismo domesticado (tau = 1.8 a 2.0) ou distribuição log-normal, comunismo = distribuição gaussiana de riqueza (mas infelizmente não de poder).

5. (Freeman) Apresentação do modelo de Solomon, e do resultado alfa= 1/(1-c) onde c = Wmin/<W>.

6. (Noam) Discussão das implicações: a) muda-se a distribuição de renda e o expoente alfa quando se garante renda mínima proporcional à renda média: Wmin = const * <W>; relação com propostas de política de renda mínima universal.

7. (Freeman) Discussão sobre a “mão invisível” e auto-organização na criticalidade. Auto-organização realmente existe, mas não é necessariamente benéfica para as pessoas, para as firmas ou para o sistema econômico. Exemplo: extinções auto-organizadas na Biosfera (modelo de Bak-Sneppen), terremotos auto-organizados, propagação de danos em redes fortemente interconectadas. Curiosidade: provável futuro crash da Bolsa mundial devido a recursos desviados para a reconstrução de Tóquio após o Big One: terremoto econômico desencadeado por terremoto geofísico.

8. (Freeman) Discussão sobre globalização liberal como análogo a uma transformação de ecossistema espacialmente estendido para uma rede small world, instável, turbulenta, com avalanches sincronizadas. Nos ecossistemas reais, o puma americano não compete diretamente com o leão africano ou o tigre asiático. Se o fizesse, estaria extinto há muito tempo. Ou seja, ecossistemas auto-organizados já não são boas analogias para mercados globalizados, e a retórica liberal sobre mercado como sistema natural similar a uma floresta cai por terra. Comentar o financiamento do programa de ciências da complexidade por John Reed, CEO do Citybank. Fechar com citações de John Reed e de Ruelle.

Será que isto está muito grande? Na verdade, o Pareto daria vários artigos. Pareto era uma espécie de Roberto Campos do começo do século, ou seja, um liberal de direita bastante inteligente e cheio de retórica. Na verdade, acho que hoje em dia ele seria considerado um libertarian americano, ou seja, aquele ser híbrido anarquista-liberal-facista difícil de classificar. Isso significa duas coisas: a) precisamos ser generosos com ele, ou seja, saber distinguir suas ideias válidas de sua retórica ideológica; b) sua retórica liberal à la Roberto Campos o leva a fazer várias afirmações que hoje estão muito datadas e chegam a ser ridículas, ou seja, seria interessante mostrar como o liberalismo pode ser burro e tacanho quando visto com um certo distanciamento temporal.

Talvez você discorde do tópico a), ou seja, de que devemos sempre ser generosos com os inimigos. Da minha parte, isso é mais que um preceito religioso. A atitude de rejeitar em bloco as ideias de uma pessoa por causa de um rótulo ideológico é uma tentação que precisamos resistir — esse é um dos erros recorrentes (e suicidas) da Esquerda, porque cancela justamente o único feedback realmente eficaz para corrigir nossos erros, ou seja, a crítica de pessoas inteligentes (sejamos realistas, esse negócio de autocrítica não funciona…). E quando eliminamos os feedbacks corretores, Stalin emerge no horizonte, e acho que ninguém está a fim de reeditar Stalin.

O tópico (b) daria um segundo artigo: uma avaliação da retórica liberal de Pareto cem anos depois. Tem cada coisa ridícula que ele fala, fiquei pensando se ele, inteligente como era, realmente era capaz de acreditar naquilo tudo. Conseguiria se olhar no espelho, sem rir? Parece até editorial do Estadão!

Um terceiro artigo poderia ser sobre a Esquerda e o Darwinismo. Pareto era um social darwinista, e acho que uma crítica ao Social Darwinismo seria interessante de se fazer nos dias de hoje, pois Darwin está em alta e os liberais e conservadores sempre querem monopolizá-lo. É claro que a minha proposta é usar o pensamento Darwinista atual (com sua ênfase na emergência da cooperação, grande frequência de simbiose mutualista, tendências inatas humanas para a sociabilidade etc.) para fazer esse serviço. Gostaria também de usar como gancho o livro Left Darwinism, de Peter Singer, e o fato de Marx, Engels e Kropotkin serem Darwinistas radicais.

Bom, nesse ponto talvez você não possa me acompanhar, pois isso vai contra a corrente usual da Esquerda, com sua ênfase de que não existe natureza humana e o ser humano seria uma tabula rasa a ser moldado pelas condições sociais e ambientais (o que é equivalente, ironicamente, ao Behaviorismo radical). Eu, sinceramente, acredito que essa atitude é um beco sem saída que a esquerda se meteu desde Lisenko (ou talvez desde Lukács). O Behaviorismo radical está morto e enterrado.

Ou seja, aqui estou de novo como sempre defendendo o socialismo iluminista que não tem medo da ciência, contra o socialismo romântico, reacionário e obscurantista, e sei que essa minha idiossincrasia é difícil de acompanhar. Ah sim, por socialismo iluminista entendo um sistema capaz de usar a ciência para questionar seus pressupostos e se autocriticar. No dizer de Kropotkin, que podemos aplicar igualmente ao Socialismo:

Noam: “São exatas as conclusões do anarquismo? A resposta nos será dada, em primeiro lugar, pela crítica científica e honesta dos fundamentos em que procura apoiar-se e, em seguida, pela vida prática. Há um ponto, pelo menos, em que o Anarquismo está absolutamente no caminho da verdade e da reta razão. É quando considera o estudo das instituições sociais como um capítulo das ciências naturais, é quando se divorcia completamente da metafísica e adota o mesmo método que serviu de fundamento a toda ciência moderna e a toda filosofia natural. Seguindo esse método, os erros em que porventura haja incidido o anarquismo serão facilmente corrigidos”.

Freeman: Já a crítica da ciência foi uma tarefa super necessária na década de sessenta, no auge do pensamento tecnocrático. É até possível que se torne necessária de novo, mas acho meio fora de propósito bater em cavalo morto (que a ciência foi cooptada e instrumentalizada pelo sistema de dominação é ponto pacífico, não? Ou será que existe ainda alguém nas ciências humanas que pensa o contrário?) Prefiro bater em cavalos vivos, como a nova direita fundamentalista e fascista emergente do século XXI.

Na verdade, acho que sou um pouco extremista nessa questão, pois minha equação é: Socialismo menos iluminismo = Totalitarismo. Socialismo nacionalista/ etnicista/ relativista = Nacional Socialismo. O que é um pouco de exagero. Embora compartilhem o etnicismo, o anti-iluminismo, o romantismo, o espiritualismo, o relativismo filosófico, as teorias conspiratórias, um antissionismo justificável, mas que facilmente degringola em antissemitismo, ainda podemos distinguir a esquerda New Age da extrema direita pelo feminismo, o antirracismo, o pacifismo e a ecologia (ops, talvez não a ecologia, os nazis foram os pioneiros na ecologia romântica… e foram eles que criaram a expressão New Age, ver Plínio Salgado).

Se bem que criticar a esquerda também pode ser bater em cavalo morto. Acho que os verdadeiros players dos próximos cinquenta anos são a teocracia da direita religiosa americana e os outros movimentos teocráticos mundiais: ainda cerraremos fileiras com os liberais em defesa de uma sociedade laica, você quer apostar uma cerveja nisso?

*Osame Kinouchi Filho é professor do Departamento de Física da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (USP). Autor do livro O beijo de Juliana: quatro físicos teóricos conversam sobre crianças, ciências da complexidade, biologia, política, religião e futebol… (Multifoco). [https://amzn.to/3NLFRwi]


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