Donald Trump, química e mudanças

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Por LISZT VIEIRA*

A questão de fundo é saber se a “química” teria sido o estratagema usado por Donald Trump para negociar com Lula e o Brasil, abandonando Jair Bolsonaro à sua própria sorte

“O tempo cobre o chão de verde manto / Que já coberto foi de neve fria / E em mim converte em choro o doce canto”
(Camões, Sonetos).

1.

Não é comum o uso da psicologia nas análises políticas, mas, no caso de Donald Trump, a dimensão psicológica não pode ser descartada a priori, tendo em vista que estamos diante de personagem com traços psicóticos. Mediante o uso sistemático de mentiras e falcatruas, tornou-se um rico empresário e depois presidente dos EUA.

Como Presidente, suas ações têm mostrado certa lógica. Sempre ameaça ou aplica o pior, para depois ceder um pouco e conseguir o melhor para seu país, em sua visão pessoal. Donald Trump parece não ter estratégia ou projeto político, parece ter apenas táticas políticas de ocasião, que mudam conforme as circunstâncias ou seus interesses nas negociações.

Na realidade, porém, há uma característica constitutiva de seu governo: a destruição do equilíbrio dos poderes – condição sine qua non da democracia – em direção a um regime ditatorial, já que o governo dos EUA já pode ser considerado autoritário, pois o Executivo domina o Legislativo, a Suprema Corte e parte do Judiciário.

É muito difícil acreditar na “química” que rolou em poucos segundos entre Donald Trump e Lula. Donald Trump surpreende sempre, está sempre na mídia. Também rolou uma química entre Donald Trump e Vladimir Putin, e até agora não vimos resultados concretos na guerra da Ucrânia que essa química parecia anunciar.

O discurso de Lula na ONU foi magistral. A entrevista que deu em seguida também. Mas não deixa de ser estranho a projeção dessa “química” Trump-Lula para Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky. Todos nós sabemos que a diplomacia muitas vezes usa uma linguagem retórica, diz o dito pelo não dito, ou o não dito pelo dito.

Mas confesso que fiquei em dúvida se Lula estava falando sério ou estava de gozação quando disse o seguinte: “Eu sei que ele (Donald Trump) é amigo do Vladimir Putin. Eu também sou. Então, se um amigo pode muita coisa, dois amigos podem muito mais. Quem sabe a nossa química pode ser levada para o Vladimir Putin e para o Volodymyr Zelensky [e] a gente construa aquela saída que parece inesperada? Eu acho que pode ter surpresa no mundo” (O Globo, 25/9/2025).

A questão de fundo é saber se Donald Trump foi sincero ao falar de química com Lula, ou se foi maquiavélico e anunciou com isso seu afastamento de posições anteriores, como o apoio a Jair Bolsonaro, por exemplo. Segundo a Folha de S. Paulo, “o empresário Joesley Batista, um dos donos da gigante de carnes JBS, foi recebido em audiência pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, semanas antes do aceno do republicano ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Assembleia-Geral da ONU” (Folha, 25/9/2025).

Ou seja, a “química” teria sido o estratagema usado por Donald Trump para negociar com Lula e o Brasil, abandonando Jair Bolsonaro à sua própria sorte? Que ninguém vá esperar coerência e caráter desse pedófilo eleito presidente dos EUA, depois de apoiar a invasão do Capitólio em 6/1/2021, após perder a eleição

2.

Também no Brasil temos visto mudanças rápidas. Ano passado, a bandeira do patriotismo e do combate à corrupção estava na mão da direita. Hoje, é parte constitutiva da esquerda depois que a direita levou a bandeira norte-americana para a manifestação de 7/9, defendeu Donald Trump e suas sanções comerciais contra o Brasil, e apoiou a PEC da Blindagem, enterrada depois das grandes manifestações de protestos em todo o Brasil no domingo 21/9.

Tudo indica que Donald Trump passou a considerar a condenação de Bolsonaro como fato consumado. Como americano, conhece bem o ditado “It’s no use crying over spilt milk” (não adianta chorar sobre leite derramado). Tem problemas enormes à sua frente para ficar defendendo uma causa perdida. Principalmente, porque sua popularidade começa a se enfraquecer. Afinal, seu objetivo explícito, anunciado a quatro ventos, a reindustrialização dos EUA, não tem possibilidades de dar certo.

Com a globalização econômica, as empresas americanas passaram a produzir na Ásia pelo preço barato da mão de obra, o que garante maior lucro. O capitalismo se globalizou, os Estados Nacionais se enfraqueceram, a maioria virou província. A China, por exemplo, se fortaleceu no sistema mundial de livre comércio porque a mão de obra é baratíssima, o que possibilita menores preços.

Os EUA consomem mais do que produzem, importam mais do que exportam, daí o déficit. O poder dos EUA se baseia, além da força militar, na dominação do dólar, moeda universal, emitida pelos EUA, e agora ameaçada, a médio prazo, pelo BRICS.

Donald Trump quer dar marcha a ré e reindustrializar os EUA, onde a mão de obra é mais cara, o que iria gerar elevada inflação. Ou seja, não vai dar certo. A hegemonia unilateral dos EUA acabou, ou está acabando, caminhamos para um mundo multipolar. Nessa transição para a multilateralidade, aumenta muito a possibilidade de guerra.

Diante desse quadro, negociar com Lula é mais vantajoso do que ficar defendendo seu aliado Jair Bolsonaro e família. Para Donald Trump, a negociação se dá basicamente em três pontos: (i) Defesa das big techs norte-americanas ameaçadas pela regulação de países, como o Brasil. (ii) Acesso aos minerais estratégicos das chamadas Terras Raras. (iii) Redução do papel pró ativo do Brasil no BRICS, visto como ameaça ao dólar.

Eis aí, a nosso ver, o segredo da química trumpiana, que não é orgânica nem inorgânica. É econômica e geopolítica.

*Liszt Vieira é professor de sociologia aposentado da PUC-Rio. Foi deputado (PT-RJ) e coordenador do Fórum Global da Conferência Rio 92. Autor, entre outros livros, de A democracia reage (Garamond). [https://amzn.to/3sQ7Qn3]

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