Don’t Look Up

Regina Silveira, Mil e um dias e outros enigmas
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Por ALEXANDRE DE LIMA CASTRO TRANJAN*

Comentário sobre o filme “Não olhe para cima”, dirigido por Adam McKay

O filme Don’t Look Up tem gerado uma série de reações nas redes sociais. A obra é divertida e é material para bons memes porque satiriza negacionistas e ironiza a inação (ou a anti-ação, melhor dizendo) governamental para combater a catástrofe, numa óbvia referência à terrível gestão da crise pandêmica por parte de líderes de extrema-direita, como Donald Trump e Jair M. Bolsonaro. O que aqui proponho é um aprofundamento dessa análise, a fim de que se aproveite ao máximo o conteúdo crítico que a obra pode oferecer.

No momento decisivo do enredo, há claramente dois lados. Ou se olha para cima, ou não se olha. O centrismo dogmático[i] daqueles que se recusam a tomar um lado porque estão cansados de tanta polarização, é colocado em seu lugar: os inertes fazem parte do problema quando é preciso fazer, e não deixar de fazer algo. E, nesse sentido, eles se juntam aos down-lookers ao recusarem qualquer proposta de mobilização. Deste lado, o dos “vilões” do filme, há claramente um escalonamento intelectivo, que corresponde a um gradativo aumento de egoísmo e perversidade na medida em que diminui a vulnerabilidade à propaganda oficial.

É preciso dizer mais claramente? Na base da pirâmide de vilania, há os gados, que simplesmente seguem o que a líder diz. Olham para baixo, para o pasto. A seguir, os influenciadores negacionistas, ainda que cada um deles não seja de grande relevância (nenhum desses personagens sequer é chamado pelo nome), sua somatória compõe um aparelho ideológico de Estado[ii]. Os AIE são essenciais na reprodução da sociabilidade capitalista porque permitem a dominação de classe e a manutenção da estrutura material da sociedade sem necessidade de mobilização, muito menos eficiente, dos aparelhos repressivos de Estado, como polícia, forças armadas, tribunais etc.

No filme, a atuação do FBI é secundária e submetida aos caprichos do filho da presidente (próximo degrau da nossa escadinha de perversidade, porque seu agir é pateticamente restrito àquilo com que sua mãe compactua), justamente porque o essencial na imobilização do povo é o aparelho ideológico, não o repressivo.

Quando chegamos ao alto escalão, pulando algumas etapas descartáveis porque auto-explicativas (como a imprensa, outro AIE, ou generais como o que vende lanches distribuídos de graça só para demonstrar poder), chegamos à presidente. Esta canaliza nosso ódio porque, na ótima atuação de Meryl Streep, a figura representa tudo aquilo que não queremos de um líder em tempos de crise: ela é arrogante, insensível e, mais importante, pusilânime e eleitoreira. Disso resulta que, por omissão, a Presidente Orlean é genocida.

Mas o cerne, ainda assim, não é ela. Ela é covarde e populista porque sua raison d’être é ser eleita para se manter no poder. Mas o poder tem uma ante-sala de tomada de decisão, que é feita a partir de interesses materiais, a partir da racionalidade sistêmica do modo de produção capitalista. A democracia liberal é materialmente limitada exatamente porque, pela política nunca se é capaz de superar as determinações últimas do modo de produção, já que derivada da forma mercantil, átomo do capital. Isso se torna facilmente notável porque, na maioria das vezes, como no filme, é a própria burguesia, sem a qual não se é eleito, que controla diretamente o aparato estatal.[iii]

Eis que entra em cena o principal vilão do filme, interpretado por Mark Rylance. Peter Isherwell é o businessman bilionário líder da BASH, gigante tecnológica. O personagem incorpora dicotomias reveladoras: sua sagacidade se contrapõe à gagueira e a falta de habilidades sociais; sua aparência frágil e sua voz fraca disfarçam seu enorme poder econômico e tecnológico, com que ele é capaz de prever mesmo a morte dos demais personagens; enquanto diz que sua missão é pela evolução da humanidade – “eu sou o futuro!” –, sua orientação pragmática é o velho processo capitalista de valorização do valor.

É de Peter que sai a ordem, dirigida a Janie (eles se chamam pelo prenome!), de mandar voltar a missão de desvio do cometa. A razão, puramente econômica: havia, no cometa, minérios que valiam trilhões. E aí que fica emblemática a frase de Fisher: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Exatamente isso que se concretiza no filme: pelo desiderato único de maximização dos lucros, empreende-se uma missão de alto risco para tentar extrair as riquezas que viriam com o meteoro. O risco se concretiza e, no fim, não há riqueza para explorar nem quem a explore. Tudo isso pela ganância? Não é bem assim.

Um dos principais equívocos de qualquer análise sociológica é o personalismo. A análise etiológica de qualquer fenômeno social a partir da psicologia de seus agentes é, por óbvio, limitada e inimiga da compreensão materialista-estrutural. Assim sendo, Isherwell não pode ser entendido como vilão por ser um homem ganancioso e sem escrúpulos. Ele é vilão por sua posição no jogo político-econômico, que determina, não é determinada pelos seus traços. Porque se a racionalidade exclusiva do modo de produção capitalista é a valorização do valor, ocorre uma seleção “natural” dos tipos que conseguem alcançar o topo da cadeia alimentar, isto é, de produção. Assim, ele não é vilão porque é mau, mas é mau porque esta é a condição prévia exigida para que ele possa ser o homem mais poderoso do mundo.

À vilania perfeitamente racional dos vilões, opõe-se a catatonia dos heróis. A bem da verdade, sequer há heróis. Os protagonistas são marcados pela combinação entre, por um lado, correção moral e epistêmica e, por outro, por sua impotência frente ao aparato de Estado. Resta a eles fazer show de pop com Ariana Grande, postar hashtags nas redes sociais, gritar na rua, gravar vídeos no YouTube. Em suma, proceder exclusivamente por um acting out de auto-pacificação: conclusão, de alívio resignado, é de que “fizemos tudo o que podíamos”. Mas eles fizeram tudo, menos agiram. Porque a passagem ao Ato, a produção de efeitos no campo do real, isso não chegou perto de ser feito, a não ser na fala de Dibiasky para os frequentadores de um bar, que termina em um pequeno Ato de vandalismo.

Havia, ainda, uma esperança. Mas a promessa de salvação vai pelos ares quando explode a missão chino-russo-indiana, que seria o único, intempestivo e fracassado contraponto ao monopólio estadunidense da BASH. E só vem, não pela ação prudente de preocupação com a humanidade, mas sim pela exclusão dos chineses dos direitos pelo minério do meteoro. Isso é revelador de como não há socialismo na China só porque se planificou a economia, mas sim a transformação para capitalismo de Estado. O desiderato exclusivo, guiado pela forma mercantil, de valorização do valor, subsiste mesmo no apocalipse. Se a União Soviética ainda existisse, seria diferente? Um novo Pachukanis seria fuzilado ao dizer que não. Resta esperar pela morte cada vez mais certa.

E é este o elemento mais importante do enredo, e por isso ele acaba de maneira anticlimática: não há Ato. Há o medo, há o desespero, há o grito para que olhem para cima, há acting out, só não há Ato. Derrubar o governo, fazer qualquer espécie de Revolução — o Ato político por excelência—, sempre é cogitado como limite abstrato e máximo de ação, ao qual nunca se atinge senão hipoteticamente, como um absurdo pensável. E é ela é Ato porque imprevisível, arriscada, porque redefine as coordenadas de entendimento político retroativamente. Tudo muda na passagem ao Ato[iv]. E é era a única chance da Terra.

Mas não há Ato porque não há o mínimo de assunção de risco, a não ser pelo capitalista que arrisca a vida dos outros – ele sai, a salvo, a bordo de uma espaçonave – pelo lucro. Não há quem leve o primeiro tiro, quem morra tentando salvar o mundo, porque nossa catatonia nos obriga a esperar a morte certa desde que ela venha o mais tarde possível. Arriscar a vida para, dialeticamente, sobreviver, ou garantir a sobrevivência do Outro, como jogar o avião que se dirigia à Casa Branca no chão, antecipando a morte certa para poupar algumas vidas, isso está, curiosamente, sempre fora de cogitação.

A mensagem que devemos extrair de Don’t Look Up é menos sobre o negacionismo do Covid e mais sobre o colapso ambiental. Porque, esse sim, tem potencial de destruir, em não sabemos quantas décadas ou séculos, a vida humana na Terra. Enquanto isso, os netos de Beezos, Musk e afins, viajarão para outro planeta habitável, levando consigo a pouca mão-de-obra superqualificada necessária para a reprodução do modo de produção capitalista em outro planeta, no contexto da mecanização tecnológica tendente ao absoluto. A Terra sobrará para a massa inútil ao capitalismo interplanetário, reduzida, globalmente, à condição de Lumpen proletariat. Se a luta de classes hoje, como antecipou Marx, situa-se no contexto do capitalismo globalizado, a de amanhã é do proletariado interplanetário, intergaláctico, quem sabe, na crescente desterritorialização da esquizofrenia capitalista[v]. Que não morramos sozinhos, mas, mais importante, que não morramos inertes.

*Alexandre de Lima Castro Tranjan é graduando em direito na USP.

 

Referência


Não olhe para cima (Don’t Look Up)
EUA, 2021, 145 minutos.
Direção: Adam McKay
Roteiro: Adam McKay e David Sirota
Elenco: Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Meryl Streep, Cate Blanchett, Rob Morgan, Jonah Hill, Mark Rylance.

 

Notas


[i] Devo essa expressão a Eberval Figueiredo Jr.

[ii] Para o entendimento desse conceito fundamental, cf. ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 97 e ss.

[iii] Cf. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. p. 85-9.

[iv] Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do Real! : cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 170-7.

[v] Cf. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. 2. ed. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2011.

 

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