Por GUSTAVO BONES*
A vacina para a peste de Tebas foi inventar o complexo de Édipo. Nossa cura há de ser tão horrenda – e óbvia – quanto foi a do povo tebano. Édipo está nu
Eu quero que você se imagine na cidade de Tebas, na Grécia muito antes de Cristo. Nessa cidade tem um palácio real e em cada porta desse palácio tem um altar diante do qual as pessoas se ajoelham. No princípio da peça, uma peste terrível assola a cidade. Em toda Tebas se ouve gemidos e cantos fúnebres… Chega o rei e pergunta o que está acontecendo. Seu nome é Édipo.
Um velho sacerdote de Zeus explica: “É que Tebas está em meio a uma calamidade e não consegue levantar a cabeça de um abismo de sangue”. As sementes não germinam, os rebanhos morrem nos pastos, as grávidas estão perdendo os bebês e ele diz: “O Deus maléfico da peste está arrasando a cidade”. O velho pede ajuda do rei para consultar os deuses e descobrir porquê Tebas foi amaldiçoada, mas Édipo já mandara o cunhado até o oráculo de Delfos descobrir como livrar a cidade do flagelo da peste. Então Creonte retorna e, na praça cheia de gente, conta o que ouviu: “Tebas está sendo punida com a peste porque o assassino de Laio (o rei anterior), o assassino do rei está na cidade e nunca foi punido”. Revoltado, Édipo Rei promete ao povo banir o criminoso, maldito para sempre.
A tragédia se dá porque o assassino é o próprio Édipo, o rei atual que matou o rei anterior sem saber que era o rei. E pior ainda, ele também não sabia que Laio, na verdade, era seu pai biológico, o que significa que a rainha viúva com quem Édipo se casou e teve filhos é sua própria mãe. Ao saber disso, Jocasta se enforca. Alucinado, o rei/esposo/filho solta-a da corda e fura os olhos com os broches de ouro de sua amada mãe/rainha/esposa. Cego, cumpre com sua palavra condenando-se ao exílio.
Para livrar a cidade da peste, Édipo puniu, enfim, o assassino de Laio: furou seus olhos e tornou-se um andarilho, sempre amparado pela filha Antígona. Cego, velho e desterrado, pressente que logo morrerá ao se aproximar dos bosques de Colono. A terra que o acolhe se torna sagrada. Essa é a história do homem que matou o verdadeiro pai e desposou a própria mãe. A vacina para a peste de Tebas foi inventar o complexo de Édipo. Nossa cura há de ser tão horrenda – e óbvia – quanto foi a do povo tebano. Édipo está nu.
* a partir do episódio “O que filmes e livros sobre epidemias nos ensinam em tempos de coronavírus” do podcast Expresso Ilustrada.
*Gustavo Bones é artista e professor de teatro. Fundador do grupo Espanca e ativista do Movimento Nova Cena de Belo Horizonte.