Por LUIZ ROBERTO ALVES*
Convém estar esperto diante do novo quadro a enunciar novidades em tecnologia e educação, que se move há décadas a serviço da suposta produtividade global e neste ano explodiu na pandemia
O confronto entre ideias, fatos e propostas é a condição para o aprendizado. Visto que há chances múltiplas de, mais uma vez, dar-se neste país-cobaia a introdução da ora chamada “educação híbrida” ou “ensino híbrido” na goela de educadores, estudantes e gestores da base comunitária, cabe confrontar. Confrontar até mesmo para escapar da enésima repetição das violências simbólicas anteriores, seja o caso do livro didático durante a ditadura, a desgraça trabalhista da “flexibilização”, o descarte contínuo das culturas populares sob a presunta erudição, a educação centrada no aluno como travestimento do ensino centrado no dinheiro dos pais de alunos. Houve, via reciclagens, muito mais violências: a escola profissional para pobres e a clássica para ricos, os exames massivos como enunciado de qualidade educacional e a absoluta falsidade da educação como prioridade nacional no discurso rotineiro da velha política.
Convém, pois, estar esperto diante do novo quadro a enunciar novidades em tecnologia e educação, que se move há décadas a serviço da suposta produtividade global e neste ano explodiu na pandemia. Por certo, quem mais reflete sobre o fenômeno neste momento histórico são as novas empresas lucrativas dos negócios educacionais, do planejamento escolar e dos serviços a favor do ensino alcunhado de híbrido, presencial/remoto.
Digamos que, em princípio, o encontro educação/tecnologia é um fenômeno necessário, já antigo e sempre bem-vindo, mas não como desculpa, ou cortina de fumaça, para meter na rua milhares de educadores e educadoras, como se dá nas escolas superiores privadas e que caminha celeremente para a educação básica. Um dos últimos lugares da sociedade em que havia empregos, o campo educacional, porque o país continua repleto de analfabetismos (plural), agora ele evidencia sua feia carcaça de ossos moídos, na qual o talento e os títulos resultantes do suor quase nada valem. E raras pessoas estão atentas a isso.
Tecnologia não ensina ninguém senão entendida como um conjunto de enunciados (mais que ferramentas), o qual, ao beber das mesmas fontes culturais do antigo processo educacional, o faz como extensões desejáveis e diversificadas do sapiens/faber. Ora, o espírito curioso e crítico – portanto científico – tem ali uma nova cadeia enunciativa de valores a compulsar, discutir, escolher, analisar, julgar e se apropriar. Não se trata de um encanto diante de maravilhas; simplesmente de atos da práxis, que são da natureza da educação há séculos, com destaque para a Renascença.
Se nos cabe, como escola, estudar as migrações, o campo de significações que se forma é amplo: pobreza, viagem, barreiras, família dividida, expulsões, sobrevivência, desencanto, apoios, direitos, novas vidas, esperança, um painel subjetivo/objetivo que envolve economia, política, linguagens, crítica sociológica, demografia, história/geografia, artes. Veja-se que o campo semântico incide e cutuca os vários campos do saber da comunidade educativa, seja nas escolas centrais, seja nos grotões, a despeito das distâncias de apropriação de saberes e recursos. Caminha por aí a composição de currículos escolares e, se os direitos fundamentais dos sujeitos-históricos da educação, crianças, adolescentes e jovens vingar e vigir (conforme CF, LDB, ECA e leis derivadas), serão necessárias enunciações de várias ordens, a saber, livros, documentos histórico-geográficos, equipamentos oriundos das novas tecnologias (os possíveis e os aceitos pela cultura escolar local/regional), diálogos, trabalhos focais, entrevistas, pesquisas e observações participantes. Noutras palavras, as extensões tecnológicas adotadas terão de dar as mãos ao fazer comum da comunidade educativa e, deste modo, cumprirem seu papel educativo.
Decorre, daí, a inutilidade e o inócuo de se tentar estabelecer uma educação híbrida. Híbrida de quê?
Já não houve outras extensões do ser trabalhador ou estudante na história da educação, segundo os tempos e as mudanças? Muitíssimas. Na medida em que as novas tecnologias não realizem outra coisa fora do que é educação, que implica em mudar pessoas na direção da autonomia no trato dos saberes, no descortino da vida saudável e na realização da liberdade de pensamento e ação, elas serão valores no processo educacional. Não é o híbrido que muda e conduz os seres incompletos e curiosos e sim a educação como totalidade. Seria um renovado horror se o sistema educacional permitisse que as novas tecnologias ajudassem a levar à “uberização” do mundo estudantil, o que significaria uma suposta autonomia que de autônoma não tem nada e é de fato a máxima precarização da vida de quem trabalha. A uberização é também fruto de tecnologias mais ou menos jovens, não a favor do trabalho decente e da vida, exceto no discurso dos que impingem aos pobres as migalhas…
Hoje, o híbrido não está a servir a mais ninguém ou nada senão a abrir espaços para novas organizações vendedoras de tecnologias para as escolas donas de recursos e que saíram mais fortes da pandemia, a despeito de sacrifícios de seus profissionais. Este fenômeno conseguiu aumentar a pobreza, levou ao fechamento de milhões de negócios familiares, carregou para a falência tantas outras escolas, mas privilegiou os mais fortes em patrimônio e contas bancárias. Também por isso, que representa algo já velho na história política do país, exige-se o confronto de ideias, fatos e fenômenos a fim de clarificar situações vividas neste tempo sombrio.
É claro que, a par dos discursos mais grosseiros, há pensamentos inteligentes que precisam ser confrontados neste tempo de disputas de orçamentos, tempo em que não há ministro da educação, nem ministro da saúde, ou ministro da boiada ambiental, nem autoridade palaciana, exceto miragens e prepostos de poderes que já foram honrados e tiveram peso no fórum do Estado brasileiro e suas relações internacionais. Por isso mesmo, as chances do comércio da educação crescem desmesuradamente. Cabe, pois, à opinião pública confrontar discursos e práticas e escoimá-los de erros comuns a outros momentos conhecidos e que levaram ao depauperamento dos recursos públicos. Imagine a ilusão (altamente factível nesse tipo de governo) em jogar novos recursos do Fundeb numa aventura tecnológica que pode não ter nada a ver com o sentido da educação total, integral, que se exige no Brasil?
A pandemia estimulou comentaristas e repórteres, com apoio em estudos preliminares, a antever um futuro terrível para a “geração Covid” (a exemplo, Folha, 21.10.2020, B3). Há, por certo, muitos defeitos nesse discurso, além de sua suposta previsibilidade meio “profética”. Um deles é que não supõe uma outra maneira de organizar a escola, sem que isso signifique encher de tecnologias de comunicação e informação. Nas outras maneiras estariam presentes novas composições curriculares, quer os desdobramentos da Base Nacional Comum, quer o campo das atividades diversificadas a favor do ensino focado no local e regional. Basta uma releitura das Diretrizes Nacionais Curriculares, CNE-MEC (1997-2018) para a percepção do quanto se pode fazer ao assumir uma educação como totalidade, na direção da educação de tempo integral, com apoio decisivo do novo Fundeb. Outro defeito de tais análises reside na fixação sobre conteúdos, que talvez signifique na linguagem obscura desses textos os componentes curriculares presentes nas grades, que antigamente se chamavam “listas de pontos do programa”.
Ora, os únicos lugares em que os conteúdos, ou pontos programáticos, se destacam são nas provas massivas, que vão do IDEB ao Pisa etc. No âmbito do currículo pleno das comunidades educativas o saber não sofre comparações quantitativas, na medida em que a qualidade do trabalho educacional pode suscitar os dons da inteligência no próprio ato de formar pessoas, o que pode significar conquistas de saberes a médio prazo. Quem educou nas periferias e nas zonas rurais entende isso muito bem. Não é mágica, nem ensino como norma rígida; trata-se de educação, de educare, de expor, trazer para fora valores hauridos nos confrontos da aprendizagem.
Enfim, tais comentários não ajudam em nada a fazer educação. Mas são boas especulações para o debate entre educar e instruir, educar e adestrar, educar e treinar, educar e ministrar programação. Oxalá no futuro não tenhamos mais jornalistas que arranquem frases de efeito deste ou daquele estudioso ou educador, como no texto citado se lê um período arrancado de Marcelo Neri, da FGV “Se existia alguma coisa que ainda melhorava no Brasil em termos de desigualdade era a educação. Agora, isso também está sendo quebrado pela pandemia”. A par da coisificação da educação, o enunciado ambíguo ressalta ao relacionar o que melhorava “em termos de desigualdade”, visto que a expressão preposicional dificulta qualquer precisão no entendimento do enunciado. Sem um bom sinônimo, o excerto fica a vagar no vazio de sentidos. Afora a gramática textual, a educação tanto apresenta e revela as desigualdades sociais do país quanto seus avanços, a depender do que fazem as comunidades educativas na vastidão da geografia física e humana da terra-continente. Assim, a pandemia pode quebrar laços ou ensejar grandes reatamentos deles, o que não depende de predições e sim do acompanhamento contínuo e da avaliação muito além dos exames massivos. Estes só têm servido para arrepiar ministros e levá-los a jogadas politiqueiras, como fizeram Temer e Mendonça com o Ensino Médio. Antes deles também houve “pactos educacionais”, esquecidos antes de três ou quatro anos. Pactos? Melhor não fazê-los, especialmente por quem não entende dos profundos mistérios da vida e da morte. Talvez depois de ler muito bem Mircea Eliade, os antropólogos e João Guimarães Rosa. Melhor fazer acordos concretos, orçados, planificados coletivamente, com transparência no gerenciamento e objetivos muito claros.
Já se entreviu que há textos bons sobre a relação entre educação e tecnologias. Um deles foi publicado à página A 3 da Folha de São Paulo em 21 de outubro p.p., de autoria de Lucia Dellagnelo. Nele se pergunta pelo ensino híbrido como nova caixa de pandora, a partir de algumas relações com o fenômeno da pandemia e sua ação mutiladora para o trabalho escolar e educacional. Se houve razão para emergirmos da pandemia com olhos nas novas tecnologias de comunicação, em parte usadas durante alguns meses de 2020, o que significará o ensino híbrido? Talvez o fenômeno não tivesse nada a ver com Pandora, visto que na caixa da bela mulher da mitologia grega restou a esperança. A esperança não é um mal; como tantos que saíram da caixa; é somente um resto, um resíduo, uma possibilidade dada ao humano. Paulo Freire entendeu sempre a história como possibilidade e, nessa leitura, o resto pode ser expandido e tornado o inédito, mas viável, um grande valor. A esperança pode vir a confrontar os males e talvez vencê-los, mas o fato potencial exige bastante da vida humana no mundo. Exige ações de Prometeu e outros Titãs.
Evidentemente não cabe botar esperança especial nas tecnologias quando a educação é entendida como totalidade. Talvez ao quebrar alguns vínculos entre educação e ensino seja possível localizar as tecnologias como suporte curricular. Ainda assim, a escritora do texto citado exige formação tecnológica dos professores, presença plena de máquinas computadoras e conexões digitais para todos os participantes do ensino. Trata-se de um trio muito útil de exigências, que problematiza qualquer esperança vã na tecnologia em si mesma. No entanto, a esperança vã é uma anormalidade linguística quando o esperar não guarda qualquer traço semântico de conformismo ou submissão, mas, ao contrário, se associa ao campo de sentidos do que ficou como direito alargado pela força e pela audácia dos que esperam novos dias e mudanças. Paulo Freire às vezes denominou o fenômeno de esperançamento/esperançar.
De um modo ou de outro, os dois textos citados projetam uma sociedade ainda mais dividida do que a temos, pois cidadãos de primeira classe serão fartamente conectados e outros o serão menos que parcamente. Basta, para tanto, que o país continue a ser o que tem sido, campeão mundial em desigualdade. Nele, nunca convém abstrair a educação, nem fragmentá-la pelo ensino, mas sim entender os saberes e políticas de governo como sinalizadores e indicadores de males contínuos, espalhados por todos os cantos da terra brasileira. Ora, as novas organizações especializadas em tecnologias educacionais deveriam ser coerentes com essa relação dos morfemas: educação e tecnologia, bem além de ensino e tecnologia. Repita-se, pois, o que já foi apontado: a educação não precisa criar antenas tecnológicas, muito menos filhotes conectivos e digitais. Ela é uma totalidade que se move no mundo e provoca movimentos necessários de mudança. A educação nunca precisa de muletas educacionais, pois ela só pode ser uma ação integradora e integralizadora, que entende e assume todo o novo que surge na história, bastando para isso que seja um novo humanista, solidário, aberto a todos os aprendentes e capaz de fomentar a autonomia e s liberdade. Educação tecnológica é ignorância dos sentidos do educar.
Entende-se, pois, a partir da importância das tecnologias no interior do processo educacional, que as organizações donas de bens e meios de produção e vendedoras de conectividades oriundas das tecnologias não deixarão de fazer negócios, mesmo com o poder público. No entanto, a inteligência nacional, orgânica, terá a obrigação de ter uma definição clara de educação, seu processo histórico de construção de pessoas e sua teleologia. Diante dessa leitura não haverá lugar para enganos e burlas, compras faustosas que vão virar lixo e discurso balofo sobre maravilhas tecnológicas a caminho de salvar o sistema educacional. Salve-se, pois, o sentido de educação na vida e os demais valores e necessidades nos serão acrescentados por obra da curiosidade, da audácia, do trabalho duro e do olhar obsessivo no direito das gerações.
*Luiz Roberto Alves é professor sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP.