Por JEFFERSON NASCIMENTO & RENATO NUCCI JR.*
Musk e Textor usam estratégias com clara procedência política, mas se diferem pela pauta em que mobilizam e o meio que atuam
Não é razoável debater o questionamento das ordens judiciais relativas ao X/Twitter por Elon Musk como se fosse uma oposição do magnata sul-africano ao ministro Alexandre de Moraes. Apesar da importante atuação do ministro, associar a defesa da democracia representativa às características individuais, como a suposta coragem dele, diz muito sobre a instabilidade política atual.
Isso reforça a fragilização das instituições e não agrega para uma construção política popular: junto a outros ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes têm votado sistematicamente pela restrição de direitos e garantias trabalhistas. Elon Musk atua para garantir interesses econômicos predatórios sobre países pobres e em desenvolvimento: herdeiro da exploração de diamante na Zâmbia; defensor do golpe de Estado na Bolívia, em 2019 (daria “golpe onde fosse necessário” para manter seu acesso ao lítio); e, agora, ataca o ordenamento jurídico brasileiro.
Endereçar esse ataque à figura de Alexandre Moraes serve de atalho para agitar a extrema direita brasileira e a internacional. Porém, Elon Musk não está sozinho: vamos demonstrar que vai no mesmo sentido a atuação de John Charles Textor, dono da Eagle Football Holdings Limited[i]e da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do Botafogo de Futebol e Regatas. Está em curso uma escalada em múltiplos campos contra a soberania nacional empreendida por diferentes atores individuais e coletivos. Começamos pela contextualização.
O contexto
Em 8 de março, deputados brasileiros de extrema direita, liderados por Eduardo Bolsonaro, estiveram no Congresso dos Estados Unidos para denunciar o “sistema totalitário do judiciário brasileiro”, cujo ativismo judicial do STF e, principalmente de Alexandre de Moraes, estaria evidente nas decisões contra Jair Bolsonaro nos processos sobre as eleições de 2022 e contra golpistas de 8 de janeiro de 2023.
O grupo não conseguiu a audiência com a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, mas realizou uma “missão” no país norte-americano acusando a esquerda de dissimular a pauta dos direitos humanos seletiva e injustamente contra seus opositores de crimes. Notem que a extrema-direita, com o uso bem-sucedido das redes sociais, disfarça seus projetos autoritários mobilizando termos como “liberdade” e “democracia” e associa os adversários à “censura” e “totalitarismo”. Para isso, ressignificam a noção de “democracia” e “povo”: enquanto os defensores da democracia liberal pensam em termos de pluralidade irredutível de indivíduos livres e iguais; a extrema direita se baseia numa comunidade homogênea com identidade coletiva e defende a vontade singular do povo, negando a legitimidade dos opositores e combatendo quem não se enquadra nessa comunidade. A “liberdade” seria absoluta para os membros da comunidade e, assim, não haveria abuso quando o emissor estiver em consonância com a respectiva identidade.
A ressignificação nega a busca pelo bem comum e ignora convenções internacionais. Por exemplo, para a extrema-direita não faz sentido o adendo da Corte Americana de Direitos Humanos sobre liberdade de expressão: “A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.” Afinal, adversários políticos e indivíduos “não-comunitários” devem ser estigmatizados para demarcá-los como ameaça à comunidade, à identidade histórica do grupo nacional e aos modos estabelecidos de vida e/ou como parte de uma casta/elite que opera um mecanismo (ou sistema) que corrompe as instituições e os partidos e prejudicam os elementos comunitários. Por isso, a repetição de termos como corrupto/bandido, inimigo do povo, traidor, etc., independente de provas, é uma “justa” ferramenta na luta contra o “mal” encarnado pelos referidos adversários e outsiders.
Quem não compõe o demos não possui legitimidade para denunciar crime de ódio, mentira e incitação de violência oriunda de expressões e posicionamentos de elementos comunitários (“mimimi”): são ameaças. Crime é não compactuar com a identidade coletiva, logo não há intolerância religiosa contra não-cristãos, mas há cristofobia; não há racismo ao mesmo tempo que denunciam o racismo reverso; não há machismo ao mesmo tempo que o feminismo é distorcido como ataque à masculinidade; e a corrupção é uma marca do outro, jamais dos membros dessa “comunidade” – independente das provas. (Quando é o caso, a culpa é do sistema de justiça que seria parte da conspiração inimiga).
Essa visão de mundo e modo de comunicação ganharam impulso com as estratégias do Alt-Right. Esse movimento de extrema-direita nasceu de um tipo de revista online, o webzine, chamada The Alternative Right, editada pelo ativista do “white nationalist movement” Richard Bertrand Spencer, e repercutida em sites/fóruns como 4chan e 8chan. Spencer defende o legado de George Lincoln Rockwell, fundador do Partido Nazista Americano, a escravização de haitianos, a limpeza étnica nos EUA e propôs a conversão da União Europeia em um império racial branco.
Criador do movimento e idealizador do termo Alt-Right, ele atraiu neonazistas, supremacistas branco e antissemitas, chegando ao auge de popularidade durante a campanha presidencial de 2016, quando apoiou Donald Trump, e na condução do evento Unite the Right (2017) em Charlottesville, na Virgínia. Spencer apoiou a nomeação de Steve Bannon para conselheiro de Trump e propôs aos seguidores “vamos festejar [a eleição de Trump] como se estivéssemos em 1933”, em alusão à ascensão de Adolf Hitler.[ii]
Richard Bertrand Spencer deixou de apoiar Donald Trump em 2018 e admitiu a possibilidade de votar em Joe Biden, em 2020. Todavia, já havia perdido relevância desde uma série de problemas na justiça a partir de 2018 e o seu movimento caminhou para uma importante fração da extrema direita estadunidense representada por lideranças do Partido Republicano, como Ron DeSantis (governador da Flórida conhecido pelas propagandas extremistas, algumas associadas ao neonazismo) e Donald Trump.
O método de comunicação em massa desenvolvido pelo movimento visa a manipulação do debate público por meio do compartilhamento de memes; uso de argumentos-espantalhos, da falácia ad hominem, negacionismo científico, desinformação e fakes news para desacreditar autoridades e instituições; postagens com apologia ao racismo, ao machismo e à xenofobia; ataque ao multiculturalismo; exortação à união frente a um inimigo público da comunidade e seus valores; uso narrativas conspiracionistas que afetam a confiança interpessoal e às instituições políticas; domínio do debate na internet através de sites (John Textor concentrou as denúncias em sua página após a imprensa nacional diminuir a repercussão das denúncias), YouTube e diversas redes sociais (dentre as quais X/Twitter tenta ser o “paraíso” do grupo desde que Elon Musk assumiu).
É importante lembrar o contexto político. No momento, líderes de extrema direita com relevância internacional enfrentam protestos e queda de popularidade, como Viktor Orban da Hungria e Benjamin Netanyahu em Israel. Além disso, as eleições dos EUA se aproximam e as notícias dão conta do crescimento de Joe Biden nas pesquisas de intenção de voto – algumas indicam a ultrapassagem sobre Donald Trump.
No Brasil, a gritaria de Elon Musk agitou o debate em torno do PL2630/2020, que cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, popularmente PL das fake news. O texto aprovado no senado, dentre outros, definia a criação do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet com 21 membros, sendo: um do Senado, um da Câmara, um do Ministério da Justiça, um do Conselho Nacional de Justiça, um do Ministério Público, um representante da Polícia Federal e um das Polícias Civis (são sete representantes de instituições de Estado e de governo); cinco membros da sociedade civil, dois acadêmicos, dois do setor de Comunicação Social, dois representando os provedores, um representante das empresas de telecomunicação e um do CONAR – Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (totalizando 14 representantes sem vínculo com o Estado).
Portanto, o PL não dá ao Estado o controle. É possível pensar em ajustes, mas está claro que a oposição ao PL não é a luta contra a tirania do Estado, é a defesa da tirania das bigs techs, que influencia processos eleitorais, amplifica discursos de ódio, permite incitação da violência a ponto do X resistir a decisões judiciais de instâncias inferiores que exigiam retirada de apologia aos ataques às escolas.
Aproveitando a repercussão, o presidente da Câmara Arthur Lira interrompeu a tramitação e anunciou a criação de grupos de estudo. O debate voltou à estaca zero em uma Câmara cuja maioria defende as big techs impedindo uma regulamentação com participação da sociedade civil e permitindo a sobreposição das estratégias empresariais (pela manipulação dos algoritmos) aos interesses nacionais. Nesse cenário, toda hora aparece em artigos, editoriais ou redes sociais um argumento pretensamente “liberal” acusando STF/Alexandre de Moraes de agir “de exceção”, ignorando as competências da Corte, apoiando, contemporizando ou se calando sobre os boicotes ao esforço para uma legislação específica. A seguir, tratamos dos interesses de Elon Musk.
Elon Musk: interesses econômicos, adesão à extrema-direita e a ressignificação da “liberdade”
No embate de Elon Musk contra a Justiça brasileira, adeptos da extrema direita trataram como defesa da “liberdade de expressão” a inação do X/Twitter no combate aos discursos de ódio, incitação à violência e notícias falsas sobre políticos, eleições e conflitos internacionais. É aí que apareceu outra figura: o autointitulado ativista pela liberdade de expressão e autor Michael Shellenberger. Ele alegou ter provas das restrições à liberdade de expressão no Brasil (Alexandre de Moraes teria ameaçado de processo o advogado do X/Twitter) em seus Twitter Files. Porém, depois de desmentido em seu principal argumento, admitiu o erro; logo, não tinha como provar a principal acusação.[iii] O jornalista “confundiu” uma questão do Ministério Público (MP) com o advogado com uma retaliação de Moraes relacionada ao X/Twitter.
Voltando a Elon Musk, não é verdade que ele tenha entregue às autoridades dos EUA provas de que Alexandre de Moraes interferiu nas eleições de 2022 e a denúncia que o X/Twitter fez ao Congresso dos EUA relativa a ordens judiciais sobre moderação e derrubada de conteúdo reforça que a empresa de Musk estrategicamente transfere o debate sobre fatos relacionados ao Brasil para atores de um país com ordenamento jurídico diferente. Acessar uma instituição estrangeira demonstra a busca pela fragilização da soberania nacional, ocultada alegando um “exclusivismo” criado pelo ativismo do STF capitaneado por Alexandre de Moraes. Porém:
(i) a Comissão Europeia investiga o X por violar normas de moderação e transparência definidas pela DSA (Lei de Serviços Digitais), inclusive permitindo informações e imagens falsas, cenas de videogames e vídeos antigos ou de outros conflitos para manipular a opinião pública sobre o massacre na Faixa de Gaza;
(ii) o órgão de vigilância eSafety da Austrália notificou o X em junho de 2023 pelo aumento da intensidade e quantidade de postagens violentas e de ódio desde que Elon Musk comprou a rede; (iii) o Brasil, apesar de ser o quarto mercado, é apenas o 11° em pedidos legais de remoção e bloqueios de contas; ficando atrás, dentre outros, de Japão, Coreia do Sul e EUA – os quatro primeiros (Japão, Turquia, Rússia, Índia e Coreia do Sul) concentram 92% dos pedidos; (iv) o Brasil também não figura entre os primeiros em pedidos de informações realizados por autoridades: é apenas 10°, atrás de países como Japão, França, Reino Unido, França e EUA; solicitações de autoridades brasileiras não chegam a 5% das estadunidenses.[iv]
Ninguém sério vai negar que Austrália, EUA, França, Japão, Reino Unido e os membros da União Europeia se enquadram nas classificações de democracia representativa-liberal. Ademais, em dezembro de 2022, mais de 20 mecanismos e relatorias da ONU elaboraram uma carta acusando Elon Musk de adotar ações que favorecem a disseminação da violência e cobrou medidas para reverter o quadro.
Elon Musk age diferente, por exemplo, na Índia, governada por Narendra Modi de extrema direita. Lá, acata decisões judiciais que determina exclusão de contas de opositores ao governo e veto aos links que redirecionam para o documentário “Índia: a questão Modi”.[v] Além da ideologia, Elon Musk pretende investir US$3 bilhões em fábricas da Tesla na Índia para concorrer com a BYD no segmento de carros elétricos no Oriente.
Em 15 de abril, depois de toda agitação e mobilização política da extrema-direita, os advogados do X/Twitter afirmaram que cumprirão as decisões judiciais brasileiras. No entanto, passaram a apostar na visibilidade por meio de deputados republicanos no Congresso dos EUA para dar ares de institucionalidade e difundir a crença na legitimidade com a denúncia de “censura” feita pela Comissão Judiciária da Câmara de Representantes dos EUA, presidida por Jim Jordan (republicano ultraconservador). O congressista ignorou diferenças da legislação brasileira sobre liberdade de expressão, ocultou que solicitações desacompanhadas de fundamentação se relacionam a diferentes perfis de um mesmo usuário e que parte das ordens foram feitas para várias redes sociais e aplicativos de comunicação sem a mesma celeuma provocada por Elon Musk.
Modus operandi
Elon Musk é crítico ao Partido Democrata e acusa a mídia tradicional de servir a esse partido, ainda que seja conhecido o viés pró-Partido Republicano da Fox News, maior conglomerado de mídia. O sul-africano apoia a ala mais à direita dos Republicanos, liderada por DeSantis e Trump, que teve a conta do X/Twitter liberada quando Elon Musk comprou a rede social. O magnata defende a anistia aos invasores do Capitólio e, em março, esteve com Trump para tratar de doação para a campanha presidencial.[vi]
Quanto a Michael Shellenberger, o “auxiliar de acusação”. A acusação sem provas, admitida como erro, decorre do “direito de mentir” no debate público? Da ignorância sobre o sistema de justiça brasileiro? Ou ambos, apostando no viés de confirmação de uma plateia desinformada e/ou mal-intencionada? Seja qual for, há coerência com sua trajetória: Shellenberger é famoso por um livro em que nega a emergência climática se baseando em argumentos ad hominem contra cientistas, argumentos-espantalhos que nunca foram enunciados por nenhum acadêmico para desmentir e supostamente refutar pesquisadores, demonstrando para leitores minimamente atentos que não domina a questão ambiental, a ponto de afirmar que: “Na realidade, em média, a biodiversidade nas ilhas ao redor do mundo dobrou graças à migração de ‘espécies invasoras’.”
Questão basilar: a quantidade de espécies em uma unidade geográfica refere-se ao conceito de riqueza de espécie e não à biodiversidade. Aliás, estudos demonstram que espécies invasoras ameaçam a biodiversidade.[vii] É coerente que o negacionismo científico projete alguém como referência da extrema-direita e que esse alguém construa argumentos distorcendo fatos.
As críticas à trajetória de Shellenberger não são usadas para desqualificar as denúncias feitas por ele, estas caíram por serem incorretas, como ele admitiu. Logo, não se trata aqui da falácia ad hominem, mas da caracterização de um modus operandi. Tanto que, depois de desmentido, Shellenberger continuou a atacar Moraes com opiniões apoiadas por pessoas como Glenn Greenwald e supostos liberais brasileiros. Os ataques desconsideram que a legislação sobre liberdade de expressão aqui é diferente dos EUA, onde é permitida a atuação do Partido Nazista e da Ku Klux Klan; ao passo que o Brasil se alinha às convenções internacionais que proíbem expressões racistas, discriminatória (gênero, origem étnica, etc.), apologia à violência e discurso de ódio[viii]. Além disso, inventa meios para acusar o STF de abuso de competência nesse caso[ix], qualificando as decisões judiciais como excepcionais, ao mesmo tempo em que contam com o apoio da extrema-direita local para evitar projetos de lei que regulamentem as redes sociais.
Voltando ao chefe. Elon Musk, ao endereçar os ataques ao STF e destacar Alexandre de Moraes, resgata o atalho difundido por Eduardo Bolsonaro e outros deputados da extrema direita na “missão” aos EUA. De modo coordenado, houve amplificação interna e externa do assunto na internet e por políticos de extrema-direita. São exemplos: a moção de aplauso e louvor concedida pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara brasileira; e, externamente, os apoios de André Ventura, do Chega (Portugal), Santiago Abascal, do Vox (Espanha), que se referiu a Moraes como “carcereiro de Lula”; e do presidente argentino Javier Milei. Notem a presença dos parâmetros do Alt-Right (ataques ad hominem, desinformação, conspiracionismo e unidade frente a um suposto inimigo público).
Elon Musk buscou ares de legitimidade na comissão presidida pelo deputado Jim Jordan, como vimos na seção anterior. Ali, o importante não era o conteúdo, a consistência da denúncia, mas o ritual e a suposta inação do governo Biden (mirando o contexto eleitoral dos EUA). Jordan, ao acusar o Brasil de usar instituições para minar a democracia (crítica comum aos políticos de extrema direita), banalizou uma acusação devolvendo-a aos adversários, e misturou governo com STF para sugerir interferência partidária no Judiciário.
O deputado partilha das estratégias Alt-Right e usou-as diversas vezes: paralisou o governo para retirar o financiamento ao seguro saúde (Affordable Care Act – ACA), em 2013; apoiou a proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015; se opôs à vacinação obrigatória durante a pandemia de Covid-19; contestou os resultados eleitorais de 2020; defendeu os invasores do Capitólio; não compareceu para depor sobre a invasão; e chantageou o presidente ucraniano condicionando o apoio ao país na guerra contra Rússia ao avanço das investigações sobre o filho de Joe Biden e seus negócios na Ucrânia. No primeiro caso, Jordan foi chamado de “terrorista legislativo” pelo companheiro de Partido Republicano John Boehner.
O deputado ultraconservador foi investigado por omissão em um escândalo de abuso sexual na The Ohio State University, onde era treinador de Wrestling (2018) e, apesar do apoio de Trump, enfrentou resistência no próprio partido na campanha para presidente da Câmara. Segundo a deputada republicana Liz Cheney: se Jordan fosse eleito, “não haveria nenhuma chance de argumentar que era possível contar com congressistas republicanos eleitos para defender a Constituição”.[x] Em que pese alguns dos republicanos não ver compromisso democrático de Jordan nos EUA, ele foi elevado a defensor da “democracia” brasileira pela extrema direita.
Para completar a hipocrisia, Elon Musk tentou censurar nos EUA pesquisadores do CCDH – Center for Countering Digital Hate (Centro de Combate ao Ódio Digital, antiga Brixton Endeavors) impedindo-os de divulgar avaliações sobre comportamento da rede social, sobretudo a comportamentos tóxicos. Esta ONG identificou que não foram tomadas medidas contra 99% das contas verificadas que disseminam discursos de ódio e que as postagens com insultos aumentaram em 202% sob gestão do magnata. Em reação, Musk recorreu à via judicial acusando a entidade de uso de dados ilegais e que a divulgação das informações afugentou publicidade e patrocinadores. Perdeu, mas ao que tudo indica, não é bem a absoluta liberdade de expressão que o move, mas a liberdade de alguns tipos de expressão que promovem sua ideologia e seus negócios a qualquer custo.
Interesses imediatos
O Brasil é um dos principais mercados do X/Twitter, cujas postagens discriminatórias, violentas e conspiratórias geram mais engajamento e há outros interesses econômicos, como mostra The Intercept Brasil[xi]:
(a) Lítio. O Serviço Geológico Brasileiro descobriu reservas de lítio no Vale do Jequitinhonha (norte de Minas). A área explorada pela brasileira Vale (umas das fornecedoras para de lítio e níquel para empresas de Elon Musk) e pelas empresas estrangeiras Sigma e AMG Mineração. A Sigma é uma empresa canadense que Elon Musk tem o interesse de comprar e a AMG é uma empresa holandesa. Musk se reuniu recentemente com Nicolai Tangen, CEO do Norges Bank, que possui ações dessas duas mineradoras estrangeiras que atuam no norte de Minas.
(b) Carro elétrico. As negociações para a BYD investir no Brasil incluem a compra da antiga planta da Ford na Bahia. A efetivação desse acordo é prejudicial à Tesla; pois a BYD, que já cresceu 6900% em 2023 no Brasil, lidera a venda global de carros elétricos e, com a planta brasileira, pode ampliar a liderança no mercado com aumento das exportações para a América do Sul. Em 15 de abril, a Tesla anunciou que, em função da menor demanda por seus veículos, demitirá 10% dos seus funcionários, atingindo cerca de 14 mil trabalhadores.
Na próxima seção, tratamos de John Textor.
Textor: low profile da extrema direita, a instrumentalização da paixão pelo futebol e da luta contra corrupção
Desde o final de 2023, John Textou lançou acusações para minar ainda mais a credibilidade da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e do Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD). Como Shellenberger e Musk, misturou denúncias com provas de outros casos para sustentar sua narrativa e gerar desconfiança em relação às entidades.
Ele começou com um relatório encomendado junto à empresa Good Game!, que apontava uma série de erros de arbitragem, classificando como erros graves inclusive lances em partidas que nenhuma decisão tinha sido contestada antes para sugerir manipulação do Campeonato Brasileiro da série A de 2023. Segundo o documento, o Botafogo deveria ter terminado com vários pontos à frente do Palmeiras.
Em março, afirmou ter gravação de um árbitro e lançou essa suspeita no meio da acusação de manipulação em favor do Palmeiras – mais especificamente citou um jogo de 2022 entre Palmeiras e Fortaleza. Porém, o áudio era de um árbitro de divisões inferiores do Rio de Janeiro. Percebem a semelhança com Shellenberger? (1) Uso de provas de outro caso para sustentar a narrativa; (2) como Shellenberger confundia atores do complexo sistema de justiça brasileiro, John Textor mistura atribuições divididas pelo sistema de federações estaduais e confederação nacional.
Ainda assim, se colocou como vítima: criticou O Globo por matéria que associava a gravação à série A do Brasileirão, dizendo não ter afirmado isso. Mas qual a lógica em falar da gravação no meio de acusações de que os últimos títulos brasileiros do Palmeiras não foram limpos? Sem dizer literalmente, acessando o viés de confirmação, alimentou a desconfiança e favoreceu o conspiracionismo.
John Textor diz que alertou oficialmente a CBF ainda durante o Campeonato Brasileiro de 2023, mas o aviso foi feito em relação a uma partida do Brasileiro de 2022 e o representante da Good Game! afirmou que mandou o alerta para o e-mail da CBF. Sem saber, sequer, se o e-mail chegou para um responsável ou se foi para a caixa de spam. Ou seja, não houve notificação oficial. Apenas depois John Textor entregou oficialmente ao STJD o relatório Good Game! com os supostos erros de arbitragens.
Além dos problemas na gestão do futebol, na contratação de um substituto para o técnico Luiz Castro, a SAF de John Textor deve a clubes, como o São Paulo FC. Chega a ser curioso que o São Paulo tenha sido citado pelo cartola justamente no dia que anunciou que ingressaria com ação por falta de pagamento pela venda de Tchê Tchê ao Botafogo. O São Paulo também questiona o valor da venda do goleiro Lucas Perri do Botafogo a outro clube de Textor, o Lyon. O valor de €6,4 milhões por Perri e o zagueiro Adrielson, anunciado oficialmente, é inferior ao valor de mercado dos atletas e favoreceu o Lyon a não atingir o limite do Fair Play Financeiro da Liga Francesa, lesando o São Paulo que detinha 18,5% dos direitos econômicos de Perri.
O timing, no mínimo, curioso não é o único problema. John Textor acusou o envolvimento de atletas do São Paulo na manipulação favorável ao Palmeiras se baseando em outra análise de inteligência artificial da Good Game!, cujo CEO Thierry Hassanaly depôs em audiência pública no Senado (em 20/03/2024) deixando dúvidas, conforme matéria de Rodrigo Mattos.[xii] A empresa informou que, para análise de manipulação, considera apenas o comportamento técnico de atletas em campo por meio de inteligência artificial e análise de especialistas sem nenhum cruzamento com apostas ou supostos favorecimentos. Também informou que não faz monitoramento em larga escala de jogos no Brasil e que não poderia informar quais jogos foram manipulados. Por fim, admitiu não ter como saber os motivos e não explicou como concluíram que determinados atletas do Fortaleza e São Paulo manipularam jogos sem informações extracampo.
Contudo, a empresa responsável por monitorar o futebol no Brasil observou mais de nove mil partidas em 118 competições diferentes e identificou 109 partidas com indícios de manipulação: 94 em jogos de federações estaduais e apenas 15 em competições da CBF (uma da série B, uma da Copa Verde e 13 da série D).[xiii] Há um dado muito relevante: o monitoramento oficial de partidas no Brasil é feito pela Sportradar,[xiv] fundada na Noruega, com sede na Suíça, cujo método, validado pela Universidade de Liverpool, analisa simultaneamente padrões de apostas e que monitora jogos da FIFA, UEFA e da Conmebol e atua em outros esportes: basquete (atua para a NBA), beisebol (para a MLB), hóquei (para a NHL), futebol americano (para a NFL), tênis (para a ATP Tour), handebol (Handball-Bundesliga), críquete (para a BCCI) e automobilismo (para a FIA e NASCAR). Os responsáveis pela Good Game!, por sua vez, não citam no site ou na audiência pública do Senado nenhuma competição pela qual é responsável pelo monitoramento de integridade e admitem não haver muitos estudos científicos sobre o modelo de análise comportamental utilizado. A empresa sequer participou do Congresso de Integridade, realizado pela FIFA em Singapura, em 04 e 05 de abril.[xv]
Modus operandis
Casado com Deborah e pai de Christopher, John Charles Textor tem um de seus endereços registrado em Hobe Sound, na Flórida. Ele é (ou era até bem pouco tempo) filiado ao Partido Republicano[xvi] e já defendeu publicamente o extremista Ron DeSantis[xvii] – o mesmo apoiado por Elon Musk. Portanto, independente de relações pessoais, há convergência ideológica e relações objetivas dele e de Musk com a extrema direita estadunidense. Mais do que isso, a estratégia de John Textor para supostamente denunciar a corrupção na CBF e no futebol brasileiro se assemelha ao modus operandi utilizado pelos adeptos do Alt-Right.
John Textor pouco fala de preferências ideológicas e adesão partidária. Esse modo low profile é coerente com a busca por dissimular os sentidos políticos do futebol. Nesse caso, ele fez sua lição de casa ao se colocar em defesa da lisura e transparência do jogo contra a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), cujo histórico coloca em dúvida a credibilidade dos resultados futebolísticos no Brasil. É como se lutasse no âmbito do futebol com interesses meramente esportivos.
John Textor esteve no centro de uma polêmica envolvendo recursos públicos e financiamento de campanha na Flórida. Em 2009, foi aprovada uma emenda que autorizou o então governador republicano Charlie Crist (2007-2011), a disponibilizar cerca de US$42 milhões para o desenvolvimento econômico; deste, o Projeto Bumblebee da Digital Domain, presidida por Textor na época, ficou com a metade. Em sequência, John Textor realizou doações de campanha para políticos republicanos, gerando suspeição. Foram beneficiados o então governador, que concorreu para o Senado em 2010; Kevin Ambler e David Rivera que, na ocasião, eram deputados estaduais e ajudaram na aprovação. Coincidência ou não, um dos parceiros comerciais de John Textor, Dan Marino, participou da arrecadação de fundos para a campanha de Ambler.[xviii]
Tal como Musk, Textor recorreu à justiça em 2016 para calar um crítico. Processou Alki David, dono de uma empresa de efeitos especiais concorrente à Digital Domain. David, dentre outras práticas acusadas de perseguição cibernética, divulgou processos judiciais contra a empresa de John Textor (inclusive, a tentativa do Estado da Flórida reaver o dinheiro fornecido durante o governo Crist) e ironizou Textor nas redes sociais com uma foto de Hitler legendada com a frase: “Desculpa se ofendi algum #neonazi”, que pode se referir aos vínculos políticos que mencionamos antes, ao processo de censura ou a algo mais na biografia de John Textor. A liminar contra David foi anulada no Tribunal de Apelação.[xix]
O que está por trás?
Há uma intenção deliberada de gerar desconfiança sobre o futebol brasileiro, apontando irregularidades em outras divisões e competições para sustentar a seguinte pergunta: quem garante que não ocorreu ou ocorrerá na série A. Textor resolveu se vestir de “mártir” do combate à corrupção no futebol. Enquanto Elon Musk, atuou numa seara de direito coletivo, se limitando à discursivamente lutar contra o Estado em defesa do “povo”, John Textor escolheu um campo cuja denúncia demanda o apontamento de corruptor e beneficiário. Por isso, ele citou os cúmplices (CBF e STJD); mas, em que pese, afirmar ter citado nominalmente para Polícia Civil do Rio de Janeiro o rol de corrompidos dentre árbitros e jogadores de São Paulo e Fortaleza, ele não aponta corruptor e motivos – apenas um suposto beneficiário (o Palmeiras) favorecido sabe-se lá por quem e por quê.
Em 16 de abril, o jornalista Leandro Demori analisou no ICL Notícias a mudança nas armas geopolíticas dos EUA. A partir do governo de Richard Nixon (1969-74), a arma era o combate às drogas, cujos agentes da Drug Enforcement Administration (DEA), criada em 1973, atuavam como parte do sistema de inteligência. Essa arma ganhou recentemente o apoio de outra: o combate à corrupção. Por meio dela, agentes dos EUA obtêm acesso ao sistema de justiça e influenciam a atuação dos operadores do direito de outros países. O ordenamento jurídico estadunidense permite o uso das informações obtidas inclusive informalmente para processar empresas, organizações e instituições estrangeiras.[xx]
Obviamente, essa nova arma é usada seletiva e estrategicamente para favorecer empresas, instituições e organizações yankees. Assim como garantir os interesses estratégicos e manter o poder hegemônico do imperialismo estadunidense. No caso da Operação Lava-Jato, acumulam-se cada vez mais evidências, reveladas por grandes meios de comunicação internacionais, de que o combate à corrupção foi instrumentalizado por setores da oposição e do Departamento de Estado dos EUA, para combater “a autonomia da política externa brasileira e a ascensão do país como uma potência econômica e geopolítica regional na América do Sul e na África, para onde as empreiteiras brasileiras Odebrecht, Camargo Corrêa e OAS começavam a expandir seus negócios (impulsionados pelo plano de criação dos ‘campeões nacionais’ patrocinado pelo BNDES, banco estatal de fomento empresarial”.[xxi] Para tal, provas obtidas informalmente serviram aos processos contra Odebrecht e Petrobras nos EUA. Mas não só.
O FifaGate (2015) resultou de investigações realizadas pelo FBI, a polícia federal dos EUA, resultando em prisão e afastamento de dirigentes da Fifa. As investigações envolviam corrupção, fraude, extorsão, lavagem de dinheiro e propinas referentes à definição de sedes para Copas do Mundo e acordos de marketing e direitos de transmissão desde 1991. A alegação para a ação na justiça estadunidense é que operações suspeitas passaram por bancos do país, algumas das tratativas para os crimes podem ter ocorrido no território e que o mercado televisivo do país foi afetado pelas irregularidades na comercialização dos direitos de transmissão – isso mesmo: o entendimento de que um caso ocorrido em qualquer lugar do mundo pode ser alvo do sistema de justiça dos EUA caso afete a economia do país. Coincidência ou não, após as operações, os EUA receberam da Fifa parte da Copa do Mundo de 2026 e o novo Mundial de Clubes de 2025 (SuperMundial de Clubes com 32 participantes).
As ações de John Textor tendem a não ter o mesmo alcance da Operação Lava-Jato, mas o espaço já destinado a elas pelos senadores da nova CPI da Manipulação do Futebol pode impactar na estrutura organizacional do futebol brasileiro, ainda mais se as autoridades dos EUA avaliarem a conveniência de continuar o avanço sobre o mercado do futebol. Os ataques à CBF e ao STJD não são banais, posto que o futebol brasileiro esteve no alvo no FifaGate: alguns dirigentes implicados eram brasileiros (José Maria Marin, Ricardo Teixeira, Marco Polo Del Nero) e o empresário brasileiro José Hawilla foi um dos delatores e acusados de participar do esquema.
Outrossim, ao menos duas SAFs tradicionais no Brasil são propriedade estadunidense: a 777 Partners, sediada em Miami, detém 70% da SAF do Clube de Regatas Vasco da Gama; e John Textor, estadunidense com endereço na Flórida, é dono de 90% da SAF do Botafogo – o nome dele é que aparece no Estatuto Social[xxii] e não o da Eagle, sediada em Londres.Eis a questão: isso pode ser considerado impacto sobre a economia yankee? E quanto às empresas patrocinadoras e demais investidores no futebol brasileiro com sede lá? Quantas dessas casas de apostas (bets) usam bancos e/ou provedores estadunidenses? Ou, mesmo que o processo não vá inteiramente para a justiça estadunidense, quais as informações formais e informais serão enviadas?
John Textor teria meios mais efetivos para colaborar com um futebol limpo, caso apresentasse antes provas e/ou indícios para dar causa a uma abertura de inquérito via MP, Polícia Civil do Rio de Janeiro (PC-RJ) ou Polícia Federal. Mas, não é disso que se trata e ao menos uma mentira já veio à tona: o empresário afirmou ter comparecido voluntariamente para prestar depoimento na PC-RJ, no último 03 de abril, mas a versão oficial da polícia é que ele foi intimado.[xxiii] Em consequência, após meses de sensacionalismo, no último dia 12, entregou à PC-RJ os tais relatórios, vídeos e gravações que afirma provar a série de acusações.
O presidente da CPI do futebol no Senado, Jorge Kajuru, já havia sinalizado que acionaria a Polícia Federal e obteve apoio dos bolsonaristas Eduardo Girão e de Carlos Portinho. É aí que a complexidade do futebol brasileiro desarma um observador externo menos atento: Girão já presidiu o Fortaleza e Portinho foi vice-presidente do Flamengo. Apesar de estarem ideologicamente próximos a John Textor, o futebol brasileiro, como instituição política informal, produz seus efeitos políticos e constrange seus atores a prestar contas às suas bases eleitorais.
Qual a intenção imediata por trás das ações de suas ações? Afetar a CBF, desviar o foco dos insucessos esportivos do Botafogo, dar causa à rescisão da compra da SAF ou outra coisa? Seja qual for, a forma como age não é acidental e não está apartada do modo de agir de Elon Musk. A ideia de que relatórios de uma empresa inexpressiva são suficientes para provar as denúncias poderia ser uma crença anormal na capacidade da Inteligência Artificial explicar o jogo de futebol por padrões? Logo o esporte que mais se caracteriza pelo improviso e pelo acaso.
Se for isso, ele não usa a ferramenta para ajudar na gestão dos seus clubes ou claramente a tecnologia não tem dado conta. Afinal, Textor é mais conhecido por problemas e suspeitas em seus clubes na França, na Inglaterra e na Bélgica que pelo sucesso esportivo. Não acreditamos, porém, nessa inocência: no manual Alt-Right o que importa não é a qualidade das provas ou a veracidade das acusações, mas que tais denúncias sejam verossímeis para provocar um efeito na opinião pública e, com isso, influenciar a dinâmica social. Estamos falando de uma estratégia de manipulação da comunicação de massa no mundo virtual.
É possível questionar: qual a lógica de desvalorizar o mercado que atua? Aqui partimos de uma questão originada na idealização da entrada do capital e da gestão empresarial no futebol. Há uma crença generalizada entre torcedores que a entrada de uma empresa ou um empresário significará fatalmente a consolidação do seu clube de coração como grande competidor. Essa crença desconsidera que a finalidade do investimento privado é o lucro e, no futebol, há meios menos arriscados para acumulação que apostar nos títulos. O investidor pode buscar retorno pela exploração da estrutura física, pela revelação e desenvolvimento de talentos. Especialmente as últimas, são formas que dificilmente se compatibilizam de modo duradouro com conquistas de títulos em um meio competitivo como o Brasil.
A opinião pública entende claramente a legitimidade dessa estratégia para o RB Bragantino Futebol Ltda. (uma pessoa jurídica empresarial distinta da SAF), mas finge não perceber que, apesar da tradição, algumas das SAF podem ser projetadas para essas finalidades e não para os incertos resultados esportivos. Podem existir para vender atletas jovens ou desenvolver jogadores para equipes prioritárias dos respectivos grupos gestores.
As transações de jogadores do Botafogo com outros clubes da Eagle estão aí para quem quiser ver. Textor, que se deslumbrou com a receptividade da torcida e com a possibilidade do título brasileiro em 2023, encontra nos ataques um argumento para se reposicionar coerentemente com as estratégias da Eagle para o futebol. Ao mesmo tempo em que atira contra o arranjo vigente no futebol para justificar os insucessos esportivos e dar legitimidade a propostas de organização do futebol que favoreçam mais seus objetivos mercantis – ou, pior, encontrar justificativa para rever a compra da SAF.
Da cultura popular ao Judiciário: a promoção da desconfiança contra a soberania nacional
É importante ser claro: não estamos afirmando que Elon Musk e John Textor sentaram-se em uma mesa com os líderes da extrema direita mundial para dividir as tarefas no ataque à soberania nacional (Musk) e a elementos da cultura popular brasileira (Textor). Porém, claramente o Brasil está sob ataque em múltiplos campos com a participação de diversos atores (individuais ou coletivos) que compartilham estratégias similares e recorrem a um modo de agir alinhado aos manuais do Alt-Right. Elon Musk e John Textor fazem parte disso. Em termos objetivos há um ambiente político, ideológico e institucional que parametriza as escolhas dos agentes do capitalismo norte-americano.
Para estes o Brasil, como outros da América Latina, somos um país subordinado com fraquíssima vontade político-institucional de resguardar nacos de soberania nacional. Ao mesmo tempo encontram no plano doméstico setores sociais dispostos a fazer o serviço sujo dos interesses estrangeiros. Esse é o contexto mais geral que podemos concluir que claramente o Brasil está sob ataque.
Manuel Domingos Neto, em seu texto para o DCM, apontou um elemento fundamental: “Os que disputam a hegemonia do mundo criam expedientes capazes de atuar a seu favor […] Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional. Musk não é um gênio sul-africano que se fez sozinho. Não iria longe sem parcerias com os gestores da estratégia de dominação estadunidense. Antes de tudo, Musk é um agente do Pentágono. Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios […] Não é apenas a democracia que está em risco, mas a autonomia nacional […] Musk não é um mero empresário. É um agente a serviço de Washington. Seus apoiadores não sabem o que seja defesa da pátria (grifos nossos)”.[xxiv]
O mesmo se aplica a John Textor (“Não cabe imaginar que um potente indutor de comportamentos coletivos cresça e atue à revelia de detentores dos grandes cordões da política internacional”). Sem fazer qualquer ilação, é possível verificar, como dissemos antes, relações com lideranças políticas do Partido Republicano, alinhadas ao Alt-Right, tanto por parte do magnata sul-africano quanto do CEO do Botafogo.
Desse modo, é possível que o objetivo maior seja potencializar suas atividades econômicas, mas ambos perceberam que o ataque à soberania nacional (Musk) e a implosão do arranjo institucional nacional vigente e a desconfiança a um elemento da cultura popular (Textor) facilita a realização desses interesses, sobretudo pela obtenção de apoio na opinião pública. Musk, como “guardião da liberdade”, e Textor, como “defensor da moralização da maior paixão nacional”, recorrem à desinformação (mistura acusações diferentes em um mesmo discurso) e contam com o viés de confirmação de pessoas que acreditam que: (i) o politicamente correto e os limites da liberdade de expressão favorecem a destruição dos seus valores comunitários em favor de uma agenda globalista/multicultural deletérios ao senso de pertencimento; (ii) que seus clubes e, portanto, eles mesmo estejam sendo deixado para trás em função de uma conspiração (privação relativa). Enquanto Musk passou a ser visto como mártir que protegeria um instrumento e um meio para a luta política; Textor defenderia que certas identidades não fossem preteridas – uma vez que a identidade clubística compõe a identidade de parte da população brasileira e auxilia na construção de laços comunitários.
Os interesses econômicos de Elon Musk são motivos suficientes para tentar influenciar politicamente a política nacional. Musk tem o exemplo de Minas Gerais: havia um projeto encabeçado pela Codemge (Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais) e a Companhia Brasileira de Lítio junto com a britânica Oxys e a Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração para explorar o lítio no estado e produzir as baterias no Brasil. A Oxys faliu em 2021 e, desde então, Romeu Zema, que se alinha em diversas pautas à extrema direita, defendeu a retirada do estado do negócio. Isso inviabilizou a participação da Companhia Brasileira de Lítio, cujo estado de Minas Gerais possui 33% das ações, e da Codemge.
Concomitante com o veto do governador à participação estatal, empresas estrangeiras passaram a explorar o lítio em Minas: além da Sigma e da AMG que já extraem o minério, Latin Resources, Atlas e Lithium Ionic negociam áreas. Nesse caso, a estratégia de fragilização nacional articulada com políticos locais conta com um histórico recente de êxito e favorece os interesses de Musk na compra da Sigma e na aproximação com o Norges Bank (acionista da Sigma e da AMG).
E quanto a John Textor? Em termos mais amplos, como disse Manuel Domingos Neto, “Nenhuma potência com aspirações de autonomia permitiria que um indivíduo ou uma instituição detenha influência possível de contraditar seus desígnios”. Para essa avaliação, veremos o grau de apoio que receberá para continuar seus ataques e/ou o modo que eles eventualmente serão dirimidos. De todo modo, a duração dessas ações até o momento demonstra não haver contradições com projetos político-econômicos mais amplos das instituições estadunidenses e sua exposição e maior frequência no Brasil (em comparação aos países dos outros clubes da Eagle) chama atenção para a existência de algo mais: a pauta anticorrupção e a publicidade ampliada com a nova CPI convergem com a nova arma geopolítica dos EUA e pode abrir caminho para órgãos de Estado norte-americanos acessem informações relevantes sobre aspectos jurídicos e o arranjo político-institucional do futebol brasileiro. Está claro que, caso Textor seja apenas um carona, isso não se deu ao acaso. Como vimos, sua discrição não esconde seus vínculos com a ala mais à direita do Partido Republicano.
Portanto, Musk e Textor usam estratégias com clara procedência política, mas se diferem pela pauta que mobilizam e o meio que atuam. A chance de êxito de Textor tende a ser menor porque a pauta da corrupção o coloca em rota de colisão com outros clubes e torcidas denunciados como corrompidos e beneficiários, fazendo com que o elemento ideológico seja minimizado pela identidade clubística confrontada. Além disso, o meio que atua conta com entidades que compõem um arranjo institucionalizado formal e informalmente.
A memória do FifaGate, por um lado, expõe a CBF pelos presidentes envolvidos em corrupção; por outro, ao afetar clubes, amplia o nível de reação organizada. Já Musk, além de ser mais conhecido, é dono de uma rede social que amplifica seu alcance, atua em uma área ainda em disputa (regulamentação da internet e das redes sociais) e recorre a uma pauta que supostamente o coloca em defesa de todos os cidadãos contra o arbítrio do Estado, sem se opor a entidades e instituições intermediárias que possam mobilizar reações populares mais orgânicas contra o ideal que dissimula seus interesses político-econômicos.
*Jefferson Nascimento é professor de ciência política no Instituto Federal de São Paulo. Autor do livro Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia (Appris).
*Renato Nucci Jr. é ativista da organização comunista Arma da Crítica.
Notas
[i] A empresa tem sede em Londres na 57-59 Beak Street, S/N. Porém, é o nome de John Charles Textor que aparece como investidor no Estatuto Social da SAF do Botafogo, detentor de 90% das ações da SAF.
[ii] https://www.washingtonpost.com/local/lets-party-like-its-1933-inside-the-disturbing-alt-right-world-of-richard-spencer/2016/11/22/cf81dc74-aff7-11e6-840f-e3ebab6bcdd3_story.html
[iii] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/04/11/ativista-americano-recua-e-desmente-acusacao-de-que-moraes-ameacou-processar-advogado-do-x.htm
[iv] https://www.aosfatos.org/bipe/censura-brasil-twitter-musk/
[v] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/01/india-censura-documentario-da-bbc-sobre-premie-modi.shtml
[vi] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/eleicoes-nos-eua-2024/trump-se-reune-com-elon-musk-em-meio-a-preocupacoes-com-arrecadacao-de-fundos/
[vii] https://jornal.usp.br/ciencias/relatorio-sobre-especies-invasoras-vai-integrar-estrategia-contra-o-problema-no-brasil/
[viii] https://www.conjur.com.br/2024-abr-08/se-deus-e-brasileiro-elon-musk-parece-querer-ocupar-o-lugar-dele/
[ix] https://www.conjur.com.br/2024-abr-11/o-desacato-de-elon-musk-ao-supremo-tribunal-federal/
[x] https://www.britannica.com/biography/Jim-Jordan-politician
[xi] https://www.intercept.com.br/2024/04/08/seguimos-o-dinheiro-que-movimenta-os-ataques-de-elon-musk-a-alexandre-de-moraes/
[xii] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2024/04/04/cinco-lacunas-nas-acusacoes-de-textor-de-manipulacao-do-brasileiro.htm
[xiii] https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/brasil-teve-109-partidas-suspeitas-de-manipulacao-em-2023/
[xiv] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/colunas/rodrigo-mattos/2024/04/03/empresa-fiscal-da-serie-a-nao-viu-manipulacao-em-jogos-citados-por-textor.htm
[xv] https://oglobo.globo.com/esportes/futebol/noticia/2024/04/14/por-que-as-acusacoes-de-john-textor-nao-ganham-apoio-e-sao-malvistas-no-meio-do-combate-a-manipulacao.ghtml
[xvi] https://voterrecords.com/voter/14317924/john-textor?__cf_chl_rt_tk=fpmxDLU06ScPrvOz4S0._HoMAvxeWHIHUnTbVSzWPWM-1712930785-0.0.1.1-1621
[xvii] https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/novo-dono-do-botafogo-ja-defendeu-governador-trumpista-no-twitter
[xviii] https://www.heraldtribune.com/story/news/2009/10/13/legislative-move-helped-studio/28895561007/
[xix] https://www.washingtonpost.com/news/volokh-conspiracy/wp/2016/01/07/court-ordered-a-billionaire-businessman-not-to-speak-online-about-a-rival-businessman-and-to-remove-posts-about-him/
[xx] Essa prerrogativa foi consolidada a partir do USA Patriot Act (Public Law 107-56), que teria o objetivo de combater o terrorismo internacional. A sec.1004 altera o Foro em casos de corrupção e lavagem de dinheiro, permitindo que o sistema de justiça dos EUA processe empresas e cidadãos de quaisquer países, se o ato tiver em algum etapa passado pelo sistema financeiro do país, por provedores, afetar a economia ou alguma atividade relacionada à corrupção tenha sido realizada no território dos EUA (Cf.: https://www.congress.gov/107/plaws/publ56/PLAW-107publ56.htm).
[xxi] https://www.lemonde.fr/international/article/2021/04/09/au-bresil-une-operation-anticorruption-aux-methodes-contestables_6076204_3210.html
[xxii] https://www.botafogo.com.br/safbotafogo/estatutos-atas.php
[xxiii] https://www.terra.com.br/esportes/botafogo/policia-civil-desmente-john-textor-do-botafogo-e-diz-que-o-intimou-a-depor,33fc2015604ef2f907522412204fce18qwcg5o84.html
[xxiv] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-agente-musk-por-manuel-domingos-neto/
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