Em busca de uma estética não-bolsonarista

Imagem: Leo Zhao
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Por JULIANA ANTUNES*

Do misticismo ao culto à morte, existem diversos elementos atrelados à estética dos movimentos de extrema direita

“Não ficarei tão só no campo da arte, / e, ânimo firme, sobranceiro e forte, / tudo farei por ti para exaltar-te, / serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te / dominadora, em férvido transporte, / direi que és bela e pura em toda parte, / por maior risco em que essa audácia importe. […]” (Trecho de “Liberdade”, poesia de Carlos Marighella).

Do que estamos falando?

Pensar na possibilidade à qual o presente artigo se refere, a constituição inicial de uma estética que escape dos moldes pré-dispostos pelo bolsonarismo requer, em um primeiro momento, pensar na própria significação da questão estética. Muitos autores, clássicos ou contemporâneos, procuraram dispor seus olhares em referência ao termo estético, pensando esse de diferentes modos.

Autores de diferentes correntes, ou de diversos campos das ciências humanas e sociais trabalharam – e seguem trabalhando – em reflexões que procurem definir a estética, bem como o seu vínculo às esferas políticas e sociais. Isto posto, em um momento inicial, trazer um apanhado de caráter geral referente à significação e importância da estética é de importância suma à proposição e à reflexão primeira de uma expressão estética que vise o rompimento em relação à barbárie imposta pelos grilhões do bolsonarismo.

Estética não significa belo. Conforme é afirmado por De Bruyne (apud SUASSUNA, 2012, p.14), “A Arte não produz unicamente o Belo, mas também o feio, o horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam assuntos horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem”. Ao mesmo passo, seu vínculo à questão artística se dá no sentido de a arte atuar enquanto modo de objetivação da estética, e a estética ser a maneira como ouvimos, vemos e concebemos num determinado contexto – social ou histórico (BERNARDO, 2021).

A estética, ademais, é um elemento fluido, mutante. Fayga Ostrower (2013, p.282) afirmava que “[…] ao mudar a vida mudam os valores e nossas representações desses valores e, assim, mudam os estilos [artísticos]. Em cada caso particular, encontramos como causa essencial das mudanças estilísticas a ocorrência de profundas transformações sociais”. Retomando o já aqui exposto, referente à estética enquanto modo de ouvir, ver e conceber, vale expressar uma vez mais a ressalva da estética enquanto esfera que engloba as performances, os rituais e demais vieses de caráter simbólico. Isto posto, dado que essa se modifica em diferentes períodos, como essa apresenta seu vínculo em contextos marcados pelas linhas totalitárias?

Walter Benjamin (2021, p.45-46) expressou seu pensamento acerca disso eivando o conceito de estetização da política: “As massas têm o direito de exigir a transformação das relações de propriedade: o fascismo procurava dar-lhes expressão conservando intactas aquelas relações. Consequentemente, o fascismo tende para a estetização da política”. Ou seja, a estetização da política se representa enquanto uma maneira de concessão, através do veículo estético, da suposta possibilidade de expressão dos desejos das massas. João Bernardo (2022, p.9) ainda acrescenta que o fascismo utilizou desse meio, além de que “[…] elevou ao máximo o expoente e o supraclassismo e a aparente fusão de todo o povo, por isso a necessidade de símbolos atingiu ali um grau sem precedentes e a política reduziu-se, pela primeira vez, a um desempenho exclusivamente estético”.

Nos últimos anos, é evidente que a extrema direita vigorou – e vigora – em um estado de crescimento – não só no Brasil, mas em todo o mundo. Cas Mudde (2022) chama a atenção ao modo com o qual partidos de tal quadro ideológico não apenas aumentaram seu apoio como também se elegeram em uma gama de países onde suas ideias antes eram rejeitadas. O Brasil com Jair Bolsonaro e sua base é apenas um dentre tantos reflexos deste processo.

Nesse ínterim, nas linhas que se seguem representaremos um esforço em, não apenas buscar pensar sobre como o bolsonarismo se apropriou do caráter estético para a construção de um ar de dominação no país, como também apresentaremos um pontapé à constituição de uma estética que vise o rompimento em relação a essas correntes.

 

A estética bolsonarista

João Bernardo (2022) ressalta o uso de manifestações artísticas pelo fascismo em várias de suas aparições no decorrer da história mundial. Seja no caso do fascismo italiano, do nazismo alemão, do salazarismo, ou de tantas outras manifestações, ocorreu pelos fascistas uma forte constituição e utilização de caracterizações responsáveis pela concretização de mitos, signos, símbolos, performances ou movimentos artísticos que atuassem de modo a embasar aquilo que vinha a ser defendido pelo movimento em voga. Era necessário que os regimes de caracterização totalitária estabelecessem esse núcleo de passiva identificação do povo com seus ideais, substanciando um apoio aos movimentos que se concretizavam em cada espaço-tempo.

Com o bolsonarismo, a utilização da estética não se deu de maneira antônima. Muito embora possa soar excêntrico ler que o governo Bolsonaro se utilizou de artifícios paralelos às manifestações artísticas para firmar seu poder no país, dada a sua constante perseguição aos artistas e demais trabalhadores da cultura brasileira, a série de signos estabelecida pelo ex-presidente não apenas lhe cedeu espaço de atuação, como também de expansão e consolidação de uma forte base.

Robert Paxton (2007, p.23), por sua vez, ainda afirma: “Na mais explicitamente visual de todas as formas políticas, o fascismo se apresenta a nós por vívidas imagens primárias: um demagogo chauvinista discursando bombasticamente para uma multidão em êxtase; fileiras disciplinadas de jovens desfilando em paradas; militantes vestindo camisas coloridas e espancando membros de alguma minoria demonizada; invasões-surpresa ao nascer do sol e soldados de impecável forma física marchando por uma cidade capturada”.

O que Robert Paxton (2007) procura afirmar, no trecho destacado, mas também nas páginas seguintes da obra citada é que o fascismo, para além de atuar enquanto modelo político, também atuou na produção de imagens características de seus ideais. E, paralelamente, o que busco defender nas presentes linhas é referente ao fato de que o bolsonarismo atuou (e ainda atua) da mesma maneira.

Jair Bolsonaro, por si só, é válida a lembrança, das eleições de 2018 aos anos que se seguiram é constantemente referido sob a alcunha de mito. Isso, em análise sob o olhar aqui destacado, referente às constituições estéticas do fascismo, já demonstra muitas coisas a despeito do que se constituiria enquanto movimento bolsonarista. Claude Lévi-Strauss (2011) observava que a mitologia revela nuances importantes de sua sociedade proveniente, mas não evidencia o real estado da concreticidade vigente nela. O bolsonarismo vislumbra na imagem de seu mito uma áurea de esperança, mudança, direção, messianismo. E é, pois, a partir disso que Jair Bolsonaro emerge enquanto um líder do movimento, sendo o líder, o messias, o “capitão”. Como os mitos não revelam a verdadeira realidade, torna-se vertiginoso olhar para além dessas certezas pré-estabelecidas e enxergar a realidade da pessoa que se pronuncia à série de seguidores ensandecido.

Sendo Jair Bolsonaro o mito, transpassando no ideológico de seus seguidores, muitas vezes o caráter humano atrelado à sua figura é despido em prol de um caráter associado ao messiânico. E é nesse sentido que não faltaram ao mesmo durante seus quatro anos de governo o recebimento de uma série de homenagens artísticas, manifestadas nas tipificações de estátuas, pinturas, caricaturas, etc. O ex-presidente, que por sua vez é galgado em um forte sentimento de vaidade, manteve todo esse vasto acervo de homenagens consigo no dia-a-dia, vislumbrando a si mesmo em diversos ângulos e composições por todo o Palácio do Planalto.

Devemos enaltecer, ademais, que o misticismo bolsonarista não está aplicado somente ao trato de seu líder enquanto mito ou messias, mas também a uma própria paixão religiosa. A constante referência à guerra espiritual, as correntes de orações, o atrelamento de seus adversários à caracterização de forças do mal, ou a referência constante ao cristianismo ilustram tal constatação.

Além disso, outro elemento de caráter estético atrelado ao bolsonarismo se vinculam ao seu fascínio pela morte. Desde os eixos do diálogo, vinculados ao lema do “O soldado que vai à guerra e tem medo de morrer é um covarde” até à fissuração por armas, que não raramente aparecem em fotografias, ilustrações ou demais objetos artísticos produzidas no interior do movimento. Outrossim, o nacionalismo exacerbado é outro elemento em voga. A captura da camiseta de futebol brasileira enquanto “uniforme” dos bolsonaristas, a paixão pela bandeira nacional ou por suas cores, o fulgor e a emoção pelo Hino Nacional, além da constante referência entre os membros dos grupos sob o signo de patriota são questões que ilustram essa nuance.

 

Pontapé a uma estética não-bolsonarista

O objetivo do presente artigo não se manifesta na conclusão do debate relacionado à busca pelo rompimento em relação à estética bolsonarista; pelo contrário, o presente artigo busca abrir portas para iniciar-se um debate correlacionado à temática em questão.

Como bem tivemos a chance de vislumbrar, o debate estético, no que tange a todo o leque de assuntos referentes à temática bolsonarista, ou à temática do recrudescimento da extrema direita como um todo, de maneira antônima ao que se possa pensar à primeira vista, não é algo sem importância. Walter Benjamin (2021) já alertava para o fato de que o processo de estetização da política poder-se-ia comportar enquanto o elemento responsável pela guerra.

Ocorre, nesse sentido, a necessidade de estabelecer uma relação de negação às proposições estéticas do movimento bolsonarista, aglutinadas de modo breve no decorrer das linhas que se seguiram. Pensar em um arranjo estético que fuja das personalizações, do mórbido e do totalitário é pensar na chance de construção de um horizonte de futuro distante da caracterização opressora.

Isto posto, trabalhar constantemente na busca de ideias que corroborem para com uma ação de rompimento em relação aos laços estéticos do bolsonarismo se apresenta enquanto uma ação, tanto de última hora, quanto dependente de um esforço e construção coletiva e diária.

*Juliana Antunes é mestranda em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Referências


BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época da possibilidade de sua reprodução técnica (5ª versão). In: BENJAMIN, Walter. Estética e Sociologia da Arte. Belo Horizonte: Autêntica. 2021.

BERNARDO, João. Arte e Espelho. Passa Palavra. 2021.

BERNARDO, João. Labirintos do Fascismo: fascismo como arte. Vol.5. São Paulo: Hedra. 2022.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O homem nu. Vol.4. São Paulo: Cosac Naify. 2011.

MUDDE, Cas. A Extrema Direita Hoje. Rio de Janeiro: Eduerj. 2022.

PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra. 2007.

OSTROWER, Fayga. Universos da Arte. Campinas: Editora Unicamp. 2013.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. 2012.

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