Em defesa de um Banco Central verde

Jan Martel (1896–1966), Maquette for Arbre Cubiste (Cubist Tree), 1925.
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Por YANIS VAROUFAKIS*

O fato de se discutir a ideia de bancos centrais verdes é um lembrete de que vivemos tempos desesperados

O próprio fato de estarmos discutindo a ideia de bancos centrais verdes é um lembrete de que vivemos em tempos desesperadores. Demonstra que as pessoas boas, que se preocupam apaixonadamente com a transição verde, perderam a esperança de viver em democracias funcionais, dispostas e capazes de perseguir nosso interesse comum.

Desde a década de 1970, nossos regimes ocidentais adotaram o manto da independência dos Bancos Centrais. Independência de quê? Dos políticos sujos ansiosos para utilizar as máquinas de impressão dos bancos centrais para confeccionar seus ninhos, vem a resposta padrão. A qual, na prática, significa independência do parlamento.

Mas isto também inclui decisões altamente políticas (por exemplo, um aumento das taxas de juro que transfere o poder dos devedores para os credores, ou a compra de títulos de uma companhia de energia) fora do alcance dos manifestantes e nas mãos de uma oligarquia que tradicionalmente lucrou com as políticas que destroem o planeta. De fato, sempre que as decisões políticas são disfarçadas de decisões técnicas e retiradas do domínio democrático, o resultado são políticas tóxicas e fracasso econômico.

Enquanto estou animado com a recente urgência de engajar-me na política monetária em busca da transição verde, o que me enche o coração de tristeza é que todas as conversas recentes sobre bancos centrais “verdes” não são acompanhadas de qualquer contestação à noção de independência do banco central.

Despolitizar as decisões políticas

Tal como as políticas monetárias, as políticas verdes são – e não poderia ser diferente – escolhas políticas. Quer introduzamos uma taxa do carbono ou abandonemos os combustíveis fósseis ou impulsionemos a energia nuclear, cada uma dessas decisões tem efeitos diferentes sobre as diferentes pessoas, comunidades e classes sociais. Elas são políticas do início ao fim. Deixar tanto as políticas monetárias como as políticas verdes aos bancos centrais nominalmente independentes é, efetivamente, terceirizar todas as decisões que interessam à oligarquia com a qual os bancos centrais estão comprometidos.

Na verdade, o que tem acontecido é que desde os anos 1970 a independência dos bancos centrais tem sido uma desculpa para despolitizar formalmente as decisões políticas. Em outras palavras, de reduzir intencionalmente a democracia e abandonar a noção de que as decisões políticas cruciais devem ser alcançadas democraticamente.

Os bancos centrais não podem ser, e nunca foram, independentes. Sua independência legal simplesmente reforçou sua dependência dos banqueiros, dos credores, dos interesses das corporações multinacionais. Colocar as esperanças de uma transição verde nestes mesmos bancos centrais é legitimar o declínio da democracia, enquanto transforma os cidadãos em habitantes suplicando aos banqueiros centrais que salvem o planeta em seu nome.

Compreensivelmente, banqueiros centrais como Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu (BCE), não podem sair à luz do dia para desafiar artigos básicos dos estatutos que os vinculam profissional e legalmente. Sendo legalmente obrigados a não criticar a independência do banco central, é natural que expressem qualquer preocupação que tenham com o planeta procurando “esverdear” as práticas de sua instituição – por exemplo, excluir títulos de garantia que foram utilizados para financiar a produção de eletricidade a partir de lignito.

Mas para os democratas dispostos a pressionar para a transição verde, é lógica e eticamente inadmissível continuar falando sobre a importância de “tornar verdes” os nossos bancos centrais, enquanto permanecem mudos na farsa antidemocrática que é um pretexto para a independência do banco central.

Pode-se contra-argumentar que, seja como for, estamos sobrecarregados com bancos centrais cujos estatutos são o que são. Dada a emergência climática, podemos desperdiçar anos debatendo novos estatutos e mandatos para os nossos bancos centrais? Não deveríamos fazer o que for preciso a curto prazo, no âmbito dos estatutos existentes dos bancos centrais, para desencorajar a poluição e reforçar os investimentos verdes?

Sim, claro que deveríamos. Os bancos centrais devem ser imediatamente pressionados para cumprir a tarefa com as próprias mãos. Salvo que isto não pode e não deveria ser feito através da aplicação de critérios políticos ou ambientais por eles próprios às suas práticas de empréstimo, incluindo a flexibilização quantitativa.

Alterar o mandato do BCE

Para ilustrar meu ponto, compare e contraste dois enfoques para a utilização do poder de fogo do BCE na busca de um novo acordo verde genuíno na Europa.

Um enfoque, ao qual eu me refiro como “ajuste de garantia”, é o de adulterar as regras de garantia do BCE, vinculando a margem de avaliação que aplica aos títulos corporativos de garantia à pegada de carbono da empresa em questão. Por exemplo, emprestar apenas 40% de um título da ExxonMobil fixado como garantia, mas elevando-o para 70% se o gigante petrolífero interrompe todos os projetos de perfuração futuros.

O problema com isto é triplo: jurídico, político e prático. Legalmente, o mandato do BCE, tal como especificado em seu estatuto, deve ser extendido para além do seu atual compromisso único de estabilidade de preços – uma tarefa que envolverá 27 parlamentos aceitando um novo estatuto.

Mas, mesmo que este obstáculo possa ser ultrapassado ou contornado, e todos façam vista grossa às novas regras de garantia, o problema político se mantém: quem decidirá que margem de avaliação se aplica a qual título? Terceirizar uma decisão política tão colossal para banqueiros centrais não eleitos constituiria a última gota da democracia.

E depois há a questão da impraticabilidade da política: como o BCE pode verificar que a ExxonMobil fará o melhor uso verde dos fundos que recebe, com a cortesia do abandono de futuras perfurações de petróleo e a garantia de uma pequena margem de avaliação para seus títulos? O que o BCE pode fazer se, digamos, descobrir que a ExxonMobil pegou o dinheiro e, em vez de investir em energia solar ou eólica, utilizou-o para recomprar suas próprias ações? A resposta é tristemente pouco.

Estabelecer uma aliança BEI-BCE

O segundo enfoque é deixar o estatuto do BCE em paz (pelo menos por enquanto), mas fazer o Conselho da União Europeia anunciar que está instruindo o Banco Europeu de Investimento a emitir novos títulos anualmente na ordem de 5% do PIB da UE para financiar a transição verde. Como o BCE já está comprando o maior número possível de títulos do BEI, legalmente dentro de seu atual estatuto, este anúncio estabelece efetivamente uma aliança BEI-BCE.

Uma declaração informal do BCE de que continuará comprando títulos do BEI garantirá que, sem um centavo de novos impostos, a UE tenha agora 5% do seu PIB para investir diretamente em energia verde, transportes, agricultura e indústria pesada a cada ano. Isto permitirá que a UE canalize dinheiro real para investimentos verdes da escolha coletiva de nossos governos. Nenhuma alteração do estatuto do BCE, nenhum ajuste de garantia, apenas ação verde imediata.

Enquanto esta medida não democratizasse o BCE em si (que teria de vir mais tarde), limitaria a tomada de decisões políticas do BCE e atribuiria a seleção de projetos verdes aos políticos eleitos no Conselho da UE e no Parlamento Europeu.

No entanto, não ouvimos nada sobre uma Aliança BEI-BCE – tal medida seria legal e mais eficaz no aproveitamento do poder de fogo do BCE para a transição verde da Europa. Mas nossos ouvidos estão zunindo com toda a conversa sobre bancos centrais verdes, confiando em “ajustes de garantia” juridicamente suspeitos e praticamente ineficientes.

Por que? Porque os poderes constituídos estão preparados para sacrificar a Terra antes de permitirem a redemocratização das decisões políticas que demoraram tanto tempo para tirar das mãos dos manifestantes.

*Yanis Varoufakis é ex-ministro das Finanças da Grécia. Autor, entre outros livros, de O minotauro global (Autonomia Literária).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

 

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