Em tempos de Covid

Imagem: Hamilton Grimaldi
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LEONARDO BOFF*

O cuidado necessário e irmandade afetuosa

Nos dias atuais, especialmente durante o isolamento social, devido a presença perigosa do coronavírus, a humanidade despertou de seu sono profundo: começou a ouvir os gritos da Terra e os gritos dos pobres e a necessidade do cuidado de uns para com os outros e também da natureza e da Mãe Terra. De repente, demo-nos conta de que o vírus não veio do ar. Não pode ser pensado isoladamente, mas dentro de seu contexto; veio da natureza. Ele é uma resposta da Mãe Terra contra o “antropoceno” e o “necroceno”, vale dizer, contra a sistemática dizimação de vidas, devida à agressão do processo industrialista, numa palavra, do capitalismo mundialmente globalizado. Ele avançou sobre a natureza, desflorestando milhares de hectares, na Amazônia, no Congo e em outros lugares onde se encontram as florestas úmidas. Com isso destruiu o habitat das centenas e centenas de vírus que se encontram nos animais e até nas árvores. Saltaram em outros animais e destes a nós.

Em consequência de nossa voracidade incontrolada, cada ano desaparecem cerca de cem mil espécies de seres vivos, depois de milhões de anos de vida sobre a Terra e ainda, segundo dados recentes, há um milhão de espécies vivas sob risco de desaparecimento.

A ideia-força da cultura moderna era e continua sendo o poder como dominação da natureza, dos outros povos, de todas as riquezas naturais, da vida e até dos confins da matéria; esta dominação ocasionou atualmente as ameaças que pesam sobre o nosso destino.  Essa ideia-força tem que ser superada. Bem dizia Albert Einstein: “a ideia que criou a crise não pode ser a mesma que nos vai tirar da crise; temos que mudar”.

A alternativa será esta: ao invés do poder-dominação deve-se colocar a fraternidade e o cuidado necessário. Estas são as nova ideia-força. Como irmãos e irmãs, somos todos interdependentes e devemos nos amar e cuidar. O cuidado implica numa relação afetuosa para com as pessoas e para com a natureza; é amigo da vida, protege e confere paz a todos que estão à sua volta.

Se o poder-dominação significava o punho cerrado para submeter, agora oferecemos a mão estendida para se entrelaçar com outras mãos, para cuidar e para afetuosamente abraçar. Essa mão cuidadosa traduz um gesto não agressivo para com tudo o que existe e vive.

Portanto, é urgente criar a cultura da fraternidade sem fronteiras e do cuidado necessário que a tudo enlaça. Cuidar de todas as coisas, desde o nosso corpo, da nossa psique, do nosso espírito, dos outros e mais comezinhamente do lixo de nossas casas, das águas, das floresta, dos solos, dos animais, de uns e de outros, começando pelos mais vulneráveis.

Sabemos que tudo o que amamos, cuidamos, e tudo o que cuidamos também amamos. O cuidado sana as feridas passadas e impede as futuras.

É neste contexto urgente que ganha sentido um dos mais belos mitos da cultura latina, o mito do cuidado: “Certo dia, ao caminhar na margem de um rio,  Cuidado viu um pedaço de barro . Foi o primeiro a ter a ideia de tomar um pouco dele  e moldá-lo  na forma de um ser humano. Enquanto contemplava, contente consigo mesmo, com o que havia feito, apareceu Júpiter, o deus supremo dos gregos e dos romanos. Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito na figura que acabara de moldar. O que Júpiter acedeu de bom grado”.

Quando, porém, Cuidado quis dar um nome à criatura que havia projetado, Júpiter o proibiu. Disse que essa prerrogativa de impor um nome era missão dele. Mas cuidado insistia que ele tinha esse direito por ter, por primeiro pensado e moldado a criatura em forma de um ser humano.

Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam acaloradamente, de súbito, irrompeu a deusa Terra. Quis também ela conferir um nome à criatura, pois, argumentava, que ela  fora feita de barro, material do  corpo, da Terra. Originou-se então uma discussão generalizada sem qualquer consenso.

De comum acordo, pediram, ao antigo Saturno, também chamado de Cronos, fundador da idade de ouro e da agricultura, que funcionasse como árbitro. Ele apareceu na cena. Tomou a seguinte decisão que pareceu a todos   justa:      

“Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito quando essa  criatura morrer”.

“Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer”.

Mas como, você, Cuidado foi quem, por primeiro, moldou essa criatura, ela ficará  sob o seu cuidado enquanto  ela viver”.

 “E uma vez que entre vocês há consenso  acerca do nome, decido eu:  esta criatura será chamada Homem (ser humano), isto é, feita de húmus, que significa terra fértil”.

Vejamos a singularidade deste mito. O cuidado é anterior a qualquer outra coisa. É anterior ao espírito e anterior à Terra. Em outras palavras, a concepção do ser humano como composto de espírito e corpo não é originária. O mito é claro ao afirmar que “foi o cuidado o primeiro a moldar o barro na forma de um ser humano”.

O cuidado comparece como o conjunto de fatores sem os quais não existiria o ser humano. O cuidado constitui aquela força originante da qual jorra e se alimenta o ser humano. Sem o cuidado, o ser humano continuaria a ser apenas um boneco de barro ou um espírito desencarnado e sem raiz em nossa realidade terrestre.

O Cuidado, ao moldar o ser humano, empenhou amor, dedicação, devoção, sentimento e coração. Tais qualidades passaram à figura que ele projetou, isto é, a nós, seres humanos. Estas dimensões entraram em nossa constituição, como um ser amoroso, sensível, afetuoso, dedicado, cordial, fraternal e carregado de sentimento. Isso faz o ser humano emergir verdadeiramente  como humano.

Cuidado recebeu de Saturno a missão de cuidar do ser humano  ao longo de toda a sua vida. Caso contrario, sem o cuidado, não subsistiria  nem viveria.

Efetivamente, todos nós somos filhos e filhas do infinito cuidado de nossas mães. Se elas não nos tivessem acolhido com carinho e cuidado, não saberíamos como deixar o berço e buscar nosso alimento. Em pouco tempo teríamos morrido, pois não contamos com nenhum órgão especializado que garanta nossa sobrevivência.

O cuidado, portanto, pertence à essência do ser humano. Mas não só. Ele é a essência de todos os seres, especialmente dos seres vivos. Se não os cuidarmos, eles definham e lentamente adoecem e por fim morrem.

O mesmo vale para a Mãe Terra e para tudo o que nela existe. Como disse bem o Papa Francisco em sua encíclica que leva como sub-título” Cuidando da Casa Comum”: “devemos alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo”.

O cuidado é também uma constante cosmológica. Bem dizem os cosmólogos e astrofísicos: se as quatro forças que tudo sustentam (a gravitacional, a eletromagnética, a nuclear fraca e a forte) não se tivessem articulado com extremo cuidado, a expansão ficaria demasiadamente rarefeita e não haveria densidade para originar o universo, a nossa Terra e a nós mesmos. Ou então seria demasiada densa e tudo explodiria em cadeia e nada existiria do que existe. E esse cuidado preside o curso das galáxias, das estrelas e de todos os corpos celestes, a Lua, a Terra e nós mesmos.

Se vivermos a cultura e a ética do cuidado, associado ao espírito de irmandade entre todos, também com os seres da natureza, teremos colocado os fundamentos sobre os quais se construirá um novo modo de nos relacionar  e de viver na Casa Comum, a Terra. O cuidado é a grande medicina que nos pode salvar e a irmandade geral nos permitirá a sempre desejada comensalidade e o amor e a feto entre tods.

Então continuaremos a brilhar e a nos desenvolver sobre esse pequeno e belo planeta.

Esta consideração sobre o cuidado concerne a todos os que cuidam da vida em sua diversidade e do planeta, especialmente agora, sob  pandemia do Covid-19, o corpo médico, os enfermeiros e enfermeiras e outros que trabalham nos hospitais, pois, o cuidado essencial cura as feridas passadas, impede as futuras e garante o nosso futuro de nossa civilização de irmãos e de irmãs, juntos na mesma Casa Comum.

*Leonardo Boff é ecoteólogo, filósofo e escritor. Autor, entre outros livros de O cuidado necessário (Vozes).

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Marjorie C. Marona André Singer Bruno Fabricio Alcebino da Silva Andrew Korybko Claudio Katz Carlos Tautz Mariarosaria Fabris Vladimir Safatle Chico Whitaker Luiz Marques Alexandre Aragão de Albuquerque Lorenzo Vitral Matheus Silveira de Souza José Luís Fiori Andrés del Río Thomas Piketty Airton Paschoa Leonardo Sacramento Otaviano Helene Jorge Branco Maria Rita Kehl João Carlos Salles Paulo Sérgio Pinheiro Manchetômetro Ladislau Dowbor Tadeu Valadares Eleonora Albano Henri Acselrad Marcos Aurélio da Silva Paulo Nogueira Batista Jr Valerio Arcary João Lanari Bo Eduardo Borges Marcus Ianoni Luís Fernando Vitagliano Afrânio Catani João Feres Júnior Dênis de Moraes Mário Maestri Annateresa Fabris José Costa Júnior Eugênio Bucci Marcelo Guimarães Lima Antônio Sales Rios Neto Samuel Kilsztajn Fernando Nogueira da Costa Francisco Fernandes Ladeira Tales Ab'Sáber Anselm Jappe Alexandre de Lima Castro Tranjan Marilena Chauí Gilberto Maringoni Leonardo Avritzer Ari Marcelo Solon Fábio Konder Comparato Ronald Rocha José Raimundo Trindade Daniel Brazil Érico Andrade Elias Jabbour Denilson Cordeiro Leonardo Boff José Machado Moita Neto Bruno Machado Juarez Guimarães Slavoj Žižek José Micaelson Lacerda Morais Priscila Figueiredo Liszt Vieira Manuel Domingos Neto Flávio R. Kothe Osvaldo Coggiola João Paulo Ayub Fonseca Igor Felippe Santos Daniel Afonso da Silva Carla Teixeira Jean Pierre Chauvin Heraldo Campos Tarso Genro Francisco de Oliveira Barros Júnior Rubens Pinto Lyra Caio Bugiato Kátia Gerab Baggio Luiz Eduardo Soares Atilio A. Boron Michael Löwy Henry Burnett Renato Dagnino Ricardo Musse Jean Marc Von Der Weid Dennis Oliveira Yuri Martins-Fontes Remy José Fontana Alysson Leandro Mascaro Celso Favaretto Flávio Aguiar Eliziário Andrade Marcos Silva Francisco Pereira de Farias Gilberto Lopes Marilia Pacheco Fiorillo Sergio Amadeu da Silveira Michel Goulart da Silva Walnice Nogueira Galvão Luiz Carlos Bresser-Pereira Gerson Almeida Eugênio Trivinho João Adolfo Hansen Julian Rodrigues Luis Felipe Miguel Luiz Renato Martins André Márcio Neves Soares Ronaldo Tadeu de Souza Paulo Capel Narvai Gabriel Cohn Luiz Werneck Vianna Armando Boito Lucas Fiaschetti Estevez Antonino Infranca Ricardo Antunes Chico Alencar Luiz Roberto Alves Everaldo de Oliveira Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Eleutério F. S. Prado Luciano Nascimento Berenice Bento Vanderlei Tenório Lincoln Secco Rodrigo de Faria Marcelo Módolo Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Milton Pinheiro Boaventura de Sousa Santos Bento Prado Jr. Alexandre de Freitas Barbosa José Dirceu Bernardo Ricupero José Geraldo Couto Daniel Costa Benicio Viero Schmidt Leda Maria Paulani Celso Frederico Paulo Fernandes Silveira Ronald León Núñez João Carlos Loebens Salem Nasser Ricardo Abramovay Fernão Pessoa Ramos Valerio Arcary Rafael R. Ioris Sandra Bitencourt Ricardo Fabbrini Vinício Carrilho Martinez João Sette Whitaker Ferreira Paulo Martins Michael Roberts Luiz Bernardo Pericás Antonio Martins

NOVAS PUBLICAÇÕES