A copa feita de sangue

Imagem: Ömer Aydın
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Por MIGUEL ÂNGELO LAZZARETTI*

O que se vê no Catar é uma antiguidade capitalista nobre que se tornou moderna e cresce a base do trabalho escravo e grande protagonista do preconceito

A copa de futebol mundial de 2022 está sendo realizada no Catar, país do oriente médio rico em petróleo e também próspero no turismo. O Catar é um país menor que o menor estado brasileiro que é Sergipe, se encontra no meio deserto e no meio do nada, mas cheio de petróleo e tiranos.

O mundo está parcialmente eufórico com o torneio que começou em 20 de novembro e acaba em 18 de dezembro de 2022. Digo parcialmente porque geralmente as copas do mundo são feitas sempre no meio do ano e isto já faz parte da cultura futebolística mundial. Outro dado importante é que o país sede da copa não tem nenhuma tradição no futebol, o país quer é aparecer no mundo para o futuro desenvolvimento de mais turismo e mostrar seu poder como grande protagonista da ciência, tecnologia e grande produtor de petróleo.

A grande questão a saber é como tudo isso foi construído e por quem? A grande maioria dos trabalhadores que construíram e edificaram o Catar e principalmente a estrutura da copa do mundo como os estádios e demais estruturar arquitetônicas do país levantaram toda esta imensa beleza moderna a base da escravidão, de salários baixos e de perseguições a quem não se comportava de acordo com os mandantes do país.

Alías, um país com ideias medievais, que persegue homossexuais e não admite o mundo LGBTQIA+. Um país de monarquia absolutista comandado pela casa de Thani desde meados do século XIX. As posições mais importantes no país são ocupadas por membros ou grupos próximos da família al-Thani. Em 1995, o xeque Hamad bin khalifa Al Thani tornou-se emir após depor seu pai, Khalifa bin Hamad al Thani, em um golpe de Estado. O Catar, foi um protetorado britânico até ganhar independência em 1971. Desde então tornou-se um dos estados mais ricos do oriente médio devido as receitas oriundas do petróleo e do gás natural, além do turismo.

O Catar tem uma população estimada em 2,8 milhões de habitantes, apenas 313 mil são nativos catarianos. Os demais são trabalhadores estrangeiros, especialmente de outras nações árabes, indianos, nepaleses, de Bangladesh, do Paquistão, de Sri Lanka e do sudeste asiático, principalmente das Filipinas e também trabalhadores vindos de outras partes pobres do mundo.

Embora, o futebol seja uma paixão mundial, temos que ver e analisar como essa paixão se esquece dos pobres miseráveis que possibilitaram a realização da copa em condições climáticas adversas.

Para que tudo isso fosse possível, milhares de trabalhadores perderam suas vidas sem as suas famílias saberes sequer o motivo da perda. Com um calor ao redor de 50 graus Celsius estes trabalhadores vivem praticamente em regime de escravidão no país sede da copa 2022. As mortes não são investigadas, as famílias não recebem indenização e nos laudos dos mortos sempre na sua grande maioria aparece como causa mortis, infarto, sem falar que quase na totalidade dos que morrem nem sequer o corpo retorna ao país de origem.

Para estes trabalhadores chegarem até o Catar para trabalharem e poder ajudarem suas famílias na extrema pobreza de seus países de origem, contraem empréstimos e muitas vezes vão ao Catar com a promessa de trabalharem em outras profissões que não a construção civil. Ao chegarem no país dos “sonhos” financeiros, trabalham 16 a 18 horas diárias, quase não tem folga e recebem salários de 200 dólares por mês, que aqui no Brasil seria hoje em torno de 1000 a 1200 reais mês.

Os governantes prometeram ao mundo reformas trabalhistas mentirosas para ocultar o verdadeiro pesadelo porque passam os trabalhadores por lá. Na verdade, os donos do Catar apesar de serem capitalistas ao estilo medieval, são capitalistas modernos superiores inclusive aos do ocidente europeu. A literatura econômica clássica (Karl Marx principalmente) nos ensina que o capitalismo surgiu verdadeiramente apenas depois de sua consolidação através da compra da força de trabalho dos operários como Marx mostra em O capital.

Segundo Max Weber, no entanto, “o capitalismo e as empresas capitalísticas, mesmo com uma considerável racionalização do cálculo, existiram em todos os países civilizados do planeta, até onde a documentação econômica nos permite avaliar”. O que Weber (2003), quer dizer é que o capitalismo sempre existiu, na China, na Índia, na Babilônia, no Egito, na Antiguidade mediterrânea e na Idade média, tanto quanto nos tempos modernos.

O que se vê no Catar é uma antiguidade capitalista nobre que se tornou moderna e cresce a base do trabalho escravo e grande protagonista do preconceito. O fato mais recente aconteceu dois dias após a abertura da copa onde um torcedor brasileiro em um dos estádios onde ocorria uma partida de futebol estendeu a bandeira do Estado de Pernambuco que nesta contém duas faixa coloridas, onde um jornalista brasileiro filmou e foi obrigado coercitivamente a entregar as filmagens aas autoridades locais porque estas pensavam que a bandeira tratava-se de um símbolo LBGTQIA+, um verdadeiro show de barbárie num país que se diz moderno, mas que não aceita a homossexualidade.

Embora o torneio esteja se realizando, temos que pensar que cada chute na bola feita por um jogador, cada passe, cada apito do arbitro, etc, é uma gota de sangue dos trabalhadores que nem sequer podem adentrar aos estádios que construíram para ver os jogos.

Parafraseando Friedrich Nietzsche (2012), no sentido fisiológico da dor dos trabalhadores explorados lá no Catar, conhecemos um estado de irritabilidade mórbida, no sentido táctil que faz com que os invisíveis explorados que ergueram todas as obras faraônicas refletidas nos imensos prédios e nos estádios de futebol, conhecem um estado de irritabilidade mórbida, que faz que aqueles que sofrem desse mal se retraiam frente a qualquer toque, frente a qualquer tentativa de alcançar um objeto sólido.

Finaliza Nietzsche (2012, p.57), “trazida a sua conclusão lógica, tal habitus fisiológico se torna um ódio instintivo a toda realidade, como refúgio no “inapreensível”, no “incompreensível”: como aversão a todas as fórmulas, a todas as concepções de tempo e espaço, por tudo o que está estabelecido – costumes, instituições, igrejas –; a sensação de estar em casa num mundo no qual nenhuma espécie de realidade é tocada”.

Os teóricos parecem que esqueceram que os trabalhadores da construção civil do Catar são mercadorias, e mercadorias baratas, sem valor, sem sentimento, sem nada. Isto demonstra a nosso ver a falta de “vergonha na cara do mundo”, que faz espetáculos como a copa 2022, enquanto um bilhão de pessoas vivem na extrema miséria e passam fome todos os dias.

Talvez, a nosso ver, para finalizar, a única coisa positiva que o Catar fez nesta copa e que por lá é tradição, foi proibir ingerir o diabo engarrafado, o álcool, aliás também inventado por eles, mas que desistiram de investir nesse negócio porque viram os malefícios destruidores deste líquido na sua sociedade.

*Miguel Ângelo Lazzaretti é professor do curso de Ciências Sociais na Unioeste.

Referências


NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo, editora Martin Claret, 2012.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Editora Martin Claret, 2012.

 

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