A movimentação cidadã

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Por TARSO GENRO*

Considerações sobre a unidade democrático-republicana e o avanço bolsonarista

Antinomia entre a cidadania e o neoliberalismo é uma constatação muito comum na teoria política democrática, tanto sob o ângulo das diversas variantes marxistas (Perry Anderson, por exemplo, no livro Zona de compromisso), como do positivismo analítico de corte republicano, de Norberto Bobbio (em Direitos e deveres da República), tema que constantemente se reatualiza em produções acadêmicas e em debates que explodem nas redes, entre os dirigentes políticos eminentes dos distintos partidos e grupos de esquerda com força política imediata. A movimentação cidadã no espaço democrático da sociedade industrial clássica sempre teve na sua base, de um lado, a classe operária organizada e, de outra, os pobres de “todo o gênero”, quando identificam a sua sorte futura em uma parte da sociedade organizada.

Quando Bobbio, no interior deste debate – como intelectual democrático – é chamado a opinar sobre a “degeneração da democracia em demagogia” ele exemplifica esta crise na conduta de Berlusconi: “Berlusconi (…) considera que para ele seja lícito aquilo com que os comuns mortais sonham” (…) “é um homem que tem uma autoestima enorme” (…) “se considera infinitamente superior aos outros seres humanos” (…), “têm de si mesmo a ideia de ser uma exceção.” Não é um cidadão da República, mas um ser superior assentado no poder do Deus-mercado, cuja força é constantemente reerguida, tanto pela propaganda midiática como pela obsolescência programada.

A forma economicista da política no projeto neoliberal e rentista (Wendy Brown) aumenta a liberdade econômica para os mais fortes, à medida que a força da política é reduzida, em função das cada vez mais estreitas margens decisórias dos governantes. Esta estreiteza de opções libera as energias originárias “do medo, ansiedade” e do “status econômico declinante”, já que a política decepciona, é lenta, não resolve as duras questões do cotidiano, cheio de frustrações e ressentimentos que só podem ser sublimados em quem se socializa no mercado. Bolsonaro na ONU debochou do Brasil e do Mundo o que demonstra que ele se considera forte também pelas divisões no campo democrático.

Eis uma análise correta, mas incompleta. Ela omite o momento perfeito do giro neoliberal, assentado na força dos golpes de Estado ou na sequência de momentos de “exceção”, mesmo dentro do Estado Democrático tradicional, cuja sequência evidencia a separação cada vez mais profunda entre República e Democracia: esta consegue programar respostas somente a partir do mercado, onde as pessoas são desiguais, e as promessas republicanas são censuradas pela força normativa do mercado, que é “perfeita” apenas no imaginário dos que chegam em seu vestíbulo com dinheiro no bolso.

Tanto Berlusconi como Bolsonaro foram gerados dentro da democracia liberal, ambos destinados a sufocar seus aspectos mais vinculados aos direitos da cidadania, mas também ambos foram ancorados na legitimação pelo mercado, que igualaria a todos pelo mérito. A crença – em si mesmo – de Berlusconi, vem da sua idealização, assentada diretamente na sua condição de classe, mas a megalomania de Bolsonaro – que lhe autoriza um genocídio planejado – vem da sua aceitação pelas “elites” a partir do seu compromisso com as reformas, que unificou no seu entorno as classes dominantes mais tradicionais.

A questão não é mais se Bolsonaro vai imprimir uma ditadura pretoriana, que parece cada vez mais impossível, mas é qual a força das pactuações em sequência com o poder institucional mais resistente ao seu delírio, o STF. O enfrentamento de Bolsonaro com o STF funde – de maneira absoluta – neste momento histórico, a questão da república com a questão democrática. A República pode ser mais (ou menos) autoritária, mas a democracia política da Constituição de 1988 é incompatível com a absorção de qualquer Poder Constitucional por outro. Neste momento, se o STF, já exausto, for vencido na pugna com os esquadrões sinistros do bolsonarismo, a democracia não voltará por um longo período histórico no país.

São esses os motivos que me fazem sustentar, nos meios em que debato as questões nacionais, que os nossos líderes do campo democrático e republicano deveriam, pelo menos momentaneamente, superar suas divergências para colocarem, na ordem do dia, o fim do bolsonarismo e a preparação de um programa unitário para governarem depois da crise: para recuperar o prestígio do Brasil na ordem global, exercitar plenamente a soberania nacional compartilhada a partir dos nossos interesses, comprometerem-se com um programa emergencial de criação de empregos e atividades, combater a fome e a pandemia, defender o meio-ambiente e restaurar o ambiente democrático garantido pela Lei Maior. 2 de outubro é um dia adequado para iniciarmos este processo!

*Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

 

 

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