Por RICARDO PAGLIUSO REGATIERI*
A direita brasileira finalmente encontrou um líder de massas, muito diferente dos intelectuais e tecnocratas elitistas do PSDB
No último dia 2 de outubro, os brasileiros foram às urnas para votar para presidente, governadores estaduais, senadores, bem como para deputados federais e estaduais. O ex-presidente Lula, do Partido dos Trabalhadores (PT), recebeu 48% dos votos na corrida presidencial, enquanto o atual presidente Jair Bolsonaro, do Partido Liberal (PL), obteve 43%. De acordo com pesquisas de opinião na véspera das eleições, cerca de 50% dos eleitores declaravam que votariam em Lula e cerca de 35% em Jair Bolsonaro.
Além da margem de diferença mais estreita do que se esperava entre Lula e Jair Bolsonaro, o fato de candidatos a governador, senador e deputado que apoiam e são apoiados por Jair Bolsonaro terem obtido desempenho muito bom nas urnas surpreendeu atores da política, da academia e da mídia. Em São Paulo, o candidato a governador apoiado por Jair Bolsonaro, que ocupava o segundo lugar nas pesquisas, recebeu 42% dos votos, enquanto o candidato do PT, que as pesquisas previam que ficaria em primeiro, alcançou 37%.
Nos estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, os candidatos apoiados por Jair Bolsonaro obtiveram 59% e 56% dos votos para governador, respectivamente – o que significa que já foram eleitos, pois o sistema eleitoral brasileiro só exige um segundo turno quando os candidatos a cargos executivos recebem menos de 50% dos votos.
No segundo turno das eleições presidenciais, Jair Bolsonaro conta com o apoio de seus candidatos a governador triunfantes nesses três estados, os mais populosos e ricos do país. Nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro de fato emergiu do primeiro turno com mais votos que Lula. Lula, por sua vez, reuniu o apoio dos candidatos à presidência que ficaram em terceiro e quarto lugar: Simone Tebet, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista (PDT).
O mapa eleitoral do Brasil mostra que Jair Bolsonaro obteve mais votos que Lula nos estados mais ricos do Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Por outro lado, Lula obteve vantagem no Nordeste e no Norte do Brasil. Em Salvador, por exemplo, Lula obteve 67% dos votos e Jair Bolsonaro apenas 24%. Essa distribuição geográfica de votos entre, por assim dizer, a esquerda e a direita não é, por si só, algo novo no Brasil – ela tem sido consistente desde o início do século 21.
A novidade, entretanto, é um movimento tectônico de substituição de forças neoliberais – que, desde o início dos anos 1990, após a redemocratização e a promulgação da nova Constituição, ocupavam o nicho da direita – pelas forças de Bolsonaro e da constelação política ao seu redor, que tem sido chamada de “bolsonarismo”. Essas forças neoliberais eram internamente heterogêneas, mas gravitavam em torno do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), fundado no final dos anos 1980 por antigos opositores da ditadura militar. O PSDB governou o país de 1995 a 2002, tendo o PT como o mais importante adversário nas eleições de 1994 e 1998, enquanto esse último venceu as eleições entre 2002 e 2014 tendo o PSDB como seu principal concorrente. Desde as eleições de 2018, porém, Bolsonaro conseguiu se apresentar como politicamente hegemônico dentro do campo da direita e galvanizar essa posição de liderança.
A divisão regional mais ampla apresentada acima anda de mãos dadas com outras divisões, como as de renda e religião. Assim como as candidaturas anteriores do PSDB, Jair Bolsonaro tem mais apoio do que Lula entre as classes média e alta em todo o país. Além disso, Jair Bolsonaro recebe apoio da maioria dos evangélicos brasileiros – um segmento religioso dividido entre diferentes igrejas que tem crescido consistentemente nas últimas quatro décadas no Brasil. Ao contrário do primeiro grupo, o último é composto principalmente por pessoas renda mais baixa. Pelas mãos de pastores alinhados com Jair Bolsonaro, as igrejas evangélicas têm funcionado como correntes de transmissão do bolsonarismo entre os mais pobres, embora esse grupo de renda vote predominantemente em Lula.
A propaganda bolsonarista baseada no afeto do medo ressoa particularmente entre esses grupos. Esse sentimento é, antes de tudo, um medo fabricado em relação ao triunfo do ‘mal’. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, a questão da imigração, frequentemente mobilizada pela propaganda de direita, é praticamente inexistente no Brasil, o que significa que as ameaças à integridade da nação são consideradas, acima de tudo, como sendo internas. Esse ‘mal’ é representado pelo conceito guarda-chuva de ‘comunismo’ propagado pelo bolsonarismo.
Tal construção repousa sobre e alimenta um pânico moral, segundo o qual a família heterossexual está sob ameaça de dissolução por uma assim chamada ‘ideologia de gênero’, que buscaria transformar as crianças em homossexuais, ao passo em que o cristianismo estaria sendo atacado por práticas ‘diabólicas’, como o ateísmo ou religiões de matriz afro-brasileira. Os ‘comunistas’ também procurariam gerar divisões desnecessárias no interior da nação, ao abordar o passado colonial brasileiro de escravidão, o racismo contemporâneo e o legado da ditadura militar de 1964-1985.
Além disso, a defesa ‘comunista’ da inclusão e proteção social e econômica ameaçaria a meritocracia, ou seja, o triunfo das pessoas mais inteligentes e trabalhadoras. A classe média, em particular, se ressentiu com o empoderamento dos mais pobres durante os governos do PT de 2003 a 2016: economicamente, em termos de acesso a bens e serviços, assim como simbolicamente, devido à grande expansão das oportunidades de educação superior. O significado mais profundo do lema antipetista “Quero meu país de volta” é que tal acesso a bens, serviços e ensino superior deve permanecer um privilégio de uma elite branca – uma reivindicação que exemplifica de forma lapidar aquilo que Aníbal Quijano chamou de “colonialidade do poder”.
Mobilizados por um discurso equiparando o PT à corrupção, produzido por uma coalizão da mídia, de agentes parciais do poder judiciário e da oposição no Congresso, as classes média e alta brasileiras saíram às ruas em 2015 e 2016 para exigir o impeachment da então presidente da república pertencente ao Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff – processo que se consumou em agosto de 2016. Assim como outras pessoas no Brasil, designo esse evento de golpe parlamentar: a torção dos procedimentos legais para servir a fins ilegítimos. As acusações contra Dilma Rousseff não evidenciaram nenhum crime; no entanto, a presidente foi destituída do cargo.
Ao minar dessa maneira as instituições democráticas, as elites brasileiras abriram a caixa de Pandora, e o país tem tido que lidar desde então com os monstros que dela saíram. Alinhada com tendências internacionais, a política no espectro da direita brasileira se transformou em antipolítica sob a liderança de uma figura autoritária. Isso trouxe mentiras, teorias da conspiração e manipulação emocional para o primeiro plano. Em 2018, Jair Bolsonaro encarnou a candidatura antipetista em uma atmosfera política adversa ao Partido dos Trabalhadores.
Em 2022, entretanto, depois de quase quatro anos de marcada incompetência, do desastroso enfrentamento da pandemia da COVID que conduziu a mais de 680.000 mortes, de declarações violentas que incluem altas doses de misoginia e do empobrecimento generalizado das classes média e baixa, parecia que sua afronta autoritária à democracia poderia ser mais facilmente contida. As pesquisas eleitorais aparentemente não conseguiram captar os movimentos subterrâneos do bolsonarismo, não foram capazes de capturar as tendências de voto subdeclaradas ou silenciosas daqueles que aprenderam nos últimos anos que “qualquer coisa é melhor do que a volta do PT ao poder”.
Após quase quatro anos no poder e depois de ter reestruturado o campo da direita no Brasil, o bolsonarismo foi, até certo ponto, politicamente normalizado e se tornou socialmente mais arraigado. A direita brasileira finalmente encontrou um líder de massas, muito diferente dos intelectuais e tecnocratas elitistas do PSDB. Essas são algumas lições que podemos aprender na sequência do primeiro turno das eleições no Brasil. Se Bolsonaro for eleito para um segundo mandato, ele será capaz de seguir os passos de Viktor Orbán na Hungria e Recep T. Erdoğan na Turquia, mudando as regras legais e corroendo a democracia por dentro – um processo em linha com aquilo que o grupo de pesquisa da Universidade de Bremen vem chamando de “autoritarismo brando” –, especialmente porque ele teria uma ampla maioria em ambas as casas do congresso. O segundo turno acontecerá em 30 de outubro e, até lá, as forças democráticas devem fazer todo o esforço possível para identificar e aprender com o fracasso até aqui em fazer frente a essas novas dinâmicas entre a população.
*Ricardo Pagliuso Regatieri é professor de sociologia na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autor, entre outros livros, de Capitalismo sem peias: A crítica da dominação nos debates no Instituto de Pesquisa Social no início da década de 1940 e na elaboração da Dialética do Esclarecimento (Humanitas).
Publicado originalmente em inglês em Soft Authoritarianism.
Tradução: Kelvin Santos Lima e Yngrid Baliero Santos.
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