Por LUIZ EDUARDO MOTTA*
Posfácio do livro recém-lançado de Ricardo Ramos Shiota
1.
Os anos 1960 foram férteis no tocante ao debate sobre que tipo de revolução seria realizada nas formações dependentes, coloniais e semicoloniais. O conceito de revolução fazia parte do léxico político, principalmente dos setores progressistas e transformadores.
O livro de Ricardo Shiota aborda com muita precisão as diversas acepções que esse conceito teve ao longo do século XX por parte da intelectualidade brasileira. Para uns, significaria a mudança (mais precisamente um golpe de Estado) de poder sem alterar as estruturas. Para outros, o significado se daria pelas mudanças estruturais, e essa última perspectiva acabou por predominar no contexto dos anos 1960, e tem permanecido até os dias atuais.
Neste livro, Ricardo Shiota aborda três aspectos que se fazem presentes no Brasil atual, e a necessidade de entrelaçá-los dentro de um programa transformador: o racismo, o nacionalismo popular e o socialismo. A questão do racismo, com efeito, não tinha nos anos 1960 a mesma centralidade que tem na atual conjuntura brasileira.
No entanto, a questão racial não estava ausente das organizações de esquerda e dos intelectuais progressistas, vide a luta do Partido Comunista do Brasil (PCB) na defesa dos cultos afro-brasileiros, na candidatura de Minervino de Oliveira pelo Bloco Operário Camponês em 1930, e das intervenções de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Nelson Werneck e Florestan Fernandes sobre a questão racial no Brasil.
Se, por um lado, o racismo ganhou nas décadas recentes uma grande projeção no campo progressista, a questão nacional que se opõe ao imperialismo praticamente foi volatizada desde a redemocratização do Brasil depois de duas décadas sob a égide da ditadura militar, à exceção de Leonel Brizola que manteve, de forma coerente, essa questão.
Esse nacionalismo popular, que teve forte penetração nas classes populares, viveu o seu auge no Brasil ao longo dos anos 1960, mesmo depois do golpe militar (denominado de “Revolução”), como podemos ver nos programas das organizações revolucionárias presentes na resistência à ditadura militar, a exemplo da Ação de Libertação Nacional (ALN) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) que tinham em seus programas como centralidade a libertação nacional, presente em diversos movimentos revolucionários do chamado “Terceiro Mundo”.
O nacionalismo popular revolucionário, oposto ao nacionalismo reacionário, segregacionista e expansionista dos movimentos de extrema-direita, mobilizou grande parte da juventude das formações sociais periféricas em reação ao imperialismo e ao neocolonialismo. Vide o exemplo da juventude peronista na Argentina organizada nos Montoneros, ou a do Uruguai em torno do Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros, e mesmo da juventude colombiana no início dos anos 1970 pelo Movimento 19 de Abril (M-19).
Também podemos citar diversos movimentos de libertação da África como a Frente de Libertação da Argélia (FLN), o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), e no Oriente a luta travada pela Frente Nacional de Libertação do Vietnã do Sul, e pelo povo palestino por meio da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
2.
Esse nacionalismo popular não ficou restrito aos programas das organizações revolucionárias. Talvez seja impensável hoje para as novas gerações, mas existiram governos militares progressistas de cunho nacionalista e anti-imperialista, e alguns deles apontavam esse nacionalismo popular como o meio de se chegar ao socialismo, a exemplo dos governos de Velasco Alvarado no Peru, Omar Torrijos no Panamá, José Juan Torres na Bolívia, Muammar Kadafi na Líbia, e mais recentemente o governo de Hugo Chavez na Venezuela, todos eles inspirados –em maior e menor grau- na experiência egípcia de Gamal Abdel Nasser.
É importante destacar que antes dessas experiências militares progressistas tivemos na América Latina governos nacionalistas progressistas de cunho desenvolvimentista, sem evocar o socialismo como fim, como os de Lazáro Cárdenas no México, o segundo governo de Getúlio Vargas e o de Juan Domingos Péron em seus dois primeiros governos.
Mas, com a redemocratização no Brasil, novos sujeitos políticos emergiram, a exemplo do Partido dos Trabalhadores (PT), e não evocavam essa herança nacionalista popular, excetuando algumas lideranças e correntes vinculadas ao Partido Democrático Trabalhista (PDT).
O próprio Partido Comunista Brasileiro (PCB) que, ao lado do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), era uma referência nos anos 1960 dessa perspectiva nacionalista popular, se diluiu numa posição institucionalista e democrática sem nenhum apelo ao caráter nacionalista progressista. O nacionalismo popular entrou em declínio e ascendeu a visão democrática liberal. O modelo nacional popular do chamado “Terceiro Mundo” se dissipou diante o modelo democrático liberal de inspiração europeia.
Dentre os autores analisados por Ricardo Shiota, um merece destaque por alinhar e articular os três elementos listados por ele (racismo, nacionalismo popular e socialismo) neste livro: Alberto Guerreiro Ramos. Guerreiro Ramos foi “derrotado” no campo acadêmico diante Florestan Fernandes, pois este se tornou o modelo de cientista social a ser seguido depois de 1964. Venceu o padrão “internacional” das ciências sociais em relação ao dito padrão “nacional” das ciências sociais. A Universidade de São Paulo (USP) saiu vitoriosa em seu confronto intelectual (e político) com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
O apagamento de Guerreiro Ramos, portanto, não se restringiu a sua cassação política e do seu impedimento de lecionar no Brasil pela ditadura militar. A sua maior invisibilidade se deu no meio acadêmico dos anos 1970/80 onde sua obra foi “queimada” simbolicamente. Não havia reedições de seus livros, e tampouco se discutia a sua importante contribuição às Ciências Sociais no Brasil. Era simplesmente um autor “datado”, “ultrapassado” para os padrões da sociologia brasileira.
3.
Contudo, nos anos recentes, a sua obra vem sendo recuperada e tem despertado interesse por uma nova geração de intelectuais acadêmicos, dos quais Ricardo Shiota é um dos destaques. O seu mérito principal é exatamente o de não reduzir a contribuição de Guerreiro Ramos a um dos seus aspectos, haja vista que a contribuição de Guerreiro Ramos foi bastante ampla, desde a sociologia das organizações, na qual marcou o início da sua contribuição intelectual, passando pelas questões raciais, pela teoria sociológica, pelas suas intervenções políticas em defesa do nacionalismo popular, sem falar no seu pioneirismo no campo das ciências sociais no Brasil ao tratar do conceito de populismo.
Todavia, muitas das recentes interpretações têm como alvo privilegiar apenas um aspecto da sua obra. Mais recentemente tem sido enfocar que o centro de sua obra se dá nas questões raciais no Brasil. De fato, Guerreiro Ramos tratou desse tema com maestria ao fazer um balanço crítico sobre esse importante tema de seus predecessores, sem falar na sua militância no Teatro Experimental Negro com Abdias do Nascimento. O problema é reduzir o escopo do seu trabalho apenas a uma das diversas questões das quais tratou ao longo da sua vida intelectual.
O resultado disso tem sido amarrar Guerreiro Ramos em perspectivas teóricas surgidas em anos mais recentes das quais o nosso sociólogo baiano/carioca dificilmente se enquadraria como “pós-colonial” ou “decolonial”. Guerreiro Ramos, tal qual Vieira Pinto, Frantz Fanon e Hernández Arrégui, era resultado do seu tempo. Assim como os autores acima citados, Guerreiro Ramos teve influência da fenomenologia e do marxismo, e foi um ativo militante anticolonialista e anti-imperialista. Guerreiro Ramos simplesmente viveu a “hora do Terceiro Mundo” nas décadas de 1950/60.
De A redução sociológica de 1958 até Mito e verdade da revolução brasileira de 1963, Guerreiro Ramos, ao lado de Álvaro Vieira Pinto, foi a expressão máxima do pensamento anticolonial e terceiro mundista em nossa formação social. Essas classificações de “pós-colonial” ou “decolonial” são ex post, e com uma forte limitação ao não situarem historicamente o momento político e intelectual em que Guerreiro Ramos vivia e produzia.
Guerreiro Ramos foi o intelectual, por excelência, que articulou os três elementos analisados por Ricardo Shiota. O Brasil é uma formação social racista, e o nacionalismo popular revolucionário era o princípio articulador (no sentido em dá Ernesto Laclau) das demais bandeiras de lutas como o socialismo e a inclusão dos mais vastos setores subalternos da sociedade, incluindo negros e não negros, como também as mulheres trabalhadoras.
Os setores da esquerda brasileira dos dias de hoje têm muito que aprender com o legado de Guerreiro Ramos. Hoje, prevalece a fragmentação das bandeiras de reivindicações. Hoje, prevalece a centralidade das identidades. Hoje, prevalece a indisposição de articular os diferentes movimentos numa pauta comum. Isso tudo é antitético ao que Guerreiro Ramos defendia.
Retornando ao conceito de revolução analisado por Ricardo Shiota ao longo do seu livro, em que aborda distintos autores ao lado de Guerrreiro Ramos, como Florestan Fernandes e Pessoa de Morais (outro autor que estava no limbo acadêmico), a revolução é um processo complexo, e marcado por rupturas, saltos, recuos, como podemos ver na revolução mais bem sucedida do século XX, a chinesa.
Por isso, retomar a questão anti-imperialista se faz mais do que necessária. E a articulação do nacional popular, das bandeiras antirracistas, da igualdade de gêneros, da luta de classes se faz necessária para contrapor a articulação do neofascismo com o neoliberalismo, em defesa de uma democracia popular e para a construção de um projeto socialista brasileiro. E este livro de Ricardo Shiota pode ser um bom caminho para a compreensão dessas questões.
*Luiz Eduardo Motta é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Referência

Ricardo Ramos Shiota. Espectros do Brasil: teoria crítica e pensamento político-social. Marília, São Paulo, Editora Lutas Anticapital e Editorial Práxis Literária, 2025, 266 págs. [https://amzn.to/3Yg8lTS]






















