Estratégias e táticas das esquerdas

Carlos Zilio, ESTUDO, 1970, caneta hidrográfica sobre papel, 47x32,5 (2)
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Por VALERIO ARCARY*

Seria insensato não considerar que a definição da melhor tática para que a esquerda possa vir a disputar, nas principais cidades, o segundo turno é muito importante

“A ignorância força-nos a fazer duas vezes o mesmo caminho”
(Sabedoria popular portuguesa). 
“A mocidade é como a água da ribeira; entregue a si própria, destroi as pontes”
(Sabedoria popular africana).

O ano de 2020 tem sido, especialmente, difícil, em função da tragédia humanitária em que se transformou a pandemia no Brasil, mas trouxe algumas surpresas. Tive que esperar quarenta anos para escrever que Breno Altman, um dos melhores jornalistas de esquerda, um dos últimos estalinistas não arrependidos, e apaixonado membro do Partido Comunista imaginário, uma corrente ideológico-afetiva com presença simbólica no PT, PSol e PCdB, tem razão. E agora isso acontece quase todas as semanas, o que é, talvez, perturbador, mas divertido.

E posso confessar, também, que tenho uma satisfação contida em discordar de Valter Pomar, um dos mais sérios e inteligentes quadros da direção do PT, e que está sempre entre meus interlocutores polêmicos preferidos. Ontem o tema da controvérsia foi a repercussão da vitória de Boulos/ Erundina nas prévias do PSol. A discussão entre Altman e Pomar foi sobre qual deve ser a tática eleitoral do PT nas eleições municipais. O PT deve ou não ter candidato próprio, no primeiro turno, se não for Haddad? Os quatro textos podem ser encontrados nestes links[i]. São imperdíveis.

Não vou desenvolver muitos argumentos sobre eles. Não é por diplomacia. Os dilemas do PT afetam, indiretamente, toda a esquerda brasileira. É porque não creio que seja prudente agora ter opiniões fortes sobre as perspectivas eleitorais da esquerda em novembro. O desafio central será a capacidade de responsabilizar Bolsonaro, Doria e Covas pela catástrofe sanitária e calamidade econômica deste ano. Não é difícil concluir que a candidatura que, potencialmente, pode empolgar, dinamizar e mobilizar a esquerda em São Paulo, é a de Boulos/Erundina. Não sabemos se será suficiente para ir para o segundo turno. Ainda é cedo. São, sem dúvida, a melhor aposta.

Mas seria insensato não considerar que a definição da melhor tática para que a esquerda possa vir a disputar, nas principais cidades, o segundo turno é muito importante. Porque há o perigo real que, em especial em São Paulo e Rio de Janeiro, cheguem ao segundo turno uma candidatura de extrema-direita e uma da oposição de direita, ainda que dissimulada de centro-liberal. O que seria um desastre. E na definição da tática a escolha dos candidatos é uma das decisões centrais. Não é a única, evidentemente. A linha política conta muito. Acontece que a discussão de tática eleitoral é indivisível de uma polêmica estratégica incontornável.

Mas em primeiro lugar creio que é importante estabelecer uma premissa. Prevalece na esquerda quem pensa que a unidade ou divisão da esquerda nos processos eleitorais repousa em uma luta de vaidades pessoais. Sei que essa crítica é bem intencionada, mas é ingênua. Existe na luta política um lugar para o papel dos indivíduos com suas virtudes e caprichos, mas ele é quase sempre mal compreendido e, sobretudo, mal interpretado.

Não é por vaidade que Fernando Haddad não aceitou ser candidato em 2020, mas por uma aposta estratégica. Haddad está se preservando, como é óbvio. Claro que essa aposta seria inexplicável sem avaliar que, se ele viesse a concorrer e perder a eleição de 2020, teria mais dificuldades para poder ser candidato à presidência em 2022, se considerarmos que, infeliz, porém, provavelmente, Lula não venha a recuperar os seus direitos políticos no julgamento que pode acontecer até o fim de outubro no STF. Essa luta permanece, portanto, decisiva para o futuro da esquerda, no seu sentido mais grave.

Haddad pode ser movido, também, por ambições pessoais, mas se ponderarmos sua trajetória parece uma conclusão injusta concluir que são elas que guiam esta decisão. Haddad sempre se colocou ao serviço da estratégia da maioria da direção do PT.

Portanto, a questão central é que estão em disputa, na esquerda brasileira, diversos projetos sobre a dinâmica de para onde vai a reorganização da esquerda. A questão estratégica de fundo é como abrir o caminho para a derrota de Bolsonaro. Mas ela se desdobra em encruzilhadas táticas.

E assim como há, em um plano da tática, uma luta da esquerda pela liderança da oposição a Bolsonaro, há, também, em outro plano, uma disputa por posições entre os partidos da esquerda. Esta luta de partidos se explica porque os projetos são diferentes, mas são mal compreendidos.

Há vários projetos na esquerda, porque os programas são distintos. Simplificando, e sendo por isso um pouco brutal, há o da maioria do PT e o da esquerda do PT, o do PSol, o do PCdB e até o do PStu. E claro que, por último, mas não menos importante, há Lula, a esfinge.

O projeto da maioria do PT é, essencialmente, a expressão dos seus governadores, da maioria dos senadores, e grande parte do aparelho sindical e eleitoral. Defendem a tática da Frente Ampla unindo a oposição e, por isso, apoiaram a eleição de Rodrigo Maia; preferem que a medição de forças com Bolsonaro só seja feita nas eleições de 2022; se Lula não puder ser candidato, o que é a hipótese mais provável, apoiarão Haddad; e, finalmente, se inspiram na vitória peronista na Argentina, porque defendem um programa de impulso ao crescimento econômico, e a extensão de políticas públicas compensatórias. Querem fazer, pela segunda vez, o mesmo caminho de 2018.

O projeto da esquerda do PT é diferente, porque são ultradefensistas do PT, e apostam tudo na capacidade de que Lula seria capaz de se reinventar, e ter um protagonismo na mobilização social; estão comprometidos com a defesa de mobilizações contra Bolsonaro antes de 2022, inclusive, com a perspectiva de sua derrubada; defendem a prioridade da Frente de Esquerda como tática de oposição a Bolsonaro; e têm forte referência na experiência chavista na Venezuela de combinação de disputa eleitoral e participação popular.

O projeto do PSol é ser um instrumento de luta anticapitalista útil para construir, nas condições de uma situação reacionária, uma Frente de Esquerda para resistir ao governo Bolsonaro, sair da defensiva e derrotar a corrente neofascista do bolsonarismo, investindo na ação direta de massas; o PSol não luta pelo poder para o PSol, luta por um governo de esquerda que seja um governo dos trabalhadores e dos oprimidos, indo além dos limites do presidencialismo de coalizão, e sustentado na mobilização e organização popular; porque o PSol quer ir além, também, dos limites das experiências dos governos de concertação do PT durante mais de treze anos que, finalmente, resultaram nas derrotas que vêm desde 2016. A aposta que une o PSol, em sua diversidade, é que sem disposição revolucionária não é possível no Brasil conquistar direitos sociais.

O projeto do PCdB foi apresentado por Flávio Dino e é uma aposta em uma Frente Ampla amplíssima para resistir agora, com máxima redução de danos durante o mandato de Bolsonaro, bloqueando os intuitos de autogolpe, e garantir a derrota de Bolsonaro em 2022; isso só seria possível com uma candidatura de centro-esquerda, como a de Ciro Gomes, ou do próprio Flávio Dino, senão outro nome; essa Frente poderia inclusive assumir uma forma orgânica em um novo partido legal, definido metaforicamente, como um MDB de esquerda, unindo setores do PT, insatisfeitos com a insistência na candidatura de Haddad, a setores do PSB, PDT, talvez, Rede e, possivelmente, outros, além do próprio PCdB.

O projeto do PStu é a expectativa de uma derrubada revolucionária de Bolsonaro através de uma greve geral na perspectiva de uma insurreição. Apostam na iminência de uma situação pré-revolucionária.

Mas tudo é muito complicado porque os partidos não são homogêneos. No PSol, por exemplo, há quem faça formulações parecidas com as do PSTU, mas há, também, outros que não estão muito longe do que defende a esquerda do PT, e até quem flerte com as ideias do PCdB. No PT há muita diversidade: além da sua maioria, há quem concorde com o da sua ala esquerda, quem apoie o do PSol, e quem prefira o do PCdB. No PCdB há uma aposta preferencial, mas há, também quem considera a hipótese defendida pela esquerda do PT.

Tudo é muito incerto, não é simples, e o que está em jogo é, dramaticamente, importante. Assim como é necessária a lucidez estratégica, é indispensável a inteligência tática. E um pouco de sorte é sempre bem-vinda.

*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).

Nota:


[i] https://valterpomar.blogspot.com/ e https://www.facebook.com/breno.altman

Consulta em 21/07/2020

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