Eu, capitão

Frame de 'Eu, Capitão', filme de Matteo Garrone/ Divulgação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO LANARI BO*

Comentário sobre o filme de Matteo Garrone, em exibição nos cinemas

Io Capitano, longa-metragem de Matteo Garrone, é uma epopeia, no sentido literário do termo: poesia épica ou heroica, gênero literário cuja composição consiste de um poema longo, narrativo, geralmente versando sobre os feitos de um herói, sobre acontecimentos históricos ou míticos, elementos considerados como fundamentais a uma dada cultura.

O herói perfaz uma trajetória épica: a travessia dos acontecimentos, reais e imaginários, concorrem para a formação de um ethos pessoal, conjunto de traços e modos de comportamento que conformam seu caráter e sua identidade. No Ocidente o herói de todos heróis é Ulisses, que vagueou durante dez anos até chegar à sua terra natal, Ítaca, depois de ter destruído a cidadela sagrada de Troia, visto cidades e costumes de muitos homens e padecido mil tormentos no mar, quando lutava pela vida e pelo regresso dos seus companheiros.

No mundo globalizado em que vivemos, onde os fetiches viajam à velocidade da luz, uma trajetória épica pode caber num vídeo do TikTok. Foi o que aconteceu com Seydou e Moussa, dois garotos na periferia de Dakar, capital de Senegal: embalados por um sonho de consumo imediatamente desejável – tornarem-se pop stars na Europa – mas dolorosamente inviável, eles economizam dinheiro e vão à luta.

Do ponto de vista psicanalítico, é um filme lacaniano: eles acreditam piamente no imaginário, mas não se dão conta que o real é inapreensível. Não faltam alarmes dissuasórios – a mãe de Seydou lembra os mortos que são largados no deserto, e os que morrem afogados no mar. Outro adulto, enragé como a mãe, admoesta: “A Europa não é nada que você imagina”. Somente o xamã local aprova a viagem. Nada os detém, tomam o ônibus e se lançam na viagem de meio continente africano, saindo da costa leste e subindo pela Líbia até o Mediterrâneo, com o objetivo de aportar na Itália.

Matteo Garrone sugere uma metáfora cinematográfica para situar a espacialidade do filme. Conhecemos essas histórias, barcos apinhados de imigrantes, mas Io Capitano narra de um ângulo diferente: não do ponto de vista dos barcos que chegam, mas do ponto de vista daqueles que empreenderam a viagem. Nesse sentido, o filme é o contracampo do imaginário ocidental.

A epopeia começa pelo Níger onde conseguem passaportes falsos: atravessam a zona subsaariana num pequeno e lotado caminhão, pilotado sem nenhum cuidado – um viajante cai e é ignorado. A paisagem é preenchida por cadáveres que flutuam na areia do deserto. Na sequência, uma caminhada extenuante sob sol implacável faz mais uma vítima, uma senhora idosa, para desespero de Seydou que tenta resgatá-la. “Não podemos parar”, insiste Moussa – e o guia segue célere, resta apenas a fantasia de levitação da idosa. A morte espreita os heróis: começam as detenções arbitrárias, escravização, violência vinda de todos os lados, poucos se salvam.

Enfim, a Líbia. Um fragmentado país, rico em petróleo e assombrado por divisões internas impulsionadas por milícias islâmicas, inclusive a mais temível de todas, o Exército Islâmico: entre 2012 e 2020 a Líbia viveu uma guerra civil pulverizada, onde as milícias tinham cada uma sua própria ideologia e poder armado. Monitoravam segurança das cidades e instalações estratégicas, controlavam fronteiras e até gestão de centros de detenção. Tal como no poema clássico de Homero, Seydou e Moussa padecem mil tormentos, enquanto lutam por suas vidas – pegar o barco e ir para a Europa era a última saída. Nesse ponto, Io Capitano dá uma virada: da paisagem desértica passamos à aventura marítima, no mesmo Mediterrâneo que Ulisses navegou.

Duas fontes foram imprescindíveis para elaboração do roteiro, ambos imigrantes africanos. Mamadou Kouassi, originário da Costa do Marfim, empreendeu a viagem com o seu primo há cerca de 15 anos e vive hoje em Caserta, perto de Nápoles. Tal como Seydou, Mamadou Kouassi testemunhou pessoas abandonadas no deserto, foi separado do primo e posteriormente detido na Líbia, onde ficou por três anos. A outra referência é Amara Fofana, que deixou seu país natal, Guiné, em 2014, em direção à Europa. Em Trípoli, foi obrigado a capitanear um barco com 250 pessoas. Chegando em solo italiano, gritou: “Tenho 15 anos, sou o capitão do navio!” Foi detido, saiu, hoje vive e trabalha na Bélgica. Sua odisseia durou um ano.

A repercussão de uma narrativa como essa é imediata, sobretudo na Europa, onde a pressão migratória é uma das principais questões políticas. Em setembro de 2023, o Papa Francisco recebeu o diretor e consultores africanos: logo em seguida, em Bruxelas, centenas de parlamentares europeus assistiram a sessão especial do filme, seguido de debates. O filme foi selecionado para concorrer ao Oscar de produções internacionais. A saga continua.

*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo). [https://amzn.to/45rHa9F]

Referência


Eu, capitão (Io Capitano)
Itália, Bélgica, França, 2023, 121 minutos.
Direção: Matteo Garrone.
Elenco: Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A Terceira Guerra Mundialmíssel atacms 26/11/2024 Por RUBEN BAUER NAVEIRA: A Rússia irá retaliar o uso de mísseis sofisticados da OTAN contra seu território, e os americanos não têm dúvidas quanto a isso
  • A Europa prepara-se para a guerraguerra trincheira 27/11/2024 Por FLÁVIO AGUIAR: Sempre que a Europa preparou-se para guerra, ela acabou acontecendo, com as consequências trágicas que conhecemos
  • Os caminhos do bolsonarismocéu 28/11/2024 Por RONALDO TAMBERLINI PAGOTTO: O protagonismo do Judiciário esvazia as ruas. A força da extrema direita tem apoio internacional, recursos abundantes e canais de comunicação de grande impacto
  • O acontecimento da literaturacultura equívoco 26/11/2024 Por TERRY EAGLETON: Prefácio do livro recém editado
  • Os espectros da filosofia russaBurlarki cultura 23/11/2024 Por ARI MARCELO SOLON: Considerações sobre o livro “Alexandre Kojève and the Specters of Russian Philosophy”, de Trevor Wilson
  • Aziz Ab’SaberOlgaria Matos 2024 29/11/2024 Por OLGÁRIA MATOS: Palestra no seminário em homenagem ao centenário do geocientista
  • Não existe alternativa?lâmpadas 23/06/2023 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
  • O premiado Ainda estou aquicultura ainda estou aqui ii 27/11/2024 Por JULIO CESAR TELES: Não é apenas um filme que soube usar recursos visuais, fontes de época ou retratar um momento traumático da história brasileira; é um filme necessário, que assume a função de memória e resistência
  • Não é a economia, estúpidoPaulo Capel Narvai 30/11/2024 Por PAULO CAPEL NARVAI: Nessa “festa da faca” de cortar e cortar sempre mais, e mais fundo, não bastaria algo como uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões. Não bastaria, pois ao mercado nunca basta
  • Guerra na Ucrânia — a escada da escaladaANDREW KORYBKO 26/11/2024 Por ANDREW KORYBKO: Putin viu-se confrontado com a opção de escalar ou de continuar sua política de paciência estratégica, e escolheu a primeira opção

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES