Paulo Arantes – a vantagem da dialética

Imagem: Irina Novikova
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Por ANTÔNIO DAVID*

Avesso às filosofias saturadas, desidentificado do poder, o horizonte crítico de Arantes tem o mérito de buscar lastro em um chão histórico pleno de seres de carne e osso e de experiências de subalternidade

Se há uma tensão no interior de todo pensamento que se pretende totalizador é sua relação com a história. Por mais que possamos ver com clareza as formas de sujeição e de dominação nas sociedades contemporâneas, sem dúvida ligadas a dinâmicas do capitalismo global, ainda assim a realidade (o atualmente dado e as potencialidades que lhes são latentes) é demasiado complexa e opaca, de sorte que ela nunca se oferece de maneira transparente ao intérprete, que, no entanto, tem pressa em capturá-la, fixando o sentido e estabelecendo continuidade ao que aparece como caótico e descontínuo. As monstruosidades que a impaciência intelectual já produziu são bem conhecidas.

A vantagem da dialética em relação a outras formas de pensamento vem exatamente de sua relação com a história. Na dialética, o próprio pensar, como experiência de pensamento, toma parte na temporalização histórica. Em outras palavras, se a realidade é a um só tempo o que é e o que poderia ser, o pensar emancipador é parte e toma parte, como crítica imanente, no movimento histórico da época que pretende diagnosticar – lembrando que o verbo diagnóstico remete a outro: prognóstico. Dessa ótica, o pensar se apresenta como índice do histórico e de si, o que é o mesmo que dizer, como ponto de vista privilegiado para a compreensão dos impasses da época em que tem lugar.

Não deve surpreender, portanto, que um dos nomes mais proeminentes do pensamento dialético brasileiro, Paulo Arantes, tenha depositado tamanha energia em um tipo de discurso histórico-filosófico que se poderia designar, sem impropriedade alguma, de história intelectual. Se essa designação remete a formas de abordagem em geral antidialéticas, a realizada por Paulo Arantes é um exemplo de história intelectual dialética.

Segundo ele próprio relatou certa vez, tão logo se aposentou e deu início ao “grupo das quartas-feiras” a pedido de alguns alunos do curso de filosofia da USP, uma das regras era que o grupo não se dedicaria ao estudo de Filosofia. É óbvio que a filosofia não saiu e não sairia de seu horizonte, mas, vendo de longe a dinâmica do grupo (de que nunca fiz parte), suspeito que o que estava em jogo era, através do diálogo com pesquisadores que realizavam pesquisas empíricas em diferentes áreas do saber, o estabelecimento de um chão histórico firme para diagnósticos e horizontes críticos dialéticos.

Isso para dizer que um dos méritos de Paulo Arantes ao se debruçar sobre o destino que o pensamento dialético teve no Brasil é sua forte conexão com a dimensão empírica de processos históricos, inclusive – deveria ser óbvio, mas não é – com os seres de carne e osso que fazem a história e são feitos por ela, em particular os subalternos. Dessa perspectiva, Ressentimento da dialética (1996) não é um livro sobre intelectuais, mas um livro sobre a relação entre intelectuais e subalternos: presença ausente no livro em questão, a experiência da subalternidade é explícita em Novo tempo do mundo (2014).

Semelhante orientação ecoa a ponderação feita por Roberto Schwarz no prefácio de Crítica à razão dualista: o ornitorrinco (2003) sobre o estilo dialético de Chico de Oliveira: “No estilo da dialética esclarecida, o limiar das mudanças é exato, não é determinado por uma construção doutrinária, mas é sim fixado no bojo de uma totalização provisória e heurística, a qual se pretende ligada ao curso efetivo das coisas. Trata-se de um raro exemplo de marxismo amigo da pesquisa empírica”.[1] Fazendo notar o “raro exemplo”, Roberto Schwarz jogou luz sobre seu avesso, isto é, a regra: um universo intelectual em que a dialética é demasiadamente especulativa, um além da conta que no limite significa desprezo pelo empírico e pelo histórico.

Os historiadores compreendem bem os perigos envolvidos no emprego de conceitos que unificam a experiência, embora não sejam imunes a incorrer em usos imprudentes. Por diferentes vias, o risco é, dado o mau tratamento do empírico, reduzir o complexo ao simples e transformar problemas difíceis em dilemas de sim ou não.

Um desses conceitos é, por exemplo, “esquerda”. Deveria ser um pressuposto, mas não é: qualquer diagnóstico acerca da esquerda no Brasil dos dias atuais precisa levar em conta que essa palavra não se reduz a essa ou àquela figura – ou seja, “esquerda” não é sinônimo de “Lula”, ou “Governo Lula”, ou “PT” (que por si só unifica experiências e práticas diversas), e estes tampouco são significantes de “esquerda”; antes, o termo designa um universo extremamente rico e variado de pensamentos, práticas e experiências, cada qual com suas genealogias, de sorte que por debaixo da designação “esquerda” há uma enorme multidão de seres de carne e osso, parte dos quais organizados (pouco importa aqui o tamanho da organização), que pensam em termos de igualdade radical, e cujas práticas e experiências são informadas por esse ideal e fazem diferença na luta de classes. Quando essas pessoas pensam em “esquerda”, é provável que elas pensem antes de tudo em si mesmas e em sua experiência.

Por isso, qualquer diagnóstico da esquerda que reduza esse universo a uma parte dele, ou seja, que tome o todo pela parte – não qualquer parte, mas aquela que tem maior visibilidade e poder, e que só o tem porque atende a requisitos materiais e simbólicos de visibilidade e poder – revela um pensamento identificado com o poder. Na medida em que permanece de costas para a esquerda social (a maior parte da esquerda, dado que não é de menor importância), trata-se de um pensamento cujo campo de ressonância – seria mais apropriado dizer, de viralização – é estéril, porque não fala daqueles de quem diz falar, e, por não falar destes, não fala para estes.

Um pensamento desse tipo nada mais faz do que tornar posto (e justificar) o que sempre pressupôs: a não necessidade de os extremos se unirem, afinal, do outro lado não há nada. E, à luz das condições objetivas e subjetivas que tornam possível sua enunciação – pois nenhuma enunciação se dá no vazio –, esse pensamento mostra-se (não sem ironia) integrado à lógica de dominação que alegadamente quer colapsar.

No prefácio de Ressentimento da dialética, Bento Prado Jr. sustentou que, em sua vida tardia e periférica, ou seja, no Brasil e sob a pena de Roberto Schwarz e Paulo Arantes, a dialética “se subverte e quase se extingue”.[2] Posteriormente, em 2004, o próprio Paulo Arantes escreveu: “[…] a filosofia profissional, e não há outra sem retrocesso doutrinário e antimoderno, não é mais nem pode ser uma filosofia figurativa, isto é, não tem mais condições de descrever a experiência real com era sua ambição na Era Hegel, e de transpor essa experiência real para o plano conceitual”[3].

Se a dialética chegou a se extinguir e se a filosofia tem ou não condições de descrever a experiência real e transpô-la ao plano conceitual, deixo em aberto. O certo é que, em seu trabalho de pensamento, um dos capítulos mais ricos da experiência da dialética no Brasil, e que não encontra paralelo na atualidade, Paulo Arantes buscou a experiência real, e acredito que essa é uma chave para a compreensão de sua riqueza e fecundidade.

Avesso às filosofias saturadas, desidentificado do poder, seu horizonte crítico tem o mérito de buscar lastro em um chão histórico pleno de seres de carne e osso e de experiências de subalternidade, com quem buscou (e, até onde sei, ainda hoje busca) ter real interlocução, o que não se confunde com perda de autonomia de pensamento ou instrumentalização do pensar.[4] Concordemos ou não com suas conclusões, esse horizonte crítico, que nunca deixou de ser filosófico, é aquele no qual a dialética, se ainda não se extinguiu, deveria apoiar-se para alçar sua verdadeira força de ressonância.

*Antônio David é doutor em Filosofia pela USP e doutorando em História Social pela mesma instituição.

Notas


[1] Schwarz, Roberto. “Prefácio com perguntas”. In: Oliveira, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 16.

[2] Prado Júnior, Bento. “Prefácio”. In: Arantes, Paulo Eduardo. Ressentimento da dialética. Dialética e Experiência Intelectual em Hegel (Antigos Estudos sobre o ABC da Miséria Alemã). São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 10.

[3] Arantes, Paulo Eduardo. Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editorial Brasil, 2004, p. 275. (Coleção Baderna).

[4]Tive contato com Paulo Arantes algumas vezes, quase sempre na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Talvez não seja por acaso que a única oportunidade que tive de conversar um pouco mais longamente com ele não foi na faculdade, mas em uma de suas várias visitas à Escola Nacional Florestan Fernandes, do MST, quando trabalhei no escritório nacional do movimento.


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