Euclides da Cunha: Uma odisseia nos trópicos

Ana Holck (Jornal de Resenhas)
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Por LUIZ COSTA LIMA*

Comentário sobre a biografia de Euclides do norte-americoano Frederic Amory

Um traço caracteriza a recepção de Euclides da Cunha: se a reflexão crítica sobre sua pequena obra permanece pobre, sua abordagem biográfica é bastante rica. Às suas contribuições principais – a de Eloy Pontes, com A Vida dramática de Euclides da Cunha (1938), Sylvio Rabello, com Euclides da Cunha (1949) e Olímpio de Sousa Andrade, com História e interpretação de Os Sertões (1960) – acrescenta-se a cobertura jornalística da guerra de Canudos, feita em 1974 por Walnice Nogueira Galvão, em No calor da hora, bem como a reunião de sua correspondência, em 1997, também feita por Walnice, em colaboração com Oswaldo Galotti [Correspondência de Euclides da Cunha, Edusp].

A esses títulos acrescenta-se a obra de um euclidiano norte-americano Frederic Amory. A obra de Amory, lamentavelmente morto antes da edição traduzida de seu livro, distingue-se da de seus pares por sua maior ênfase na compreensão psicológica do biografado. Talvez tenha sido ele duplamente beneficiado por sua condição de estrangeiro: se conhecia a bibliografia brasileira tão bem como seus colegas, dispunha ainda de um acervo, sobretudo sobre o evolucionismo inglês e europeu, a que eles não tiveram acesso; por outro lado, não foi tolhido por tabus que têm prejudicado a compreensão do escritor fluminense.

Temos um exemplo desta sua maior liberdade logo no início de Uma Odisseia: o autor tem a argúcia de notar a correlação entre o nomadismo, a que o menino Euclides esteve submetido a partir da morte precoce de sua mãe, e o nomadismo profissional do adulto. Amory poderia tê-lo feito lançando mão de dados biográficos bem conhecidos. Usa, entretanto, um trunfo mais ousado: o testemunho oferecido por carta do pai do escritor, Manoel Rodrigues Pimenta da Cunha, a seu filho, datada de 16 de dezembro de 1906.

Quem conheça a Correspondência de Euclides da Cunha nela não a encontrará. Nas palavras de Amory, “o pai tardiamente admoestou-o sobre sua presteza em viajar para qualquer lugar, numa missão qualquer, sem se preocupar com o sustento e o cuidado da esposa e dos filhos, ou do velho pai”. A observação não causaria desconforto a algum biógrafo nacional se não fosse a sua fonte: ela está em A tragédia da piedade, no livro em que Dilermando de Assis, em 1951, se defendia da pecha de haver destruído o lar de Euclides e por assassiná-lo.

 Doente imaginário

Mas esse é apenas um dado até então não explorado. O nomadismo era tão-só o primeiro traço psicológico em que Amory se deteve. Sem que chegasse a constituir um achaque psíquico, estava em sua proximidade. Pois os males que afligiam Euclides eram não só físicos – os ataques de hemoptise, a malária que contraiu no Amazonas – como psíquicos: a obsessão com o fantasma de uma mulher vestida de branco que lhe aparece tanto em São José do Rio Preto, como no Amazonas. Teodoro Sampaio, seu amigo e colaborador, chegou a afirmar que Euclides “talvez fosse um doente imaginário”. Dados desta natureza são esmiuçados por Frederic Amory.

Do mesmo modo, leva adiante hipótese já formulada por Olímpio de Sousa Andrade acerca de seu florianismo. Ao contrário do que é habitualmente dito, a permanência de sua adesão ao enigmático Marechal desmente que sua decepção com a República tenha sido quase instantânea. Isso explica que visse na luta de Canudos a defesa das instituições republicanas, posição que não desaparece por completo mesmo depois que reconhece a fraude da suposta conspiração monárquica, ou seja, mesmo durante a permanência em Canudos.

É certo que sua posição política derivava de um rígido darwinismo social, no mínimo ingênuo, se não extravagante. Assim sua crônica de 17 de março de 1872, publicada no Estado de São Paulo, começava por um estranho “sejamos otimistas”. N’Os Sertões, diria que a presença do Exército, no combate aos conselheiristas ainda se justificaria se os tiros de obus servissem para abrir o caminho para integração dos sertanejos à civilização.

Mas não é menos verdade que o retrato de Floriano, em A esfinge, datado de fevereiro de 1894, referindo-se ao encontro com o Presidente durante a Revolta da Armada, é tão misterioso como o personagem que descreve. Que posição era a de quem descreve a situação de uma cidade passível de ser bombardeada pelos canhões de navios, enquanto o narrador recebe a inesperada visita de inspeção do marechal-presidente: “Representamos desastradamente. Baralhamos os papéis da peça que deriva num jogar de antíteses infelizes, entre senadores armados até aos dentes, brigando como soldados, e militares platônicos bradando pela paz – diante de uma legalidade que vence pela suspensão das leis e uma Constituição que estrangulam abraços demasiado apertados dos que a adoram”?

A hipótese do florianismo de Euclides é por certo plausível, mas não menos assente em uma compreensão estreita da sociedade por Euclides. Deixamos de detalhar outras observações valiosas. Por exemplo, a da supressão pelos editores portugueses de À Margem da história (1909) do ensaio “Brutalidade antiga”, infelizmente desde então perdido, porque nele também os portugueses eram denunciados pelos maus tratos a que submetiam os indígenas, na extração do látex.

Vale assinalar que, como biógrafo, Amory igualmente se detém sobre a obra escrita de Euclides. Se tem o mérito de estendê-la mesmo a artigos pouco relevantes, por certo não é aí que estão as grandes qualidades do biógrafo. Se ele é justo em verificar a ingenuidade de Euclides no elogio dos caucheiros que se revoltam no Acre, deixa, no entanto, de notar que seu chefe, o gaúcho Plácido de Castro, depois de vitorioso, tornar-se-á um latifundiário igualmente explorador.

Darwinismo fluvial

São igualmente excelentes as observações de até onde Euclides podia levar seu darwinismo social: sua análise do Purus chega perto de afirmar um “darwinismo fluvial”, enquanto, em um momento de depressão, podia recorrer a um “darwinismo às avessas”; ou ao reconhecimento do “conteúdo desconexo” de Contrastes e confrontos (1907) ou à facilidade de afirmações peremptórias sobre temas que mal conhece, como a história russa ou a história alemã.

Lamenta-se apenas que, com todas suas qualidades. Amory não tenha atacado duas vigas-mestras da interpretação usual de Euclides. No primeiro caso, sua posição chega a ser surpreendente. Que eu saiba, antes de Terra ignota. A construção de Os Sertões (1997), nenhum intérprete de Euclides se deu ao trabalho de conferir o que teria dito um certo Ludwig Gumplowicz, a quem Euclides considerara, na “Nota preliminar” de seu grande livro, “maior que Hobbes”.

Amory incorporou às suas leituras a tradução francesa de Der Rassenkampf (1883), publicada dez anos depois, La Lutte des races, que provavelmente terá sido a edição lida por Euclides. Por isso é tanto mais estranho que Amory corrobore a interpretação que Euclides dele oferecia. O texto de Gumplowicz, hoje um nome quase ignorado, é bastante simples. Por isso mesmo surpreende que o autor brasileiro e seu biógrafo americano continuem a afirmar o contrário do que dizia o precursor polonês da sociologia. Em suas próprias palavras: “Os fatores iniciais” (da raça) são intelectuais: a língua, a religião, o costume, o direito, a civilização etc. É só mais tarde que aparece o fator físico: a unidade de sangue”. Como poderia ser mais claro? A raça não é um fator biológico, mas social. Raça forte é apenas aquela que assim se intitula a si mesma porque venceu. Os fracos permanecerão fracos enquanto não virarem a balança.

A segunda viga-mestra que permanece intacta na biografia de Amory concerne à alegada superposição que se cumpriria em Os Sertões, de que se diz, desde José Veríssimo, ser, simultaneamente, obra de ciência e de literatura. Mas aqui a falha é menos grave. Afinal um biógrafo não tem a obrigação de possuir uma concepção mais refinada do que é literatura.

*Luiz Costa Lima é Professor Emérito da PUC-Rio. Autor, entre outros livros de Terra ignota. A construção de Os Sertões (Civilização Brasileira).

Publicado originalmente no Jornal de Resenhas, no. 11, em março de 2011.

Referência

Frederic Amory. Euclides da Cunha: uma odisseia nos trópicos. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo, Ateliê editorial.

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