Florestan Fernandes – A ciência política

Dora Longo Bahia, Paraíso – Consolação (projeto para a Avenida Paulista), 2019 Acrílica, caneta à base de água e aquarela sobre papel (24 peças) - 29.7 x 21 cm cada
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Por RONALDO TADEU DE SOUZA*

Um dos legados de Florestan Fernandes foi, também, a criação de uma ciência política

Desde que os programas de pós-graduação em ciências sociais (e mesmo de ciências humanas) se consolidaram a partir dos anos 1980-1990 nenhuma disciplina adquiriu tanta notoriedade e status positivo como a ciência política. Criada nos Estados Unidos do começo do século XX ela foi trazida ao Brasil, tal como a conhecemos hoje, enquanto estudo das instituições políticas e do comportamento de seus agentes, por três jovens pesquisadores das ciências sociais. Bolívar Lamounier, Wanderley Guilherme dos Santos e Fábio Wanderley Reis desbravaram terreno, praticamente, desconhecido nas universidades brasileiras. Como toda disciplina que quer não só adquirir espaço em áreas do saber já estabelecidas da ciência, mas iniciar seu próprio ethos disciplinar, com seus códigos, hábitos, rituais, modos específicos de pesquisa, linguagem e vocabulário próprios e seleção de figuras pontuais na conformação do campo, a ciência política desafiava saberes consagrados e personalidades representativas desses. Este é o caso da sociologia paulista e a presença eminente que a enunciava com maior vigor e prestígio acadêmico, Florestan Fernandes. Desde então ficou estabelecido nas nossas ciências sociais e no nosso debate público que Florestan Fernandes tratou com exuberância e inigualavelmente os problemas mais importantes da sociedade brasileira, “sem preocupação” cognitiva, epistêmica e específica com as instituições constitutivas do sistema político no Brasil. Assim, mesmo sem enunciações mais claras e diretamente dirigidas as suposições dos fundadores da ciência política brasileira e os herdeiros do legado iniciático objetivavam disputar os símbolos de glorificação e respeitabilidade da sociologia uspiana e de seu mestre pioneiro. Aqui houve (e há) uma articulação de interesses políticos, disciplinares e profissionais.

Pode-se dizer que, as disposições dos anunciadores da nova ciência política nacional convergiam com o tipo de democracia que seria construída no país após o fim da ditadura em 1984. Mais especificamente, o regime democrático tornar-se-ia o objeto constitutivo aos quais as ciências sociais, em particular a ciência política, deveriam concentrar seus esforços de elaboração e pesquisa. Assim, enquanto nos anos 1930 a 1980 nossas ciências sociais buscavam entender a característica da formação social brasileira, as condições do desenvolvimento nacional e o que havia levado ao golpe militar-empresarial de 1964, da transição em diante os recursos intelectuais tinham de estar voltados para a compreensão da democracia recém instaurada. Entretanto, o ponto é qual o padrão de democracia que queríamos? E, por conseguinte, qual a ciência política em construção desejava? A ciência política deste período, ao menos a praticada por aqueles que disputavam os espaços de prestígio e consagração com a sociologia paulista de Florestan Fernandes, entendia a democracia como uma estrutura de arranjos institucionais que daria importância irrefutável aos procedimentos formalistas. Bolívar Lamounier[1], um dos artífices da nossa ciência política dirá que é “ingênua a fé no desenvolvimento e na modernização” como eixos de sustentação da democracia. Deste modo, modelos de interpretação tal como os de Florestan Fernandes (e de Celso Furtado) são “anêmicos” para pensar, compreender e consolidar a democracia em termos institucionais e procedimentais: certos formalismos são mais importantes no contexto da democracia pós-ditadura do que qualquer modelo valorativo e substantivo, ainda que mínimo. Por outras palavras era necessário na “ciência política brasileira [dar-se] a devida atenção à esfera institucional”[2]. Com efeito, a atenção à nossa diretriz de industrialização, dos processos complexos de urbanização, a relação com as economias centrais hegemônicas, o jeito do povo brasileiro enquanto tal e o caráter da exploração de classe de um país de matriz escravagista tinham de ser colocado em segundo plano na ciência política nascente. Agora o foco das pesquisas deveria lançar olhares rigorosos para: o jogo exclusivo das elites políticas, os sistemas de governo, eleitoral, partidário, os partidos e o comportamento dos atores intra-instituições. Em breves palavras: a democracia dependia da constante indagação “pela” ciência política da qualidade dos arranjos da “estrutura político-institucional do país”[3]. Desde então a ciência política exercida nos termos dos seus fundadores tem a voz insigne para tratar da política “democrática” que nos governa.

No entanto, neste centenário de nascimento de Florestan Fernandes é sugestivo retomarmos seu estilo de fazer ciência da política. Não para estabelecermos uma competição estéril entre campos disciplinares e nomes que os representam simbolicamente – trata-se de adensar nosso entendimento crítico acerca da política praticada no Brasil e dos porquês dela. E se a ciência política, disciplinar e institucionalmente assentada, tinha e tem leais compromissos com os procedimentos formais da democracia brasileira – um modo, claramente, conservador em certos aspectos, assim como sua progenitora estadunidense[4], e que revelou aquele traço no contexto do golpe de 2016, contra o governo Dilma Rousseff, pois houve poucos cientistas políticos que não “subscreveram” os supostos ritos legais e institucionais do processo de impeachment e a legitimidade política (mas isso exige e aguarda outro texto) – “independente” de sua reposta aos problemas fundamentalmente substantivos da sociedade (material, social, econômico, cultural), a ciência política florestaniana constitui-se em uma crítica radical, revolucionária até, da política exercida no Brasil, mesmo a política dita democrática. Para além da quase obviedade de referir-se à monumental e decisiva obra de Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica, vejamos três momentos, três textos, do corpus teórico do sociólogo que podem (e devem) ser lidos como uma ciência política crítica destinada aos subalternos e suas expectativas de transformação social do Brasil, a saber: A Ciência Política de Karl Mannheim de 1946, As Mudanças Sociais no Brasil de 1974 e o As Contradições do Capitalismo Dependente de 1995.

Segue-se, então, que a história das disputas disciplinares nem sempre são espaços de esclarecimento sobre de fato quem construiu o que do ponto de vista da publicação de textos, uso de nomes de identificação, termos e vocabulários específicos. Poucos dizem que a sociologia “começou” com Montesquieu e sua análise social, cultural e moral das condições das leis bem sucedidas; dificilmente encontraremos alguém defendendo que a economia política foi teorizada já nos textos de Locke de quando ele abordou a riqueza e a constituição da propriedade originadas do trabalho (aquele que colhe o fruto tem o direito a ele e suas implicações monetárias) e ainda, quem afirmará com veemência que a crítica do gosto e dos hábitos antes de ganhar modos teóricos e rigorosos de conceituação com Pierre Bourdieu em A Distinção e Gostos de Classe, Estilos de Vida ela aparece no romance moderno de vanguarda der Marcel Proust, o Em Busca do Tempo Perdido. Com Florestan Fernandes ocorre o mesmo. Quem em uma disciplina de perspectiva tão específica e técnica como a ciência política, e que como dissemos há pouco ganhou força e prestígio acadêmico-institucional (e política, também); em outras palavras, com uma crosta rígida de estilos próprios de investigação (na abordagem dos seus objetos) e reverência na pesquisa universitária de excelência (isto é preciso reconhecer) – poderia imaginar que em 1946 o fundador de nossas ciências sociais (científicas) publicou um artigo para disciplina.

Não seria exagero dizer que talvez o nome-termo ciência política apareceu a primeira vez no nosso mundo acadêmico e universitário em A Concepção de Ciência Política de Karl Mannheim. Resultado de um ensaio final para um curso feito por Florestan Fernandes na Pós-Graduação da Escola de Sociologia e Política (curso oferecido pela cátedra de antropologia de Emílio Willems), o que encontramos neste texto iniciático?

Nele o jovem Florestan já esboça suas preocupações em pensar os assuntos das ciências sociais com rigor e cientificidade, mas sem deixar de observar a dinâmica concreta da vida em sociedade de maneira crítica. E para Florestan uma ciência política que assim não procedesse estaria comprometendo seu estatuto enquanto disciplina humana. Daí a relevância de Karl Mannheim, no percurso de Florestan Fernandes. No autor de Ideologia e Utopia ele encontrará a política sendo investigada não como instituição estática e perene – ciência política para o sociólogo alemão tinha de ser vista no âmbito das “mudanças culturais”[5]. Deste modo, o objetivo da ciência política, em termos mannheimianos, consiste “no estudo científico das esferas da realidade social em processo de devenir[6]. Devir ou devenir social; este é o núcleo constitutivo da ciência política de Florestan Fernandes aqui neste momento inicial. Assim, a partir de Mannheim, o sociólogo paulista irá desenvolver uma teorização acerca do estudo da política, significativamente peculiar. Para os que estão acostumados a observar uma ciência política disciplinar e politicamente “racional” e positivista – e mimetizando o processo institucional de poder – se surpreenderá com a noção florestaniana, ao menos no ensaio referido, da investigação da política referenciada por “situações sociais irracionais”[7] que se contrapõem as normas e arranjos estruturados.

Ora, em seu aspecto não-institucional a política (e a ciência que a investiga) explicita zonas variáveis de irracionalidade: pois para Florestan Fernandes, num eco durkheimiano, enquanto a sociologia lida com sistemas e organizações sociais “sujeitas a normas”[8] de comportamento (estáticas), a ciência política tem de se haver com circunstâncias de extrema maleabilidade da vida social. É que na prática societária, sobretudo em momentos de maior tensão social, cultural e moral há “grupos e/ou camadas sociais”, supõe-se que subalternas e marginalizadas dada as preocupações sempre presentes de Florestan, “que, em gerações sucessivas, visam a submeter [diria subverter] [as] situações [de] controle racional”[9]. A irracionalidade da ação e do viver ativo (e a expressão conceitual dele, o devenir político) como uma das perspectivas (a mais importante, talvez) do processo social – é a matéria mesma da ciência política de Florestan Fernandes. Ele dirá: “é através do elemento coletivo que a manifestação dos processos sociais interativos e a atuação do homem ajudam a forjar o processo de devenir. Em síntese; a política como ciência deve dar uma orientação concreta para a ação, em termos de um ponto de vista mais amplo […] [e observando as] zonas sociais em constante fluir […]”[10]. A ciência política, com efeito, pode ser nos ensina Florestan, uma atividade (científica) criadora e inventiva: e não exclusivamente inerte porque voltada, exclusivamente, para as instituições políticas.

Não seria ocasional, assim, que uma das inquietações na sociologia (e na ciência política) florestaniana tenha sido os problemas de mudança social (o fluir constante e por vezes irracional) em sociedades periféricas, e a brasileira com maior atenção. Qualquer ciência social constituída no solo labiríntico de uma sociedade não desenvolvida, não hegemônica, como o Brasil que não tenha no horizonte de questões científicas, as circunstâncias da mudança social estará cometendo um prejuízo contra si própria e o país que habita. A mudança social e a maneira ao qual foi abordada por Florestan Fernandes são índices do que estamos chamando aqui de ciência política do mestre sociologia nacional. Com efeito, compreender as complexidades da mudança social em sociedades de formação dependente é se colocar de uma “perspectiva crítica e participante”[11]. Por isso nos ensaios que compõem o Mudanças Sociais no Brasil, encontramos Florestan apresentando a noção de “excedente de poder”[12] que as classes dominantes buscam incessantemente guardarem para só – mesmo com a conformação de metamorfoses sociais e, por vezes, econômicas.

Assim, com a noção de “excedente de poder”, típica de uma ciência política (da periferia do capitalismo), que observa criticamente a rudeza do poder político-institucional ao lidar com as classes assalariadas, marginais, Mudanças Sociais no Brasil está atento para o fato característico de que mesmo em processos dinâmicos intensos e com alta capacidade de alteração das formas de organização da sociedade brasileira, as mudanças sociais que por aqui ocorrem ainda possibilitam que “as classes dominantes […] usem o Estado como um bastião de autodefesa e de ataque, impondo assim seus privilégios de classe ‘como interesse da Nação como um todo’, e isso de cima para baixo”[13]. Florestan Fernandes está a nos falar que a astucia (cruel e violenta) de nossas elites dominantes sempre cria para si elementos político-institucionais e político-organizacionais, de modo a protegê-la da irrupção “dos atores despossuídos”[14]. Ora, e conquanto de certo modo possa impulsionar mudanças sociais, a classe dominante brasileira entendendo desde a colônia quem são seus inimigos principais (negros e negras escravizados e ex-escravizados, uma massa rebelde de trabalhadores, marginalizados pela racionalidade do sistema econômico, mulheres negras inconformadas e lutando pelos seus filhos e a comunidade – Marielle Franco é um exemplo disso – e jovens pretos-trabalhadores e periféricos) transformam o Estado “não em um mero comitê dos interesses privados da burguesia”[15]; o Estado e suas instituições aqui “se torna[m] uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve servir a interesses particulares […] de preservação e ampliação de privilégios [e exploração] econômicas, sociocultural e política”[16]. Uma ciência política que trata nosso jogo partidário, nosso Executivo de coalizão, nosso sistema regimental de votações, nossa composição interessada de ministérios, a linguagem prática de nosso judiciário e sua prontidão a atender as classes dominantes não observando o excedente de poder estará a poucos passos de olhar única e fixamente as instituições políticas em que convivem as elites traçando seus planos e de costas para a sociedade onde a luta pela existência (digna) é uma batalha diária: luta contra, inclusive, a arma de opressão e repressão mobilizada por aquelas. Esta sem dúvida não era a ciência política de Florestan Fernandes. Por isso às vezes o estranhamento em lê-lo como exercendo, também, essa nobre disciplina. Quais eram as bases da modalidade constrita das mudanças sociais no Brasil?

As mudanças sociais no Brasil que a cada vez ocorrendo repunham (e repõem) o excedente de poder das nossas classes e elites dominantes tinham suas bases de estruturação socio-histórica a dinâmica daquilo que Florestan Fernandes chamou de contradições do capitalismo dependente. Neste tópico de suas intervenções teóricas e intelectuais ele preocupa-se, especificamente, com as peculiaridades políticas e econômicas de países que não fazem parte do capitalismo monopolista – “daqueles países avançados da Europa [e os] Estados Unidos”[17] e suas respectivas burguesias. O ponto de interpretação aqui será entender a luta política de sociedades, no caso específico a brasileira, nas quais a “dominação burguesa […] não [fez] história através da revolução nacional e de sua aceleração, mas […] [fez] o inverso, o caminho de sua contenção e esvaziamento[18]”. Ora, a ciência política florestaniana está atenta, uma vez estabelecido a diferenciação substantiva entre capitalismo monopolista e capitalismo dependente na configuração concreta e ativa do “poder de Estado”[19]. De modo que mais do que uma abordagem rigorosa e científica objetivando o delineamento do campo da sociologia, Florestan Fernandes esta a preocupar-se com o impacto político real da modalidade de revolução burguesa no Brasil. Se, nas sociedades hegemônicas as mudanças sociais – o devenir – conseguiram alastrar-se pela nação e acelerar processos socioeconômicos, socioculturais e, sobretudo, sociopolíticos, no capitalismo dependente há o “avesso”[20], pois por aqui os ciclos da revolução burguesa (Octávio Ianni) quando surgem centralizam o poder. Assim, embora nossas instituições adquiram complexidade interna como ossatura constitutiva do Estado – este, enquanto tal, e, contraditoriamente, no desenvolvimento de suas funções adequando-se às mudanças sociais torna seu poder político sobre as classes trabalhadoras e o conjunto dos marginalizados “sem rebuços”. Ou seja; um poder político-estatal coeso, ocultista, vil e violento sem qualquer tergiversação.

No limite deste espaço e texto podemos apenas indicar que, em termos explicativos, Florestan foi essencialmente sagaz ao observar que nas sociedades de dependência estrutural há uma “dissociação [no] […] processo”[21] social. Pela qual as elites do momento conseguem separar “o desenvolvimento ao nível econômico [de sua extensão] no nível político”[22]. Mais precisamente: o nível político muda não-mudando e por vezes regride para arranjos institucionais cruéis (como estamos presenciando com o grupo bolsonarista desde 2018).Na interpretação sugestiva de Maria Arminda Nascimento Arruda: as nossas revoluções burguesas ao invés de criar uma “ordem social aberta e democrática […] constr[uía] [isto sim] um abismo”[23] entre as “esferas da vida”[24] no sociedade brasileira. No agente social negro tal particularidade era explícita. Por diversos momentos da história política do Brasil é possível observar processos intensos no “ritmo do crescimento econômico, […] [por exemplo], a transição para o industrialismo”[25] e o aumento de nossa inserção na complexidade das cadeias globais de produção nas últimas décadas, mas no mesmo movimento da totalidade contraditória vemos “a contrarrevolução pura e simples no plano político[-estatal] (transformação do Estado representativo autoritário pura e simples no Estado policial-militar ultrarrepressivo)”[26] – e depois, ou novamente a reorganização da elite do poder (para lembrarmos a feliz expressão e obra do companheiro americano de combate de Florestan Fernandes, o sociólogo maldito, Charles Wright Mills) no Estado democrático-autocrático (pós-1984) tão bem analisado pelo mestre da Maria Antonia. (Na formulação florestaniana de Lincoln Secco atualizando aquela interpretação para os dias atuais: a criação por nossa classe dominante de uma “democracia togada-militar”.)

O que se sacrifica sempre e, conscientemente, é a democracia; que eventualmente poderia se constituir em espaço de articulação, organização e rebeldia dos “mais ou menos marginalizados e excluídos da nação”[27]. Assim, nossas instituições governamentais, argumenta a ciência política de Florestan Fernandes, adquirem sistematicamente o aspecto de uma esfera inegociável de “re-aglutinação e […] reorientação da dominação burguesa [que busca] adaptar[-se] às complexas e drásticas exigências de uma […] transição para o capitalismo monopolista”[28] e mais recentemente para o capitalismo de vigilância.

Neste sentido o que chama a atenção na ciência política florestaniana é a peculiaridade do jogo de conceitos, termos e expressões que são engendrados na interpretação do poder no Brasil. Verificam-se em As Contradições do Capitalismo Dependente sentenças decisivas para o estudo da política em solo nacional; de maneira que sempre atento às nossas particularidades Florestan mobiliza noções como: “estados investidores”, “espaço político seguro [para a elite]”, “arena da oligarquia perfeita”, “monopólio exclusivo do poder de Estado”, “contenção e esvaziamento da democracia”, “neocolonialismo disfarçado”, “hegemonia compósita” e “burguesia autocrática”[29]. Contudo, esta constelação de categorias e formulações eram na verdade o anseio de intervenção crítica (de esquerda) de um intelectual engajado (de um publicista radical como diz meu colega de disciplina Bernardo Ricupero) na luta pelos de baixo. Pois a contrapelo, Florestan Fernandes sabia que para o “devenir” e a “mudança social efetiva” – a transformação e emancipação da sociedade dependente brasileira –, para a destruição do “emprego sistemático do poderio policial-militar dos governos” e da elite dominante, era necessário a divulgação de uma ciência política que alertasse que o poder material tem de ser enfrentado por outro poder material: às nossas instituições políticas (sempre prontas para a contrarrevolução) é urgente contrapor o “vulcão social”[30] do povo marginalizado, das massas, sempre excluído e desprezado.

Uma ciência política – bem entendidas as coisas acerca do nosso apreço pela pluralidade de concepções de modos de investigação de alto refinamento metodológico, de pesquisadores com fina expertise, de rigorosas coletas de dados estatísticos e de modelos teóricos – que no Brasil não vislumbre “a justiça do [e para o] povo pela [sua] própria [iniciativa]”[31], pois não quer olhar à sua volta; pode olhar ao menos a cada período os Anuários Estatísticos do momento. Este foi um dos legados de Florestan Fernandes – a criação, também, de uma ciência política.

*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.

Notas


[1] Conf. Bolívar Lamounier – Redemocratização e Estudo das Instituições Políticas no Brasil. Sérgio Miceli (org.) Temas e Problemas da Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Sumaré/Fapesp: Rio de Janeiro: Fundação Ford, 1992.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem.

[4] Ver sobre isto João Feres Jr. Aprendendo com o Erro dos Outros: o que a história da ciência política americana tem a nos contar. Revista Sociologia e Política, nº 15, 2000.

[5]Florestan Fernandes – A Concepção de Ciência Política de Karl Mannheim. In: Elementos de Sociologia Teórica. São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1974, pag. 225.

[6] Ibidem.

[7] Ibidem, p. 227.

[8] Ibidem.

[9] Ibidem, p. 226.

[10] Ibidem, pp. 226 e 257.

[11] Florestan Fernandes – As Mudanças Sociais no Brasil. In: Octávio Ianni (org.) Florestan Fernandes. Ática, 1986, pag. 138.

[12] Ibidem, p. 145.

[13] Ibidem, p. 144.

[14] Ibidem, p. 145.

[15] Ibidem.

[16] Ibidem.

[17] Florestan Fernandes -As Contradições do Capitalismo Dependente. In: Em Busca do Socialismo: últimos escritos& outros textos. Xamã, 1995, pag. 125.

[18] Ibidem, p. 126.

[19] Ibidem, p. 127.

[20] Ibidem.

[21] Ibidem, p. 128.

[22] Ibidem.

[23] Maria Arminda Nascimento Arruda – Uma Sociologia do Desterro Intelectual. In: Florestan Fernandes –Circuito Fechado: Quatro Ensaios sobre Poder Institucional. Globo, 2010, p. 15.

[24] Ibidem.

[25] Ibidem.

[26] Ibidem.

[27] Ibidem, p. 126.

[28] Ibidem, p. 135.

[29] Ibidem, pp. 124-164.

[30]Ibidem, p. 130.

[31] Ibidem.

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