Por PAULO FERNANDES SILVEIRA*
A biografia ímpar de Florestan forjou uma sociologia na fronteira entre o rigor acadêmico e a experiência visceral da pobreza, antecipando o debate contemporâneo sobre quem tem autoridade para narrar a opressão

“Que a pesquisa possa contar com pessoas que tenham realmente experiência, que não sejam estrangeiros que vêm estudar o problema aqui, mas pessoas que sofrem o problema na própria pele. Pessoas que sentem” (Florestan Fernandes, OBSERVAÇÃO […], 1951, p. 541).
1.
O sociólogo francês Roger Bastide, que lecionou na USP entre 1938 e 1954, foi fundamental na formação de Florestan Fernandes. Um dos principais temas dos seus cursos e pesquisas era a sociologia do conhecimento (Bastide, 1944). Ao retornar para França, Bastide coordenou, na Sorbonne, o Laboratório de Sociologia do Conhecimento (Bastide, 1969).
Pioneiro nessa área das ciências humanas, Karl Mannheim (1986) depreende das análises marxistas do conceito de ideologia a tese de que a produção do conhecimento está vinculada à posição social da pesquisadora ou pesquisador.
Em seus textos biográficos, Florestan Fernandes resgata elementos de sua história de vida que destacam a relevância de sua posição social na elaboração de uma sociologia crítica e militante.
Até começar a estudar na USP, Florestan Fernandes fez parte dos estratos mais pobres da sociedade. Num livro sobre a educação no Brasil, Florestan Fernandes apresenta a sua posição social, nas palavras de Grada Kilomba (2019), ele apresenta o seu lugar de fala: “Tudo se passou como se eu me transformasse, de um momento para outro, em porta-voz das frustrações e da revolta de meus antigos companheiros de infância e juventude. O meu estado de espírito fez com que o professor universitário falasse em nome do filho da antiga criada e lavadeira portuguesa, o qual teve de ganhar a sua vida antes mesmo de completar sete anos, engraxando sapatos ou dedicando-se a outras ocupações igualmente degradadas, de maneira severa, naquela época” (1966a, p. XIX).
Numa entrevista, Florestan Fernandes relaciona suas experiências pessoais com suas primeiras pesquisas sobre o folclore: “Por condições da minha própria vida quando criança, do conhecimento dos bairros de São Paulo, dos contatos que eu tinha com certas pessoas, foi muito fácil para mim colher muito material” (2011, p. 29).
2.
Em seu estudo sobre os tupinambás, Florestan Fernandes encontrou elementos da cultura popular em que foi educado, tanto no âmbito de sua família, que tinha uma origem campesina, como nas relações de amizade que cultivou nos cortiços da Bela Vista.
Nas experiências de trabalho na infância, Florestan Fernandes conheceu o companheirismo de outras crianças que também precisavam ganhar a vida nas ruas. Ele encontrou nos tupinambás uma forma de solidariedade semelhante, solidariedade que se desenvolve nos momentos em que uma comunidade enfrenta coletivamente a fome: “os que não têm nada para dividir repartem com os outros as suas pessoas” (1976, p. 144).
O conteúdo dessa frase é semelhante ao de um verso “pretuguês” do rapper Emicida (2019): “tudo que nóis tem é nóis”.
A pesquisa UNESCO sobre o preconceito racial em São Paulo, que coordenou com Bastide, também evocou as experiências de Florestan: “Estabeleceu-se uma base de identificação psicológica profunda, em parte por causa do meu passado, em parte por causa da minha experiência socialista prévia” (2011, p. 72).
No projeto elaborado para a pesquisa, publicado em 1951, Roger Bastide e Florestan Fernandes elencam uma série de pesquisas realizadas por pessoas negras da Escola de Chicago sobre: “as condições de ajustamento inter-racial baseadas na segregação e em uma combinação dos regimes de castas e de classes” (1959, p. 323).
A Escola de Chicago ficou conhecida por desenvolver pesquisas empíricas com o emprego de observações, entrevistas e questionários (Mitchell, 2002). Essas metodologias também foram utilizadas por Roger Bastide e Florestan Fernandes na pesquisa UNESCO.
Provavelmente, o livro que mais marcou os textos de Bastide e Florestan sobre o preconceito racial tenha sido An american dilemma, fruto de uma pesquisa coordenada pelo economista e sociólogo sueco Gunnar Myrdal.
Apesar de ser um intelectual branco e estrangeiro, Gunnar Myrdal teve a colaboração de diversos pesquisadores negros norte-americanos, entre os quais, Clair Drake, um dos mais importantes pesquisadores da Escola de Chicago.
3.
No início dos anos 1970, em meio à campanha nas universidades norte-americanas em defesa dos direitos dos estudantes negros (Kendi, 2012), Robert Merton (1977) sustentou que o livro de Gunnar Myrdal poderia ser uma referência para as pesquisas que visam conciliar as perspectivas de pessoas de fora (outsider) e de dentro (insider) do contexto social.
No artigo “Aprendendo com a outsider within”, Patrícia Collins (2016) incorpora a proposta de Robert Merton de articulação das perspectivas outsider e insider.
Desde o início de sua carreira, Florestan Fernandes utilizou a sociologia do conhecimento de Robert Merton em suas pesquisas. Em 1966, Fernandes seguiu seus seminários na Universidade de Colúmbia (Fernandes, 1966b). Na reedição de Social theory and social structure, publicado em 1968, Robert Merton incluiu um texto de Florestan Fernandes nas referências bibliográficas.
A pesquisa UNESCO teve dois coordenadores, Roger Bastide, um intelectual branco e estrangeiro, ou seja, um outsider, e Florestan Fernandes, que também era branco, mas que, nos cortiços onde morou na infância, conviveu com parte da comunidade negra da cidade de São Paulo. Por outro lado, a pesquisa contou com a colaboração insider de diversos militantes do movimento negro.
Alguns militantes que colaboraram com a pesquisa, como o jornalista José Correia Leite, tinham histórias de vida semelhantes à de Florestan Fernandes (Leite; Moreira, 2025).
A pesquisa UNESCO partiu da hipótese de que o preconceito racial existe e promove uma série de barreiras às pessoas negras: para terem acesso à moradia, ao estudo e ao trabalho. Isso Florestan não aprendeu nos livros. Ele conheceu essa realidade no convívio que teve com pessoas negras com quem viveu e trabalhou desde menino.
Um dos temas principais da pesquisa foi a pobreza na comunidade negra, Florestan Fernandes conhecia bem essa situação a partir de sua própria experiência pessoal.
Na Coleção Especial do Fundo Florestan Fernandes, da Biblioteca Comunitária da Universidade Federal de São Carlos, encontram-se os registros das diversas mesas de debates promovidos pela pesquisa UNESCO com militantes do movimento negro.
Numa dessas mesas, o militante e poeta Carlos de Assumpção (Silva, 2024) sustentou que: “quem melhor pode dizer sobre o preconceito é o negro, porque é ele quem o sente” (OBSERVAÇÃO[…], 1951, p. 213). Algumas semanas depois, em outra mesa de debates, Florestan reforçou essa mesma posição.
No artigo “Essencialismo e experiência”, ao se referir à biografia da indígena guatemalteca Rigoberta Menchú (Burgos, 1986), bell hooks (2013) analisa a importância e a especificidade do conhecimento construído a partir da relação entre as experiências e as paixões.
A infância humilde de Florestan lhe forneceu um lugar de fala junto às pessoas pobres, todavia, ele não poderia falar, especificamente, em nome das pessoas negras, pois não sentiu o preconceito racial na própria pele.
*Paulo Fernandes Silveira é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP.
Referências
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