Por AIRTON PASCHOA*
Uma peça curta
Vamos nos matar
Não se agite o leitor, não o convido a abreviarmos la dolce vita, nem se ajuste, solene, ao banco duro do metrô, à espera do trágico. Não, amamos a vida e respeitamos os mortos. Continuemos relaxados, tais qual a figura de olhar vazado que parece acorrentar ao sofá, deitado, a garra invencível do Tédio, verdade que sem muito esforço, no instante em que soa solerte a malfadada campainha. Quem será? A uma hora destas? Não havia recurso à mão, pistola desintegradora, pó de pirlimpimpim, buraco providencial, nada, nem meio de empalhar-se provisoriamente, ou, quem sabe, até o fim dos tempos, assim expiava de vez aquele crime premeditado, horrendo, tá certo que era trabalho escolar, que a professora de artes mandara, mas isso atenua o fato? fora ele, ele! que matara a pobre pombinha, e a matara paulatino, com requintes de crueldade, involuntários, sem dúvida, mas nem por isso menos atrozes, metendo-a num saco plástico, sufocando-a, com um chumaço de algodão embebido em éter, por horas e horas, numa agonia arrastada, os olhinhos lutando por abrir, resistir, tentando, mas fechando, fechando, pra todo o sempre, e tudo pra dar em nada, bem-feito! Mas até que fora melhor assim… Poderia ele encarar uma rolinha empalhada, e que ele mesmo — empalhara? Não, nada que fazer, senão levantar e espreguiçar voando, coisa que detestava acima de todas as coisas, e desligar o vídeo, passava que filme mesmo? e botar roupão e comparecer à porta e dar o ar de seu chambre. Talvez fosse pequeno, vulgar, não muito novo e um tanto antiquado (do apartamento a descrição), mas dava pro gasto, pra pequena família, ele, a mulher, a filha. Pensava em comprar outro, lógico, maior, mas e o dinheiro? Ia ter que trabalhar mais… A não ser que reformulasse sua convicção profunda acerca da área ideal de habitação humana. Em certas ocasiões, havemos de convir, era evidente a vantagem de viver em setenta metros quadrados. Pensemos, por exemplo, em caso de fogo! Em tempo recorde se estava escada abaixo, ou à janela. Felizmente parecia não ser este o sinistro, ninguém sorri assim pro bombeiro:
— Ju!
— Rô!
Eis a tragédia, a história antiga. Ele é um homem; ela, uma mulher. E se isso não lhe inspira nada, hipócrita leitor, louvo-lhe a discrição, a verdade porém pede a palavra, até pra quebrar o constrangimento mútuo, o constrangimento inicial, aquele embaraço milenar, sabemos nós, de quem lhes sabe proibido o Paraíso. Não adianta dizer que não houve nada, ou fora tudo um mal-entendido. Eles se constrangem. É o véu eterno de lembranças passadas, futuras, efêmeras, a descerrar o jardim de delícias. São dedos, olhos, lábios, que se chamam, se acham, se inflamam e desmancham, como chamas. Podia ser um poeta, sentia-o, no imo do ser, posto se aborreçam também, e por isso mesmo que talvez cantam, os poetas. Por que, então, com os diabos, um deles sendo, não aproveitava que estava só e aborrecido e a seduzia alexandrinamente, à velha amiga? ela apetecia, afinal, depois de tanto tempo, e naquele tubinho vermelho… sem meia-calça… e sem calcinha, se bem a imaginava. Why on earth, pra lembrar o inglês que nunca aprendia? Será que o próprio amor o aborrecia? Quem sabe? Quem há de saber? Sabemos que os desígnios insondáveis da alma humana já foram sondados… Mas, e dinheiro pra consultar os epígonos do Dr. Segismundo? É froida, mermão. Sem dinheiro, enfim, pro apartamento, sem dinheiro, enfim, pro analista, sem dinheiro, enfim, pra aprender in loco o inglês… Sem dinheiro, enfim, que fazer? what to do? make love?
ROMILDO: Que bom te ver… Chegou faz tempo?
JULIANA: A semana passada, (entrando) mas já não vejo a hora de voltar…
ROMILDO: Mas já? toma um cafezinho antes…
JULIANA: Eu não aguento este país…E a Marta? a Lurdinha? Deve de estar uma moça…
ROMILDO: Compras.
JULIANA: Posso fumar?
(gesto de indiferença de Romildo)
JULIANA: Esta miséria toda… Não consigo nem fumar no carro, fico tensa… Parece que aumentou ainda mais…
ROMILDO: Você não disse que tinha parado?
JULIANA: Essa molecada em todos os faróis… É horrível!
ROMILDO: Distribuição de renda, minha filha…
JULIANA: Ai, eu não sei como você aguenta… (largando a bolsa)
ROMILDO: Vendo vídeo…
JULIANA: Você tinha que sair mais, viajar, rodar… ainda mais querendo ser roteirista…
(silêncio)
ROMILDO: Conseguiu a cidadania italiana?
JULIANA: Graças a Deus! (largando o corpo no sofá)
ROMILDO: Você está bem…
JULIANA: Dupla cidadã, que tal?
ROMILDO: Acho que uma só, minha filha, porque cidadão brasileiro… sei não.
JULIANA: É mesmo, ninguém quer saber da gente… nem Portugal! (risinho com a mão na boca)
ROMILDO: Mas me conta, (tentando entusiasmo) como é que foi a viagem? Paris é uma festa mesmo?
JULIANA: Paris é linda, linda… um passeio… um sonho… uma cidade pra pedestre… não pra carro, como este inferno aqui!
(coxa à vista)
ROMILDO: Você está bem…
JULIANA: Pega a minha bolsa… as fotos.
(grudadinhos)
ROMILDO: Você está mais jovem… Parece que a viagem…
JULIANA: Eu sou esta lindinha aqui, ó, (indicando-se na foto) no meio.
ROMILDO: E eu sou este aqui, ó, (close na Torre Eiffel) no fundo, alto, forte, de ferro!
JULIANA: Bobo… (cotoveladinha)
ROMILDO: Eta vontade de voltar, hem? até brilham os olhinhos…
JULIANA: Até sonho com isso…
ROMILDO: Ah, eu geralmente sonho que estou andando pelado no meio do povo…
JULIANA: Dizem que é insegurança, né?
(cara a cara)
ROMILDO: Às vezes me dá a impressão que cê tá fugindo, Ju… tanta viagem assim…
JULIANA: É isso que cê pensa, Rô?
ROMILDO: É.
JULIANA: Eu não penso…
(close no narizinho arrebitado)
ROMILDO: Ah, já sei, não penso, logo…
JULIANA: Existo! (abrindo os braços) Tem café?
ROMILDO: Tem café, tem cerveja, tem vinho, tem coca, tem veneno…
JULIANA: Ai, cê tá down?
ROMILDO: Eu não!
JULIANA: Não sei… cê diz umas coisas…
ROMILDO: Tô só brincando… Eu faço, mas você vai fumar antes?
JULIANA: Fumo depois também. Como é que cê conseguiu parar?
ROMILDO: Maria Fumaça!
JULIANA: Maria Fumaça… (soltando a tragada) Eu gosto… Piiiuuuuiiiii… (imitando coquete uma maria-fumaça)
ROMILDO: Eu vou fazer o café… (levantando-se e apoiando-se como que casualmente na coxa de Juliana) já volto… (saindo)
JULIANA: Maria Fumaça…
(aproveitando a fumaça e esfumaçando o quadro lentamente, até o corte)
ROMILDO: Tá bom?
(os dois tomando café, grudadinhos de novo no sofá)
JULIANA: Forte, né? (rangendo os dentes)
ROMILDO: Bom pra acordar, então…
JULIANA: Ah, mas eu não gosto de acordar, eu gosto de dormir.
ROMILDO: Dormir pra quê? pra acordar triste?
JULIANA: Triste?
(estranhando a pergunta, e largando a xícara)
ROMILDO: Nunca te aconteceu de sonhar um lugar, uma pessoa, mas tão real, tão real, e depois, ao acordar…?
(Juliana faz cara de desentendida)
ROMILDO: Ah, essa perfeição efêmera!
(largando a xícara e largando-se, como que degustando a própria frase)
ROMILDO: Ju!
(e Romildo se retesa no sofá de repente)
JULIANA: Rô!
(e Juliana se retesa junto)
ROMILDO: Ju… (ansioso)
JULIANA: Que foi? (assustada)
ROMILDO: Ju… (pegando-lhe na mão, apertando-a)
JULIANA: Ai… cê tá bem?
ROMILDO: Ju…
JULIANA: Rô…
ROMILDO: Vamos nos matar! (eufórico)
JULIANA: Cê tá louco?!
ROMILDO: Vamos nos matar! (levantando-se, levantando-a, segurando-a pelos ombros, apertando-os) vamos nos matar!
JULIANA: Me larga, tá maluco!? (tentando se desvencilhar)
ROMILDO: Vamos nos matar… (quase pedinte)
JULIANA: Me solta… me larga… vamos… (se desvencilhando)
ROMILDO: Vamos… nos…
JULIANA: Vamos nos sentar.
(arrumando-se, arrumando o tubinho que subira)
JULIANA: Por favor…
(Romildo caindo em si e no sofá, exausto).
*Airton Paschoa é escritor. Autor, entre outros livros, de Post streptum: espólio (e-galáxia). [https://amzn.to/4oHE6kK]
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