Fragmentos XLIII

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Por AIRTON PASCHOA*

Uma peça curta

Vamos nos matar

Não se agite o leitor, não o convido a abreviarmos la dolce vita, nem se ajuste, solene, ao banco duro do metrô, à espera do trágico. Não, amamos a vida e respeitamos os mortos. Continuemos relaxados, tais qual a figura de olhar vazado que parece acorrentar ao sofá, deitado, a garra invencível do Tédio, verdade que sem muito esforço, no instante em que soa solerte a malfadada campainha. Quem será? A uma hora destas? Não havia recurso à mão, pistola desintegradora, pó de pirlimpimpim, buraco providencial, nada, nem meio de empalhar-se provisoriamente, ou, quem sabe, até o fim dos tempos, assim expiava de vez aquele crime premeditado, horrendo, tá certo que era trabalho escolar, que a professora de artes mandara, mas isso atenua o fato? fora ele, ele! que matara a pobre pombinha, e a matara paulatino, com requintes de crueldade, involuntários, sem dúvida, mas nem por isso menos atrozes, metendo-a num saco plástico, sufocando-a, com um chumaço de algodão embebido em éter, por horas e horas, numa agonia arrastada, os olhinhos lutando por abrir, resistir, tentando, mas fechando, fechando, pra todo o sempre, e tudo pra dar em nada, bem-feito! Mas até que fora melhor assim… Poderia ele encarar uma rolinha empalhada, e que ele mesmo — empalhara? Não, nada que fazer, senão levantar e espreguiçar voando, coisa que detestava acima de todas as coisas, e desligar o vídeo, passava que filme mesmo? e botar roupão e comparecer à porta e dar o ar de seu chambre. Talvez fosse pequeno, vulgar, não muito novo e um tanto antiquado (do apartamento a descrição), mas dava pro gasto, pra pequena família, ele, a mulher, a filha. Pensava em comprar outro, lógico, maior, mas e o dinheiro? Ia ter que trabalhar mais… A não ser que reformulasse sua convicção profunda acerca da área ideal de habitação humana. Em certas ocasiões, havemos de convir, era evidente a vantagem de viver em setenta metros quadrados. Pensemos, por exemplo, em caso de fogo! Em tempo recorde se estava escada abaixo, ou à janela. Felizmente parecia não ser este o sinistro, ninguém sorri assim pro bombeiro:

— Ju!

— Rô!

Eis a tragédia, a história antiga. Ele é um homem; ela, uma mulher. E se isso não lhe inspira nada, hipócrita leitor, louvo-lhe a discrição, a verdade porém pede a palavra, até pra quebrar o constrangimento mútuo, o constrangimento inicial, aquele embaraço milenar, sabemos nós, de quem lhes sabe proibido o Paraíso. Não adianta dizer que não houve nada, ou fora tudo um mal-entendido. Eles se constrangem. É o véu eterno de lembranças passadas, futuras, efêmeras, a descerrar o jardim de delícias. São dedos, olhos, lábios, que se chamam, se acham, se inflamam e desmancham, como chamas. Podia ser um poeta, sentia-o, no imo do ser, posto se aborreçam também, e por isso mesmo que talvez cantam, os poetas. Por que, então, com os diabos, um deles sendo, não aproveitava que estava só e aborrecido e a seduzia alexandrinamente, à velha amiga? ela apetecia, afinal, depois de tanto tempo, e naquele tubinho vermelho… sem meia-calça… e sem calcinha, se bem a imaginava. Why on earth, pra lembrar o inglês que nunca aprendia? Será que o próprio amor o aborrecia? Quem sabe? Quem há de saber? Sabemos que os desígnios insondáveis da alma humana já foram sondados… Mas, e dinheiro pra consultar os epígonos do Dr. Segismundo? É froida, mermão. Sem dinheiro, enfim, pro apartamento, sem dinheiro, enfim, pro analista, sem dinheiro, enfim, pra aprender in loco o inglês… Sem dinheiro, enfim, que fazer? what to do? make love?

ROMILDO: Que bom te ver… Chegou faz tempo?

JULIANA: A semana passada, (entrando) mas já não vejo a hora de voltar…

ROMILDO: Mas já? toma um cafezinho antes…

JULIANA: Eu não aguento este país…E a Marta? a Lurdinha? Deve de estar uma moça…

ROMILDO: Compras.

JULIANA: Posso fumar?

(gesto de indiferença de Romildo)

JULIANA: Esta miséria toda… Não consigo nem fumar no carro, fico tensa… Parece que aumentou ainda mais…

ROMILDO: Você não disse que tinha parado?

JULIANA: Essa molecada em todos os faróis… É horrível!

ROMILDO: Distribuição de renda, minha filha…

JULIANA: Ai, eu não sei como você aguenta… (largando a bolsa)

ROMILDO: Vendo vídeo…

JULIANA: Você tinha que sair mais, viajar, rodar… ainda mais querendo ser roteirista…

(silêncio)

ROMILDO: Conseguiu a cidadania italiana?

JULIANA: Graças a Deus! (largando o corpo no sofá)

ROMILDO: Você está bem…

JULIANA: Dupla cidadã, que tal?

ROMILDO: Acho que uma só, minha filha, porque cidadão brasileiro… sei não.

JULIANA: É mesmo, ninguém quer saber da gente… nem Portugal! (risinho com a mão na boca)

ROMILDO: Mas me conta, (tentando entusiasmo) como é que foi a viagem? Paris é uma festa mesmo?

JULIANA: Paris é linda, linda… um passeio… um sonho… uma cidade pra pedestre… não pra carro, como este inferno aqui!

(coxa à vista)

ROMILDO: Você está bem…

JULIANA: Pega a minha bolsa… as fotos.

(grudadinhos)

ROMILDO: Você está mais jovem… Parece que a viagem…

JULIANA: Eu sou esta lindinha aqui, ó, (indicando-se na foto) no meio.

ROMILDO: E eu sou este aqui, ó, (close na Torre Eiffel) no fundo, alto, forte, de ferro!

JULIANA: Bobo… (cotoveladinha)

ROMILDO: Eta vontade de voltar, hem? até brilham os olhinhos…

JULIANA: Até sonho com isso…

ROMILDO: Ah, eu geralmente sonho que estou andando pelado no meio do povo…

JULIANA: Dizem que é insegurança, né?

(cara a cara)

ROMILDO: Às vezes me dá a impressão que cê tá fugindo, Ju… tanta viagem assim…

JULIANA: É isso que cê pensa, Rô?

ROMILDO: É.

JULIANA: Eu não penso…

(close no narizinho arrebitado)

ROMILDO: Ah, já sei, não penso, logo…

JULIANA: Existo! (abrindo os braços) Tem café?

ROMILDO: Tem café, tem cerveja, tem vinho, tem coca, tem veneno…

JULIANA: Ai, cê tá down?

ROMILDO: Eu não!

JULIANA: Não sei… cê diz umas coisas…

ROMILDO: Tô só brincando… Eu faço, mas você vai fumar antes?

JULIANA: Fumo depois também. Como é que cê conseguiu parar?

ROMILDO: Maria Fumaça!

JULIANA: Maria Fumaça… (soltando a tragada) Eu gosto… Piiiuuuuiiiii… (imitando coquete uma maria-fumaça)

ROMILDO: Eu vou fazer o café… (levantando-se e apoiando-se como que casualmente na coxa de Juliana) já volto… (saindo)

JULIANA: Maria Fumaça…

(aproveitando a fumaça e esfumaçando o quadro lentamente, até o corte)

ROMILDO: Tá bom?

(os dois tomando café, grudadinhos de novo no sofá)

JULIANA: Forte, né? (rangendo os dentes)

ROMILDO: Bom pra acordar, então…

JULIANA: Ah, mas eu não gosto de acordar, eu gosto de dormir.

ROMILDO: Dormir pra quê? pra acordar triste?

JULIANA:  Triste?

(estranhando a pergunta, e largando a xícara)

ROMILDO: Nunca te aconteceu de sonhar um lugar, uma pessoa, mas tão real, tão real, e depois, ao acordar…?

(Juliana faz cara de desentendida)

ROMILDO: Ah, essa perfeição efêmera!

(largando a xícara e largando-se, como que degustando a própria frase)

ROMILDO: Ju!

(e Romildo se retesa no sofá de repente)

JULIANA: Rô!

(e Juliana se retesa junto)

ROMILDO: Ju… (ansioso)

JULIANA: Que foi? (assustada)

ROMILDO: Ju… (pegando-lhe na mão, apertando-a)

JULIANA: Ai… cê tá bem?

ROMILDO: Ju…

JULIANA: Rô…

ROMILDO: Vamos nos matar! (eufórico)

JULIANA:  Cê tá louco?!

ROMILDO: Vamos nos matar! (levantando-se, levantando-a, segurando-a pelos ombros, apertando-os) vamos nos matar!

JULIANA:  Me larga, tá maluco!? (tentando se desvencilhar)

ROMILDO: Vamos nos matar… (quase pedinte)

JULIANA: Me solta…  me larga… vamos… (se desvencilhando)

ROMILDO: Vamos… nos…

JULIANA: Vamos nos sentar.

(arrumando-se, arrumando o tubinho que subira)

JULIANA: Por favor…

(Romildo caindo em si e no sofá, exausto).

*Airton Paschoa é escritor. Autor, entre outros livros, de Post streptum: espólio (e-galáxia). [https://amzn.to/4oHE6kK]


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