Francis Bacon

Francis Bacon, Três estudos para figuras na base de uma crucificação, 1944
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por EUGÊNIO BUCCI*

O principal protesto público da cidade de São Paulo se acomodou candidamente dentro de um museu

A maior manifestação política que acontece na cidade de São Paulo não marcha pelas ruas, não trava o trânsito, não grita a céu aberto e não transpira sob o sol. O principal protesto público desta metrópole se acomodou candidamente dentro de um museu. Não, não se trata de uma ocupação ou de um acampamento em repartição pública – trata-se de uma simples exposição de quadros: a primeira mostra individual no Brasil do irlandês Francis Bacon (1909-1992).

Estamos no primeiro andar do MASP. Entre quatro paredes, perfilam-se as pinturas, disciplinadas e quietas. Tudo muito pacífico, tudo muito ordeiro. O público visitante não faz arruaça. Em vez disso, trafega pacato e mudo pelos vãos contemplativos. Não há corre-corre. Não há bomba de gás lacrimogêneo. A iluminação suave imprime no ambiente uma calmaria atemporal.

Fora isso, a exposição é pura tormenta. Quando você pisar no primeiro pavimento do MASP vai sentir que o chão lhe falta. Num sopro repentino, o mundo conhecido desaparece. Os conceitos que se imaginavam pétreos se retorcem na sua frente e explodem purulentos, lançando escamas sulfurosas para além dos domínios da Avenida Paulista. Os signos consagrados, aqueles nos quais ninguém via problema nenhum, começam a se despedaçar como nacos de costela sob cutelo do açougueiro. Tormenta, tormenta sem trégua. Estiletes imateriais vazam de um golpe os olhos de quem passa.

A ideia de que a única missão da arte é ferir os olhos não vem de hoje. Em 1929, o curta-metragem O cão andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dali, sintetizou essa pretensão na forma de uma arrepiante metáfora: um bisturi lanceta a córnea e a íris de uma mulher passiva. A cena se converteu num dos símbolos mais incisivos da proposta estética do surrealismo. Quando autêntica, a navalha criadora mergulha pelas pupilas adentro e abre as portas da percepção – muito diferente do facão do entretenimento, que mutila o nervo ótico das plateias à medida que as entorpece.

Francis Bacon, que gostava de Picasso, não cega ninguém. Ao contrário, é hoje o fio agudo que rompe as amarras do olhar. Suas imagens – você não vai acreditar – parecem se mover inquietas dentro das molduras duras. A gente olha, elas estão de um jeito. Olha de novo, e elas trocaram de lugar. Levante cromático. Sensualidade militante e bela, sem dúvida. Mas será só isso?

A curadoria magistral de Adriano Pedrosa e Laura Cosendey joga ênfase na identidade queer do pintor, chamando atenção para os relacionamentos “intensos e turbulentos” que ele manteve com dois amantes, Peter Lacy e George Dyer. Contudo, o fenômeno mais desestabilizador desse conjunto de trabalhos não se resume a namoros subversivos. O ponto perturbador das 23 obras expostas está no modo como elas descarnam as relações de poder. Francis Bacon pinta contra o poder, jamais a favor. Acima do amor reprimido e da luxúria indômita, seu tema é a insurreição necessária. Ele retrata não uma comunidade restrita, mas a humanidade inteira.

A um metro de distância das pinturas, a gente detecta in loco o gesto que picha os tolos ideais de formosura. Sim, Francis Bacon deforma suas figuras, mas ele as deforma para libertá-las, como a dizer que quem as deforma de verdade é o poder. Elas surgem, então, com as feições borradas e, indefinidas, escapam da vigilância da autoridade. Turvadas, maceradas, esmerilhadas, não se entregam. Suas faces parecem vísceras e suas vísceras parecem alma. Aí você entende: o sujeito do nosso tempo não passa de um rastro espesso de tinta encaroçada, mas tem sede de viver. A opressão o cerca, mas não pode detê-lo.

Em várias das telas, linhas retilíneas riscam formas geométricas exatas – um cômodo abstrato, um cubo vazio, um nicho oco. Essas formas entram em contradição com os corpos em transe passional. Aqueles fios imperturbáveis que se cruzam em ângulos retos parecem representar o projeto inútil de enquadrar a natureza – e não consegue nem mesmo amainar a força misteriosa da carne. A lei luminescente e euclidiana perfura o espaço, mas o real lhe escapa, em furiosa desobediência.

Em 1990, o longa-metragem Jacob’s Ladder (Alucinações do passado, no título brasileiro), de Adrian Lyne, adotou as criações horripilantes do artista irlandês como paradigma de sua linguagem cinematográfica. Nesse filme, que trata da morte e dos apavoramentos que a acompanham, Adrian Lyne prova que Francis Bacon consolidou o mais completo dicionário plástico da barbárie, com uma semiótica desestruturante e, ao mesmo tempo, emancipadora. Não, Francis Bacon não nos legou um testemunho excêntrico de uma sexualidade particular ou atípica – ele nos deu de presente um inventário universal da condição humana em sua luta contra o matadouro. Ele nos mostrou o ser que se bate contra o poder insensível.

Os pinceis machucam a pele da hipocrisia e retiram a areia de cima do desejo em guerra contra o mando. São os pincéis de um arqueólogo lasso que deixam arranhões inscritos na tela, desvelando as feridas do viver.  Quando você cruzar a porta do primeiro andar do MASP saberá: essas feridas descansam, esquecidas e mitigadas, no fundo de suas retinas domesticadas.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). https://amzn.to/3SytDKl

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Bolsonarismo – entre o empreendedorismo e o autoritarismo
Por CARLOS OCKÉ: A ligação entre bolsonarismo e neoliberalismo tem laços profundos amarrados nessa figura mitológica do "poupador"
Fim do Qualis?
Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA: A não exigência de critérios de qualidade na editoria dos periódicos vai remeter pesquisadores, sem dó ou piedade, para um submundo perverso que já existe no meio acadêmico: o mundo da competição, agora subsidiado pela subjetividade mercantil
Carinhosamente sua
Por MARIAROSARIA FABRIS: Uma história que Pablo Larraín não contou no filme “Maria”
O marxismo neoliberal da USP
Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA: Fábio Mascaro Querido acaba de dar uma notável contribuição à história intelectual do Brasil ao publicar “Lugar periférico, ideias modernas”, no qual estuda o que ele denomina “marxismo acadêmico da USP
Distorções do grunge
Por HELCIO HERBERT NETO: O desamparo da vida em Seattle ia na direção oposta aos yuppies de Wall Street. E a desilusão não era uma performance vazia
Carlos Diegues (1940-2025)
Por VICTOR SANTOS VIGNERON: Considerações sobre a trajetória e vida de Cacá Diegues
O jogo claro/escuro de Ainda estou aqui
Por FLÁVIO AGUIAR: Considerações sobre o filme dirigido por Walter Salles
Cinismo e falência da crítica
Por VLADIMIR SAFATLE: Prefácio do autor à segunda edição, recém-publicada
A força econômica da doença
Por RICARDO ABRAMOVAY: Parcela significativa do boom econômico norte-americano é gerada pela doença. E o que propaga e pereniza a doença é o empenho meticuloso em difundir em larga escala o vício
A estratégia norte-americana de “destruição inovadora”
Por JOSÉ LUÍS FIORI: Do ponto de vista geopolítico o projeto Trump pode estar apontando na direção de um grande acordo “imperial” tripartite, entre EUA, Rússia e China
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES