Por PAULO CAPEL NARVAI*
Incidem sobre o SUS todas as mazelas e iniquidades da sociedade, produtoras em massa de agravos à saúde
Um tapa no rosto de uma profissional de enfermagem foi dado na tarde de 21 de março, a 26 quilômetros do Palácio do Planalto. Aconteceu na Unidade Básica de Saúde (UBS) de Taguatinga. Segundo o Sindicato dos Auxiliares e Técnicos em Enfermagem do Distrito Federal, um homem adentrou à UBS exigindo uma receita para medicamento controlado, desses conhecidos como “tarja preta”. Foi atendido por uma técnica em enfermagem que lhe informou que ela não tinha competência legal para fornecer o medicamento. Explicou que para recebê-lo pelo SUS era preciso ter receita médica e que havia um médico plantonista que poderia atendê-lo.
Inconformado, o homem, que disse ser advogado, se exaltou, alegando “saber dos seus direitos”. Temendo ser agredida, a servidora pediu ajuda à esposa do sujeito, que ao invés de conter o marido, estapeou a servidora. No dia seguinte profissionais de saúde da UBS paralisaram suas atividades, em protesto, durante meia hora. Lia-se nos cartazes: “A saúde pede paz”, “O SUS é de todos” e “Servidores estão aqui para servir, não para ser saco de pancada”. Para o Coren-DF, a agressão “é repugnante e não pode ficar impune”.
Episódios de violência verbal para lidar com conflitos gerados em interrelações sociais em ambientes escolares e em unidades de saúde são relativamente corriqueiros, sobretudo nas periferias metropolitanas.
No dia seguinte a agressão na UBS, em 22 de março, a 43 quilômetros dali e a 22 do Palácio do Planalto, uma estudante resolveu um desentendimento com sua colega apontando-lhe um revólver para a cabeça, em pleno pátio da escola, o Centro Educacional São Francisco, conhecido como CED Chicão, de São Sebastião.
O que chama a atenção nesses dois episódios recentes, que expressam a banalização da violência em interações sociais cotidianas, é que não foram apenas verbais. Dos insultos e desrespeito ao outro, as pessoas passaram à violência física. Num dos casos, havia arma de fogo.
Ambos os casos ocorreram, significativamente, na capital federal e a menos de 30 quilômetros do Palácio do Planalto, símbolo máximo do poder Executivo da República.
A presença de armas de fogo e a substituição do diálogo por ameaças à vida são sinais de que, atualmente, há algo mais no cotidiano das nossas cidades, a indicar que o grau de degeneração da sociabilidade vem se acentuando no Brasil.
Não se trata, vale assinalar, daquela violência “lá longe”, naquilo que Plínio Marcos costumava caracterizar como “quebradas do mundaréu”, “lá onde o vento faz a curva” e onde vários tipos de violência sempre estão a impedir o pleno desfrute da vida, cuja potência, contudo, felizmente nunca se esvai, sempre a alimentar as esperanças de que, sim, a vida pode ser diferente, mesmo nas quebradas. Em muitas dessas quebradas estão o que hoje em dia se qualifica como “territórios sem Estado, sob controle do narcotráfico ou milicianos” – o que, se não é igual significa a mesma coisa.
A agressividade que descamba frequentemente para as vias de fato, em ambientes em que a violência é intolerável, como escolas e unidades de saúde, nos quais se preserva e valoriza a vida, precisa ser analisada e compreendida, para ser contida.
Se não se pode dizer que o Palácio do Planalto e, mais especificamente, o “gabinete do ódio” que lá opera sob o beneplácito do primeiro mandatário, é a causa da banalização da violência que se espraia perigosamente por todo o país – muitas vezes de armas nas mãos e muito ódio no coração –, é impossível não cogitar do que significa, para a sociedade, a reiterada apologia às armas e à violência para dirimir conflitos. Se, em termos objetivos, ou positivos, a causa não pode ser demonstrada, não há qualquer dúvida sobre o elo entre esses fatos para uma perspectiva dialética, cuja lei da conexão universal evidencia o nexo.
Desde o mais alto posto da República não emanam mensagens cujos valores orientam-se ao entendimento, ao diálogo e à convivência pacífica, buscando-se compreender as razões dos envolvidos em querelas.
Bem ao contrário, o que se vê e ouve nas manifestações que “vêm do alto” é a apologia à violência, à solução pela força, inclusive armada, de todo tipo de problema social. A mensagem, clara, é: armem-se e resolvam à bala, ou pela força física, suas diferenças. Nada de conversar, compreender, argumentar, convencer. Diálogo? Não. Se há diferença, o melhor a fazer seria “sair no braço”, no melhor estilo “olho por olho, dente por dente”, embora se saiba, à exaustão, que este é o caminho mais rápido para um cenário em que, ao final, todos estarão cegos e banguelas, ou pior: mortos.
Sanitaristas apontam, consensualmente, que a violência, sob as mais diferentes formas, é um gravíssimo problema de saúde pública no Brasil.
Neste 7 de abril, data dedicada mundialmente à saúde, a maioria dos países segue às voltas com os efeitos da pandemia de covid-19 enquanto a OMS organiza um plano para a saída da fase emergencial. Segue inalterada, porém, a brutal iniquidade no acesso às vacinas.
No Brasil, as preocupações se dirigem para as consequências, ainda pouco conhecidas, da infecção pelo SARS-CoV-2 e, sobretudo, o futuro do SUS. Incidem sobre o nosso sistema universal de saúde todas as mazelas e iniquidades da sociedade brasileira, produtoras em massa de agravos à saúde, que se expressam, em UBS, ambulatórios e hospitais, como doenças, infecções, dor, sofrimento e morte. Os profissionais do SUS sabem que não são “saco de pancada”, mas que, de algum modo, têm de lidar com muito mais do que as consequências das ações de vírus, bactérias e disfunções variadas.
Há, porém, uma parte da sociedade que, de um lado, quer que “o governo” assegure a todos “hospitais padrão FIFA”, mas, de outro, não quer nem ouvir falar em uma Carreira de Estado para os trabalhadores do SUS. “Isso não. Nem pensar! O Brasil não tem dinheiro para isso. O Estado está quebrado e não tem recursos para sustentar um monte de funcionário público!” Ao mesmo tempo, essa parte da sociedade considera normal e eticamente aceitável sonegar impostos, desfrutar de isenções tributárias, manter inalteradas iniquidades sociais, zombar de direitos e da democracia e dos que os defendem. Para não falar da ilimitada tolerância com a precarização do trabalho e, em alguns casos, até mesmo com o trabalho análogo ao escravo.
Apesar da enorme contribuição que o nosso sistema universal de saúde deu ao enfrentamento da pandemia em muitos estados e municípios – mesmo subutilizado por um grande número de gestores incompetentes e subservientes – e a despeito do governo federal, cujas ações e sobretudo as omissões ajudaram mais o coronavírus do que a população, são drásticos os efeitos do desfinanciamento do SUS, cujo agravamento vem comprometendo ações e programas de saúde de abrangência nacional. De acordo com os economistas Bruno Moretti, Carlos Ocké-Reis, Francisco Funcia e Rodrigo Benevides, no artigo ‘Sangrando o SUS’, somando-se os efeitos das Emendas Constitucionais 95/2016 e 109/2020, cerca de R$ 48 bilhões foram retirados do SUS no período de 2018 a 2022. É mesmo uma sangria. E agravada, pois ocorre em organismo já muito debilitado.
A sociedade brasileira vem reagindo como pode à banalização da violência e ao sucateamento do SUS, com o qual aprendeu que pode contar, em qualquer circunstância.
Além das iniciativas na base da sociedade para enfrentar nas comunidades as consequências da pandemia, entidades e movimentos sociais organizaram a Frente pela Vida, com o objetivo de enfrentar o genocídio também no plano político-institucional.
A Frente reúne mais de 550 entidades e movimentos e, neste 7 de abril, além de atos e manifestações em várias cidades, que ocorrerão ao longo do dia, dará início, às 17h, à “Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde”, com encerramento previsto para 5 de agosto, em Brasília.
Mas se a Frente pela Vida está de olho na pandemia e no SUS, a defesa da vida não é nada fácil no Brasil, que convive com problemas crônicos de banalização da violência e desapreço pela vida, agravadas ainda mais na atual conjuntura pelo péssimo comando à frente da República.
A luta pela vida, a defesa da vida, requer muito mais do que conter o genocídio atual e precisa incluir a luta permanente contra a violência e sua banalização. Isto significa, portanto, que há muita luta pela frente, muitos e diversificados embates a serem travados.
No livro SUS: uma reforma revolucionária, que estou lançando neste abril de 2022, pela Editora Autêntica, registro a certa altura a conta feita por Darcy Ribeiro, segundo o qual “o Brasil sempre foi um moinho de gastar gente: moeu seis milhões de índios e liquidou com doze milhões de negros africanos para adoçar com açúcar a boca de europeus e para enriquecer com o ouro de Minas Gerais”.
Nas primeiras décadas do século XXI o país segue matando, de diferentes formas. Nos ambientes e processos de trabalho, nas lutas sociais por direitos, por terra, habitação, ambiente… “O país”, em termos, decerto, pois refiro-me aos donos do país, os principais interessados na manutenção do status quo, onde está banalizada também a violência contra as mulheres e a população LGBTQIA+.
Em Piracicaba, a cerca de 900 quilômetros do Palácio do Planalto, uma funcionária da Universidade de São Paulo (USP) foi morta pelo ex-marido, com golpes de faca à luz do dia, em frente à escola de sua filha. Aconteceu em 24 de março.
Há nexo, dialético, entre o Palácio do Planalto e o feminicídio de Piracicaba, segundo o Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo (Sintusp). Em Nota de Pesar pela morte de Carolina Dini Jorge, a servidora pública da USP, a entidade afirma que “no Brasil de Bolsonaro e Damares o ódio às mulheres é pregado pelo próprio Estado. A cada sete horas uma mulher é vítima de feminicídio. A cada dez minutos um estupro acontece. Essa triste estatística mostra que tragédias como essa não são exceção. São parte de uma política de submissão dos nossos corpos, do nosso suor e da nossa consciência. Uma morte desta forma, tão absurda e antinatural deve nos fazer levantar com tamanha indignação e gritar por justiça. Não podemos ser vítimas silenciosas da opressão e exploração da sociedade sobre as mulheres. Nosso ódio precisa ser o combustível para organizar nossa luta. Se Carolina não foi a primeira mulher a sofrer feminicídio, exigimos que seja última”.
Nesse contexto social, cujas relações cotidianas são marcadas pelo culto à violência e à morte para dirimir conflitos, a ignorância, a estupidez e a força bruta desfilam seu desatino com a arrogância típica da “gente de bem” que se sente em luta “contra o mal” fazendo-o, paradoxalmente, em nome da liberdade, justamente a sua primeira vítima. A ignorância destrói a liberdade supondo defendê-la.
A “Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde”, que se inicia no Dia Mundial da Saúde, é oportunidade valiosa para aprofundar a nossa compreensão de que a banalização da violência significa uma grave ameaça à saúde. Esta, como sinônimo de bem-viver, aponta em outra direção e indica o rumo da vida plena para todo mundo.
Por isso, toda força à Frente pela Vida e que a Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde indique o melhor rumo para que o Brasil possa garantir a manutenção e o aprofundamento da nossa ainda frágil democracia e, também, para o fortalecimento do SUS.
A democracia precisa do SUS e o SUS precisa da democracia. Ambos, SUS e democracia precisam da força e do empenho da cidadania organizada, participando ativamente nas entidades e movimentos sociais, para conter a banalização da violência e deter todos que a promovem.
*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP.