Friedrich Engels e o desenvolvimento do marxismo

Imagem: Gül Işık
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MICHEL GOULART DA SILVA*

Engels contribuiu de forma decisiva para as formulações iniciais do materialismo histórico e dialético

1.

Friedrich Engels, em parceria com Karl Marx, foi o responsável por sistematizar filosófica, política e taticamente as ferramentas que os trabalhadores poderiam manejar para compreender a realidade da sociedade capitalista e, com isso, fazer a revolução. Essa elaboração se deu por meio da superação dialética da filosofia idealista alemã e do socialismo utópico, procurando se constituir na expressão teórica e política dos trabalhadores organizados em luta.

Vladímir Lênin, que definiu Friedrich Engels como o “mestre do proletariado contemporâneo”, dizia, em 1895: “Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe operária e as suas reivindicações são um produto necessário do regime econômico atual que, juntamente com a burguesia, cria e organiza inevitavelmente o proletariado; demonstraram que não são as tentativas bem-intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado. Marx e Engels foram os primeiros a explicar, nas suas obras científicas, que o socialismo não é uma invenção de sonhadores, mas o objetivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade atual”.[i]

Embora muitos dos textos mais conhecidos sejam aqueles que escreveu com Marx, como A ideologia alemã (1846) e o Manifesto do partido comunista (1848), Friedrich Engels contribuiu de forma decisiva para as formulações iniciais do materialismo histórico e dialético. Possivelmente seu escrito mais importante na juventude tenha sido A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845).

Nessa obra Friedrich Engels realiza um detalhado estudo sobre as condições dos operários na Inglaterra, mostrando as construções do processo de transformação social conhecido como revolução industrial. Engels afirma que “na medida em que a indústria e o comércio se desenvolvem nas grandes cidades do modo mais completo, é exatamente nelas que emergem, de forma mais nítida e clara, as consequências de um tal desenvolvimento sobre o proletariado”.[ii] Em função disso, segundo Friedrich Engels, nas grandes cidades existe apenas “uma classe rica e uma classe pobre, desaparecendo dia a dia a pequena burguesia”.[iii]

Um fator que chama a atenção nessa obra de Friedrich Engels é a cuidadosa análise das fontes – orais e impressas – utilizadas, mostrando a preocupação com a análise cuidadosa da realidade, fundamental no desenvolvimento do materialismo histórico. Friedrich Engels afirmou, em certo momento desse estudo sobre o operariado da Inglaterra, que “o conhecimento das condições de vida do proletariado é, pois, imprescindível para, de um lado, fundamentar com solidez as teorias socialistas e, de outro, embasar os juízos sobre a sua legitimidade”.[iv]

Mesmo em seu período de formação política e teórica, Friedrich Engels já mostrava a clareza de que não devia partir de ideias abstratas, como o faziam os filósofos idealistas, mas da realidade concreta em que estavam inseridos os trabalhadores.

2.

Outro aspecto destacável nessa fase de formação de Friedrich Engels está no fato de que, mesmo sem utilizá-los de forma plena e desenvolvida, alguns dos principais conceitos da crítica da economia política aparecem no artigo “Esboço de uma crítica da economia política”. Karl Marx se referiu a esse texto como um “genial esboço de uma crítica das categorias econômicas”.[v]

Publicado em fevereiro de 1844, Friedrich Engels apresenta embrionariamente alguns apontamentos que foram posteriormente desenvolvidos por Karl Marx em O capital (1867). Nesse texto, Engels apresenta seus objetivos: “ao criticarmos a economia política, portanto, examinaremos as categorias fundamentais, revelaremos a contradição trazida pelo sistema de livre comércio e traçaremos as consequências de ambos os lados da contradição”.[vi]

Nesse esboço está presente tanto ideia de crítica da economia política como uma compreensão dialética da dinâmica do capitalismo. Essa relação com as contribuições desenvolvidas em período posterior por Marx pode ser percebida também quando Engels discute o conceito de valor em sua obra de juventude. Friedrich Engels afirma: “O valor é a razão entre custos de produção e utilidade. A aplicação mais precisa do valor é a decisão sobre se alguma coisa deve ser produzida, ou seja, se a utilidade compensa os custos de produção. Somente então se pode discutir a aplicação do valor para a troca. Uma vez equiparados os cursos de produção de duas coisas, a utilidade será o fator decisivo para determinar seu valor comparativo”.[vii]

Estão aqui esboçadas, ainda a serem lapidadas, a ideia de valor de uso e valor de troca. Outro exemplo da contribuição de Friedrich Engels se encontra na passagem em que discute preço, apresentado como equivalente monetário do valor: “A diferença entre valor real e valor de troca é baseada em um fato – a saber, que o valor de uma coisa é diferente do chamado equivalente dado a ela no comércio, ou seja, que esse equivalente não é equivalente. Esse chamado equivalente é o preço da coisa e, se o economista fosse honesto, ele usaria a palavra ‘valor comercial’. No entanto, ele ainda precisa manter certa aparência de que o preço está de alguma forma relacionado ao valor, para que a antieticidade do comércio não venha à tona”.[viii]

3.

Embora aqui estejam algumas limitações, que posteriormente foram resolvidas, como a questão de uma compreensão moral das formas capitalistas, esse texto mostra o papel fundamental de Friedrich Engels no desenvolvimento do materialismo histórico. Essa colaboração também se observa na elaboração de obras de caráter histórico e político, escritas nas décadas seguintes, intercaladas na intensa atividade política de Engels.

Essas obras são, entre outras, As guerras camponesas na Alemanha (1850) e Revolução e contrarrevolução na Alemanha (1851), bem como a textos de polêmica com outras correntes que atuavam no movimento operário, como Sobre a questão da moradia (1872), um embate com Pierre-Joseph Proudhon, e Os bakuninistas em ação (1873), sobre atuação de uma das mais proeminentes correntes do anarquismo. Nesse período também produziu com Marx uma série de artigos jornalísticos fundamentais para compreender a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865).

Friedrich Engels também produziu um conjunto de reflexões sobre o desenvolvimento dos diversos campos do conhecimento científico, diante dos seus gigantescos avanços no século XIX, mostrando o materialismo dialético como parte desse processo. Na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico (1880), Engels afirma: “o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas”.[ix]

O tema é retomado, a partir de uma perspectiva diferente, em outras obras, das quais uma das mais conhecidas é o livro Dialética da natureza (1883). Nessa obra, nas primeiras linhas do prefácio, Engels afirma: “A moderna investigação da Natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as geniais intuições filosófico-naturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e em sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes”.[x]

Na mesma obra, Friedrich Engels relaciona o desenvolvimento do conhecimento científico à dialética, em sua forma moderna, sistematizada por Hegel. Engels afirma que as leis da dialética são “extraídas da história da natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são elas outras senão as leis mais gerais de ambas as fases do desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano”.[xi] Nessa obra, Friedrich Engels também enfatiza a importância da compreensão dialética para no desenvolvimento, afirmando que os cientistas “acreditam que se libertam da filosofia, ignorando-a ou insultando-a. No entanto, não podem fazer progresso algum sem pensar; e, para pensar, necessitam de certas determinações mentais”.[xii]

Friedrich Engels também demonstra o desenvolvimento do socialismo moderno como parte desse processo, bem como sua relação com as revoluções burguesas ocorridas nos séculos XVIII e XIX. No começo do livro Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels afirma: “O socialismo moderno é, em primeiro lugar, por seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, por um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, por outro lado, da anarquia que reina na produção. Pela sua forma teórica, porém, o socialismo a apresentar-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais consequente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos fatos materiais econômicos, teve de ligar-se, ao nascer, às ideias existentes”.[xiii]

A expressão teórica desse processo encontra seu ponto mais elevado no socialismo desenvolvido por Marx e Engels, síntese dialética entre a prática de luta dos trabalhadores e sua expressão científica. Entende-se, assim, com Engels, que “as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata”.[xiv]

O legado da trajetória de Friedrich Engels mostra, por um lado, a necessidade de usar o que há de melhor do arsenal teórico e científico para compreender a realidade a ser transformada, e, por outro, de lutar pela organização do partido revolucionário dos trabalhadores. O conjunto de suas formulações teóricas, construídas em parceria com Marx, procuraram dotar os trabalhadores da ferramenta para derrubar o capitalismo e lutar por uma sociedade socialista.

*Michel Goulart da Silva é doutor em história pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e técnico-administrativo no Instituto Federal Catarinense (IFC).

Notas


[i] Vladímir Ilitch Lénine. Friedrich Engels. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, vol. 1, p. 9.

[ii] Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 65.

[iii] Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 65.

[iv] Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 41.

[v] Karl Marx. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 49.

[vi] Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 164.

[vii] Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 168.

[viii] Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 169.

[ix] Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Centauro, 2005, p. 64.

[x] Friedrich Engels. A dialética da natureza. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 15.

[xi] Friedrich Engels. A dialética da natureza. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 34.

[xii] Friedrich Engels. A dialética da natureza. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 147.

[xiii] Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Centauro, 2005, p. 39.

[xiv] Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. São Paulo: Centauro, 2005, p. 69.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Visited 1 times, 1 visit(s) today
Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________

Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES

Assine nossa newsletter!
Receba um resumo dos artigos

direto em seu email!