Furos no Pé-de-Meia

Imagem: Steve Johnson
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Por WELLINGTON OLIVEIRA DOS SANTOS*

Uma análise crítica do programa “Pé-de-Meia Licenciaturas” do governo Lula III

1.

Em uma pesquisa realizada em 2024 sobre os principais problemas enfrentados pelo Brasil,[i] a educação foi apontada como a sexta maior preocupação da população, mencionada por 8% dos entrevistados. Esse percentual situa-se abaixo de outras questões como economia (21%), violência (19%), questões sociais relacionadas à fome, miséria, população em situação de rua e pobreza extrema (18%), saúde (15%) e corrupção (12%).

Como pesquisadores no campo das políticas educacionais, em particular as políticas de ações afirmativas, ousamos interpretar os resultados da pesquisa – realizada poucos meses antes das eleições municipais do mesmo ano – como exemplos da conjunção concessiva “embora”: “embora” a população brasileira reconheça a relevância da educação para o futuro do país, sua importância é frequentemente relegada a um segundo plano, sendo lembrada apenas quando os desafios sociais emergem de maneira mais acentuada, quase como um remendo.

Essa mania de postergar a educação se reflete na formulação de políticas públicas ao longo da história brasileira. E o atual mandato de Luís Inácio Lula da Silva, o Lula III (2023-2026), apesar das promessas de campanha, tende a seguir a mesma caminhada. No documento “Carta para o Brasil do Amanhã,[ii]” divulgado durante a campanha presidencial de 2022, entre as 13 propostas de governo, educação aparece na quarta posição. Além disso, medidas recentes, como o corte de gastos da educação,[iii] justificado para cumprir o teto de gastos, assim como o embate do governo com os técnicos administrativos em educação e com os professores universitários durante a greve de 2024, sugerem que até mesmo as promessas mais gerais do documento no campo educacional estão em risco de não serem implementadas.

Neste artigo, de forma sucinta, teceremos reflexões sobre uma das recentes propostas governamentais no campo educacional: a valorização da formação docente por meio do programa Pé-de-Meia Licenciaturas.

2.

O Pé-de-Meia Licenciaturas integra o programa Mais Professores, lançado em 2025 com o objetivo de promover a valorização e qualificação do magistério da Educação Básica. Suas metas principais incluem atrair estudantes com alto desempenho acadêmico para a carreira docente; reduzir a evasão nos cursos de licenciatura; incentivar o ingresso dos licenciados na rede pública de ensino.

Para tanto, o programa prevê a concessão de bolsas no valor de R$1.050, dos quais R$700 são disponibilizados mensalmente, enquanto R$350 são adicionados a uma poupança a ser resgatada ao final do curso, mediante o cumprimento de critérios básicos.

As justificativas para o Pé-de-Meia Licenciaturas são diversas e coerentes. Um dos fatores determinantes é a previsão de um possível “apagão de professores” nas próximas décadas,[iv] resultado da baixa procura de estudantes pelos cursos de licenciatura e da elevada taxa de evasão de 58%. Esse déficit docente é mais acentuado nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, em disciplinas como Matemática, Biologia, Física e Química.

Outro elemento relevante é a expansão descontrolada dos cursos de licenciatura na modalidade Educação à Distância (EaD): segundo o Censo da Educação Superior de 2023, mais de 67% dos estudantes das licenciaturas estavam matriculados em cursos EaD,[v] comprometendo a qualidade da formação docente. Em resposta a essa realidade, o Ministério da Educação (MEC) modificou o formato desses cursos para incluírem, no mínimo, 50% de carga horária presencial a partir de 2025.

Outra justificativa diz respeito ao perfil dos ingressantes nos cursos de licenciatura, que historicamente apresentam desempenho inferior à média dos concluintes do Ensino Médio, optando por essa formação em razão da menor exigência para o ingresso.[vi] Além disso, há uma relação entre a qualidade dos professores e desempenho dos estudantes da Educação Básica[vii]: no Ensino Fundamental, 57,8% do desempenho dos estudantes depende do professor, enquanto que no Ensino Médio essa influência corresponde a 36%. Diante disso, a exigência de uma pontuação mínima de 650 pontos na prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para concorrer à bolsa, visando atrair os estudantes com melhor desempenho acadêmico, na tentativa de qualificar o ingresso na docência.

Apesar das boas intenções, uma análise da divulgação oficial do programa, e mesmo do primeiro edital,[viii] e da portaria que o complementa,[ix] revela que o mesmo nasceu com alguns furos. Elencamos os que julgamos mais relevantes a seguir.

3.

Primeiro furo. Onde estão as ações afirmativas com reserva de bolsas para estudantes negros, de escola pública, baixa renda, com deficiência, entre outros? Não encontramos no primeiro edital, e consideramos esse o maior furo do programa, daqueles capazes de comprometer toda caminhada.

A nota de corte 650 pontos, introduzida para selecionar estudantes de “alto desempenho”, segrega os estudantes que têm as piores médias no ENEM, os negros, de baixa renda e de escolas pública.[x] Para usar um conceito criado por Silva (2012)[xi] na análise da produção discursiva brasileira, o edital silencia diante das desigualdades sociais que, contraditoriamente, fazem parte do contexto que gerou sua criação.

O discurso do mérito, implícito na escolha da nota de corte, pode resultar no fortalecimento de desigualdades materiais entre os estudantes de licenciatura: se apenas os estudantes com notas acima de 650 pontos receberão a bolsa, e considerando que a maior parte dos estudantes com notas altas no ENEM possuem renda no mínimo média, são brancos e de escolas particulares, o programa corre o risco de conceder bolsas para quem pouco necessita.

Segundo furo. Somente serão oferecidas 12 mil bolsas, a serem disputadas entre os estudantes do Sistema de Seleção Unificada SiSU (de instituições públicas); no caso de vagas remanescentes, elas serão destinadas aos estudantes do Prouni e Fies. Pouco. De acordo com os dados do MEC, graças ao Pé-de-Meia Licenciaturas, a procura por cursos de licenciatura via SiSU 2025 aumentou 23,36%[xii]: foram 66.282 aprovados no SiSU licenciatura presencial, o que corresponde a 12.550 estudantes a mais que no ano anterior.

Importante aumento, mas ainda pequeno, se considerarmos a quantidade de estudantes de licenciatura que não tem nota para conseguir a bolsa: somente 12.473 foram considerados elegíveis (nota acima de 650 pontos). Ainda não sabemos, entre esses elegíveis, quais realmente se matricularão em licenciaturas; em todo caso, ainda que todos os elegíveis sigam a opção da licenciatura, o que fazer com os que não conseguiram a nota de corte e que provavelmente são os que mais precisam da bolsa? 

Terceiro furo. O edital não diz quais serão os cursos contemplados e nem como será feita a divisão de bolsas, o que pode gerar dificuldades para os estudantes que optarem pela licenciatura contando com o recurso. Por exemplo, de acordo com o Censo Educação Superior de 2023 os cursos de Pedagogia têm o maior número de matrículas entre os cursos de graduação,[xiii] considerando as modalidades presencial e EaD; e mais da metade dos estudantes em cursos de licenciatura estão matriculados em cursos de Pedagogia.

Mas o curso de Pedagogia forma docentes principalmente para a Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental, enquanto que o “apagão de professores” diz respeito à falta de docentes com formação específica em disciplinas dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, como Matemática. A pergunta: a distribuição de bolsas terá foco nos cursos de baixa demanda ou independente disso?

A resposta para essa pergunta tem relação direta com os problemas que levantamos no “primeiro furo”: caso as bolsas sejam destinadas aos cursos de baixa demanda, o curso de Pedagogia receberá poucas, mesmo contando com a maioria dos estudantes de licenciatura, mulheres com perfil de baixa renda. De qual lado será feito o remendo?

Quarto furo. De acordo com o edital, são as instituições de Ensino Superior (IES) as responsáveis pelo acompanhamento acadêmico dos estudantes bolsistas, cancelando ou suspendendo as bolsas junto à Capes. Ao criar mais uma demanda para as IES (como se não bastasse a falta de servidores técnico administrativos nas IES federais…), o governo também cria uma relação de vigilância entre os estudantes e docentes, uma vez que os últimos provavelmente serão cobrados a evitarem notas ruins aos estudantes bolsistas, algo que já acontece com a busca de índices de aprovação nas escolas de Ensino Médio. Então não seria melhor fornecer bolsa permanência para todos os estudantes em condições de vulnerabilidade, independente da nota do ENEM ou do desempenho acadêmico, assim como ocorre no Pé-de-Meia do Ensino Médio?

Quinto furo. Para manter a bolsa, o estudante deve manter matrícula ativa, desempenho satisfatório e participar de avaliações promovidas pela CAPES. Mas o edital não especifica se os estudantes, em caso de desistência, serão obrigados a ressarcir os valores recebidos ao longo da graduação.

4.

Os furos identificados ao longo desta análise, em sua maioria, ainda podem ser solucionados, considerando que o edital permite contestações até 26 de março de 2025. Nossa intenção, neste texto, foi contribuir para uma reflexão preliminar sobre os limites das políticas públicas pensadas sem considerações sobre as desigualdades estruturais que fazem parte do nosso tecido social.

Experiências internacionais em países com alto desempenho em avaliações educacionais indicam que a atratividade da carreira docente, aliada a critérios rigorosos de ingresso e formação, exerce impacto direto na qualidade do ensino e no desempenho dos estudantes[xiv]. Neste sentido, o caráter emergencial da bolsa Pé-de-Meia Licenciaturas não substitui reformas estruturais para a valorização do magistério, como o efetivo cumprimento do piso salarial docente (e posterior aumento); a ampliação da hora-atividade; a diminuição do número de estudantes por turma; o acompanhamento de equipe multidisciplinar para garantir a inclusão dos estudantes com deficiência; a criação de vínculos entre a escola e a família, etc.

Todas essas medidas exigem investimentos pesados da União, estados e municípios. No entanto, em um cenário em que o governo mal consegue garantir bolsas para todos os estudantes das licenciaturas, o passo decisivo para uma educação de qualidade está longe da realidade.

*Wellington Oliveira dos Santos é professor do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Notas


[i] Disponível aqui.

[ii] Disponível aqui.

[iii] Disponível aqui.

[iv] Disponível aqui.

[v] Disponível aqui.

[vi] Disponível aqui.

[vii] Disponível aqui.

[viii] Disponível aqui.

[ix] Disponível aqui.

[x] Disponível aqui.

[xi] Disponível aqui.

[xii] Disponível aqui.

[xiii] Disponível aqui.

[xiv] Disponível aqui.


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