O massacre de Gaza – uma hipótese possível

Imagem: Ready Made
image_pdf

Por JOSÉ LUÍS FIORI*

As possibilidades na Palestina são múltiplas, mas quase todas as alternativas apontam para a continuação dos bombardeiros e do “genocídio aéreo” da população da Faixa de Gaza

Depois de três meses de bombardeio continuado da Faixa de Gaza pelas tropas de Israel, os números redondos são assustadores: 24.210 palestinos mortos, sete mil desparecidos, 60 mil feridos ou mutilados, e cerca de 1,5 milhão de desabrigados, sendo 80% dos mortos e feridos, mulheres e crianças. E mais assustador ainda é a decisão do governo de Benjamin Netanyahu de seguir em frente com esse bombardeio implacável, até a eliminação completa do Hamas.

Existem, no entanto, vários pontos nesta narrativa que não são consistentes e não parecem fechar. O primeiro e mais importante é a desproporção entre a destruição indiscriminada e massiva de Gaza, que está sendo levada a cabo, e o objetivo de acabar com o Hamas. Mais ainda quando as autoridades israelitas sabem que é tecnicamente impossível acabar com o movimento palestino, inclusive porque a selvageria dos bombardeios tem aumentado o apoio da população e a simpatia da juventude de Gaza pela sua organização guerrilheira.

O segundo ponto é que as autoridades israelenses já devem ter percebido que o apoio da comunidade internacional que simpatizou incialmente com sua causa é cada vez menor, e que o isolamento de Israel é cada vez maior, o que pode vir a ser um problema sério para sua própria sobrevivência. Neste sentido, a denúncia de Israel, pela África do Sul, à Corte Internacional de Haia, pelo crime de “genocídio do povo palestino”, está repercutindo e sintetizando, neste momento, um sentimento cada vez mais generalizado de toda a humanidade.

Basta acompanhar as sucessivas votações do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas, sobre o cessar-fogo em Gaza, ou sobre os direitos palestinos, para avaliar o quão isolados se encontram Israel e seu principal avalista, os Estados Unidos. Chama atenção, por exemplo, a última votação da Assembleia Geral, no dia 19 de dezembro de 2023, de uma moção em defesa do “direito de autodeterminação do povo palestino”, cujo resultado foi aplastante: 172 votos a favor, 10 abstenções e quatro votos contra – de Israel, Nauru, Micronésia e Estados Unidos. A própria posição dos Estados Unidos, neste sentido, está ficando cada vez mais insustentável do ponto de vista da “ordem mundial baseada em regras” defendida pelos norte-americanos.

Quando se olha para este quadro, a primeira impressão que se tem é de uma vingança irracional, movida pelo ódio e pelo fanatismo religioso.[i] Mas é difícil imaginar que esta seja também a motivação dos Estados Unidos e de alguns países europeus que vêm apoiando a estratégia de extermínio de Gaza. Por isso mesmo, um número cada vez maior de analistas internacionais vem sustentando a hipótese de que este conflito tenha sido induzido para facilitar a realização de objetivos que vão muito além da própria Faixa de Gaza.

Daí, talvez, a comparação que costuma fazer o primeiro-ministro israelense entre o 8 de outubro de 2023 e o 11 de setembro de 2001. Nas duas ocasiões, algum tipo de conspiração dos homens ou do acaso teria permitido levar à frente uma reação e uma estratégia que já vinham sendo concebidas e preparadas há muito tempo. No caso dos Estados Unidos, o objetivo seria a expansão do seu poder global através de uma guerra universal ao terrorismo liderada por eles próprios. E no caso do 8 de outubro, o objetivo israelense seria reconfigurar a geopolítica do Oriente Médio, com a destruição do Hezbollah e o ataque contra as capacidades militares e atômicas do Irã. Um ataque que já vem sendo preparado há muitos anos, mas que até hoje ainda não contou com o apoio dos Estados Unidos.

Se isto não for inteiramente verdadeiro, pelo menos faz mais sentido do que acreditar que a destruição de Gaza esteja sendo feita por obra apenas de uma vingança, ou como maneira de acabar com o Hamas. Quando se pensa assim, inclusive, consegue-se entender melhor por que foi ordenada a saída recente de alguns batalhões israelenses da Faixa de Gaza, que estariam sendo deslocados, de fato, para prováveis novas frentes de luta. Como também faria mais sentido a sucessão de atentados e assassinatos individuais, nos últimos dias, de alguns líderes importantes do Hamas e do Hezbollah, cometidos de forma concentrada e sucessiva, no Líbano, na Síria, no Iraque e até mesmo dentro do território do Irã.

Atentados cometidos de forma simultânea ao deslocamento das tropas israelenses de Gaza, e com uma série de entrevistas extremamente provocadoras concedidas pelos ministros mais à direita do governo Benjamin Netanyahu, propondo a expulsão dos palestinos da sua própria terra. À primeira vista, poderiam parecer atos separados e desconectados, mas a simultaneidade dos fatos e a sucessão das declarações das autoridades judaicas, e dos ataques e lugares escolhidos, sugerem uma forte “afinidade eletiva” com a hipótese de uma “provocação intencional” em busca de uma reposta violenta que poderia mobilizar o apoio dos Estados Unidos para a ampliação da guerra, com sua permissão a um ataque massivo israelense contra o Líbano e o Irã.

De qualquer maneira, se esta hipótese for verdadeira e este tiver sido o objetivo último de Benjamin Netanyahu, parece que algo inesperado surgiu no caminho: a queda da popularidade do presidente norte-americano, Joe Biden, que pretende se reeleger em 2024 e percebe que está perdendo o apoio de setores significativos de seu eleitorado, graças ao seu posicionamento incondicional ao lado de Israel.

Assim mesmo, tudo indica que o governo israelense já está refazendo seus cálculos, ao compreender que a continuação desta guerra de extermínio pode ajudar a eleição de Donald Trump, e a eleição de Donald Trump, poderia ser a “tábua de salvação” de Benjamin Netanyahu e de seu governo, e talvez inclusive do seu projeto – há tanto tempo acalentado – de atacar e destruir a capacidade militar do Irã. Um governo, aliás, que já estava sob a ameaça de destituição antes de 8 de outubro de 2023, quando ocorreu o “incompreensível apagão”’ do sistema de informação de Israel, considerado um dos melhores sistemas de informação do mundo.

De qualquer forma, seja qual for a interpretação correta dos acontecimentos, uma coisa é certa: neste momento, o quadro está em aberto e as possibilidades são múltiplas, mas quase todas as alternativas apontam para a continuação dos bombardeiros e do “genocídio aéreo” da população palestina da Faixa de Gaza. A menos que os Estados Unidos decidam derrubar o governo de Benjamin Netanyahu.

*José Luís Fiori é professor emérito da UFRJ. Autor, entre outros livros, de O poder global e a nova geopolítica das nações (Boitempo) [https://amzn.to/3RgUPN3]

Publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, n°. 3.

Nota


[i] “Eis o dia de Javé, que vem implacável, e com ele o furor ardente da ira, reduzindo a terra a desolação e extirpando dela os pescadores…Todo aquele que for encontrado será trespassado; todo aquele que for apanhado cairá à espada. As tuas crianças serão despedaçadas sob os seus olhos, as suas casas serão saqueadas e as suas mulheres violentadas…Os arcos prostrarão os meninos; eles não terão pena das criancinhas, os seus olhos não pouparão os filhinhos. Assim a Babilônia, a pérola dentre os reinos, o adorno e o orgulho dos caldeus serão como Sodoma e como Gomorra que foram reduzidos a ruína por Deus” Isaías, 13-14, Bíblia de Jerusalem, Edições Paulinas, São Paulo, 1980, p: 1381.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES