Por FLÁVIO AGUIAR*
Se a mídia tradicional brasileira está cheia de vira-latas subservientes ao império, a alemã revelou-se cheia de cães pastores prontos para rosnar e morder em nome da impunidade de qualquer governo israelense
“Muera la inteligencia! Viva la muerte!”
(frase atribuída ao General falangista José Millán-Astray y Terreros, por ocasião do “Dia de la Raza”, 12 de outubro de 1936, perante o reitor da Universidade de Salamanca, Miguel de Unamuno).
Muito se debate e vai se debater sobre a declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamando de “genocídio” o que o governo e as forças armadas de Israel vêm fazendo na Faixa de Gaza em relação ao povo palestino e equiparando esta ação ao que Hitler fez com os judeus durante o regime nazista. As direitas condenam a fala do presidente. As esquerdas apoiam a fala do presidente. Adianto que me situo neste campo e nesta concordância. E também adianto que nem por isto deixo de considerar o ataque promovido pelo Hamas contra civis israelenses em 7 de outubro um ato terrorista abominável, e da mesma forma aquela minha concordância não me torna um antissemita, assim como também o presidente Lula não o é.
Isto posto, passemos ao que pretendo abordar neste artigo. Junto com o genocídio promovido pelo governo israelense em relação ao povo palestino em Gaza, como desdobramento de sua política de apartheid agravada pelo governo de ultradireita liderado por Benjamin Netanyahu, está havendo em torno desta conjuntura um verdadeiro genocídio da inteligência, com alguns dos argumentos lançados na arena do debate.
Este segundo genocídio começa pela negação de que o governo de Benjamin Netanyahu esteja cometendo o primeiro. Claro: há uma discussão jurídica sobre a aplicação ao caso deste conceito; deixo-a para a vara competente, isto é, o Tribunal de Haia, onde a questão foi depositada pelo governo sul-africano, com o devido apoio do governo brasileiro, além de outros.
Há, porém, uma questão ética ligada ao conceito de genocídio. Para mim, no caso nazista, o genocídio do povo judeu começou antes do Holocausto propriamente dito. Ele começou quando os nazistas negaram ao povo judeu o reconhecimento de sua condição humana. Passaram a tratá-lo como um objeto, ao invés de um sujeito. Os objetos não têm direitos; são tratados de acordo com a conveniência de quem os possui ou administra. Podem ser mantidos, deslocados, destruídos no todo ou em parte de acordo com aquela conveniência.
Os objetos podem ser vivos, como um rebanho de animais. É o dono ou administrador que decide se o rebanho come, o que come, bebe, quando come e bebe, ou se fica privado destas e de outras benesses como eletricidade, remédios e abrigo, se deve mudar de prado e, no limite, se deve ser eliminado. Às vezes esta medida extrema pode ser empregada, no caso de um vírus ameaçador tomar conta do rebanho ou de parte dele, como no caso de uma aftosa ou uma gripe aviária.
É assim que o governo e as forças armadas de Israel vêm tratando os palestinos. O Hamas é visto como um vírus; é necessário eliminá-lo. Se umas tantas peças do rebanho tiverem de ser eliminadas para eliminar o vírus, que assim seja. Como Hitler em relação aos judeus no passado, as autoridades de Tel Aviv vêm tratando desta forma os palestinos, negando-se a reconhecer a sua condição humana, o que é o primeira passo para o genocídio. Negar a existência desta negação é um atentado à inteligência.
Passemos a um outro atentado. Viralizou um vídeo mostrando uma senhora bolsonárea na avenida Paulista, com um olhar de poucos amigos, afirmando que apoia Israel “porque eles são cristãos que nem nós”, ou algo parecido. Só dizendo: pelas barbas do Profeta, e de Cristo também! Santa Ignorância! O curioso é que por trás de uma afirmação tão idiota quanto esta pode jazer uma frisa antissemita, pois nega aos judeus a sua forma mais caraterística de religiosidade. E sabe-se que uma versão deste evangelismo maligno prega que um dos sinais do “fim dos tempos”, ou do “Juízo Final”, será a conversão passiva dos judeus ao cristianismo! Melhor ou pior antissemitismo é impossível.
Mas há uma contrapartida a esta estupidez, e mais do lado de cá do que de lá. Tenho lido com frequência que os evangélicos são estúpidos ao defender os judeus, porque eles não só não são cristãos, mas “preferiram Barrabás a Cristo”! Esta é uma leitura inteiramente literal do Novo Testamento, tomando-o como fonte quase jornalística de fatos históricos ao invés de uma narrativa doutrinária. Até aí vai o direito a uma escolha por parte de quem lê tais textos. Acontece que subjaz a esta versão, aplicada ao contexto de hoje, a ideia de que os judeus – todos os judeus – são “os assassinos de Cristo”. Esta era uma das bases mais fortes do antissemitismo medieval e renascentista, que tinha por base a religião; os judeus foram considerados uma “raça inferior”, não digna da condição humana, apenas a partir do final do século XIX.
Outra falácia que navega nesta mesma esteira é a de que todo sionista é necessariamente fascista, racista, colonialista. Não há dúvida de que muitos assim são; nem que o sionismo hoje em dia foi apropriado por uma direita da pior espécie, assim como a camiseta canarinho e a bandeira brasileira o foram pelo bolsonarismo galopante até há pouco. Mas historicamente o sionismo atraiu muita gente de esquerda que via no kibutz o embrião de uma sociedade socialista. Muitos foram para lá e voltaram decepcionados para suas terras de origem. Outros por lá ficaram e viveram suas crenças até o fim, alguns, e não poucos, se esforçando por criar movimentos comuns de palestinos e judeus em favor de uma sociedade anti-apartheid.
Passemos adiante. Israel Katz, o ministro de Relações Exteriores de Tel Aviv cometeu um genocídio diplomático ao tentar humilhar o embaixador brasileiro chamando-o ao Museu do Holocausto para fazer-lhe uma preleção em hebraico, diante da imprensa e sem intérprete, depois da declaração do presidente Lula. Isto não se faz. É mais do que uma quebra do protocolo; é um insulto pessoal ao diplomata e coletivo ao povo que ele representa. E cometeu novo genocídio diplomático ao divulgar cenas da manifestação bolsonarista em São Paulo dizendo que “ninguém (leia-se o presidente Lula) iria separar os dois povos”.
Agora vamos ao coração da coisa. É um agravo à inteligência a alegação do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, do governo israelense, dos serviços secretos, policiais e militares de Israel de que “desconheciam” os planos do Hamas para a ação terrorista do dia 7 de outubro. Esta ação foi planejada durante meses; o serviço secreto egípcio detectou tal preparação e afirma que avisou Tel Aviv, que nega ter recebido tal denúncia.
Seja qual for o ângulo de abordagem, o atentado à inteligência é grave. Como um serviço secreto que se infiltra onde quer, que assassina ou sequestra quem quer e quando quer, impunemente, não percebeu que algo estava em preparo? Talvez por eu ter lido romances do John Le Carré demais, acho isto impossível. Se aconteceu, a negligência foi criminosa.
Se o serviço secreto percebeu algo e não agiu de acordo, ou não alertou o governo, o crime se agrava. Se alertou, o crime passa envolver o governo, e passa a ser hediondo, pois subestimaram o que o Hamas poderia fazer. Há ainda uma suspeita pior, mais hedionda: deixaram acontecer, errando no cálculo do que viria a ser feito. O fato é que a ação do Hamas deu novo alento ao acuado governo de Netanyahu e sua extrema direita feroz. Este governo depende agora da extensão desta carnificina que eles chamam de “guerra”.
Para finalizar, devo dar uma volta pela Alemanha. Já havia no país uma forte intolerância devido à guerra na Ucrânia. Para muita gente e grande parte da mídia criticar Volodymyr Zelensky, os nazis entrincheirados nas forças armadas ucranianas, ou pedir a paz eram gestos de apoio automático à invasão russa e a Vladimir Putin. O ataque do Hamas e a carnificina israelense promovida em Gaza pioraram a situação.
Há uma lei aprovada no Parlamento Federal que considera a defesa de Israel uma “Razão de Estado” alemã. Este verdadeiro muro de arrimo provocou uma série de censuras e atitudes coercitivas contra artistas e intelectuais – inclusive muitos judeus e judias – que se ergueram em favor dos direitos do palestinos, do cessar-fogo, da paz, denunciando a violência desproporcional mobilizada contra os habitantes da Faixa de Gaza e da Cisjordânia ilegalmente ocupada e colonizada. Exposições e prêmios foram cancelados, convites foram suspensos e criou-se um clima pesado contra manifestações públicas pró-palestinos. Parece que defender os palestinos é automaticamente defender o Hamas.
A última ocorrência dessa intolerância atingiu o Festival Internacional de Cinema de Berlim, a Berlinale. Houve várias manifestações pelo cessar-fogo, pela paz e pelos direitos dos palestinos. O documentário No Other Land, dirigido a oito mãos por um coletivo de dois palestinos, um e uma israelenses, foi o vencedor nesta categoria. Em seus discursos, dois dos cineastas, o palestino Basel Adra e o israelense Yuval Abraham, representado o coletivo, criticaram as ações do governo israelense.
Tais manifestações e o prêmio ao documentário desencadearam uma devastadora tsunami de críticas ao festival na mídia e nos meios políticos alemães. Fala-se em coibir tal tipo de manifestação, e mudar o estatuto do festival (o que, se acontecer, vai sufocar e desossar a Berlinale). Um político do campo conservador chegou a sugerir que alguém deveria ter interrompido na hora tais discursos, calando os oradores.
Se a mídia tradicional brasileira está cheia de vira-latas subservientes ao império, a alemã revelou-se cheia de cães pastores prontos para rosnar e morder em nome da impunidade de qualquer governo israelense. Há quem explique tal ardor argumentando que a existência de Israel cria um sentimento de absolvição nas novas gerações em relação ao que seus antepassados fizeram com os judeus. Assim, qualquer coisa que macule tal relicário é percebida como uma grave ameaça psicológica. Há quem seja mais pragmático e veja nisso apenas o afã de agradar ao establishment e preservar verbas de apoio a eventos culturais ou publicitárias etc. Talvez valham ambas as ordens de motivos. Vá se saber.
Mas a nota de honra de tais agravos à inteligência ficou por conta da ministra da Cultura, a verde e usualmente progressista Claudia Roth. Acuada pelas críticas que lhe foram dirigidas na mídia por ter aplaudido aqueles cineastas vencedores, ela alegou que, na verdade, só aplaudira o israelense, não o palestino. Fica por esclarecer como ela conseguiu executar a proeza de aplaudir apenas a metade de algo. Bem, talvez ela tenha aplaudido com uma mão só.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo). [https://amzn.to/48UDikx]
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