As guerras culturais da esquerda

Georges Demeny (1850–1917), Esgrimista, Fotografia, 1906.
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Por IGNACIO SÁNCHEZ-CUENCA*

O mundo que nos coube viver.

1.

A tradição de esquerda sempre se caracterizou por um questionamento interno de suas estratégias e objetivos intermediários (os ideais últimos são sagrados e irrenunciáveis). Suas controvérsias foram motivo de confrontos e divisões ao longo da história (reforma ou revolução, internacionalismo ou socialismo num só país, frente popular ou ruptura entre socialistas e comunistas, URSS ou China ou China ou Albânia, renda básica ou garantia de emprego, socioliberalismo ou estatismo, esquerdismo ou populismo, política institucional ou protestos de rua, etc., etc., etc.).

As lutas internas recrudescem quando as coisas não vão bem, como acontece agora. Não me refiro apenas aos resultados eleitorais (que, de qualquer forma, não são bons: na Europa a social-democracia obtém metade dos votos que obtinha há algumas décadas e a esquerda alternativa não consegue preencher a lacuna), mas, acima de tudo, à desorientação estratégica. Há uma proliferação de explicações e propostas de todo o tipo sobre os problemas que afligem os partidos de esquerda.

Há um conjunto dentro destas explicações que têm um ar familiar, embora sejam bastante diferentes entre si. Enumero algumas delas. Para alguns, a esquerda não soube combater o neoliberalismo e deixou-se absorver pelas elites globalizantes e financeiras. Para outros, a esquerda equivocou-se em sua política de alianças com minorias nacionais, étnicas ou culturais, o que a levou a abandonar seu universalismo. Há também aqueles que pensam que o problema está no abandono da classe trabalhadora: a esquerda tornou-se elitista, já não entende ou raciocina como os trabalhadores. E há finalmente aqueles que acreditam que o problema subjacente procede do pós-modernismo e dos estudos culturais estadunidenses: o relativismo (cuja semente foi semeada no Maio de 68) afundou a esquerda.

Em todos estes diagnósticos há, mais ou menos explicitamente, um apelo a uma pureza que em algum momento se perdeu. De fato, cabe encontrar um denominador comum em todos estes diagnósticos: trata-se da tese que, para vencer, a esquerda tem que ser internacionalista, racionalista e operária (os ingredientes podem ser misturados em doses muito variáveis), e, claro, materialista, ou seja, tem que esquecer as disputas ideológicas e identitárias, que quase se tornaram teológicas, e falar de salários, exploração e distribuição da riqueza. Se a esquerda recuperar essas raízes profundas, que remontam ao Iluminismo, poderá reconectar-se com a sociedade, isto é, com a classe trabalhadora, que hoje hesita e se deixa tentar pelo neofascismo, pelas forças xenófobas e pelos partidos conservadores.

A tese vem enunciar que é necessário retroceder no tempo, fazer tábua rasa das mudanças ocorridas no final dos anos sessenta e ressuscitar a defesa dos interesses dos trabalhadores, falando uma linguagem que se conecte com as preocupações das pessoas. Na prática, esta tese pode inclusive derivar para posições que seus críticos chamam de “vemelho-marrons” [“rojipardas”]: ao assumirem a cultura operária, os surtos xenófobos (o chamado “chauvinismo do bem-estar”) ou a intolerância com o diferente podem ser compreendidos ou desculpados. Naturalmente, aqueles que são rotulados de “vemelho-marrons” [“rojipardos”] acusam seus rivais de serem elitistas, neoliberais e pós-modernos, de viverem numa bolha e de se pontificarem a partir de uma superioridade moral.

2.

Não vou dar razões a favor ou contra destas posições. Em vez disso, gostaria de mostrar, sem recorrer a pressupostos ideológicos de qualquer tipo, que estas polêmicas não correspondem suficientemente à realidade social, movendo-se num plano excessivamente ideológico. Para desbloquear o jogo de oposições a que me referi, convém rever o que sabemos sobre as mudanças sociais que tiveram lugar nas últimas décadas. De um ponto de vista mais sociológico, é possível descobrir as limitações destas guerras culturais no interior da esquerda.

É impressionante que nos conflitos ideológicos a que me referi seja dada tão pouca atenção às mudanças culturais e axiológicas que ocorreram nos países avançados desde o final dos anos sessenta do século passado. O pioneiro no estudo da mudança cultural, Ronald Inglehart, recentemente falecido, mostrou já no seu primeiro livro, The silent revolution (1977), que havia uma crescente divisão geracional entre aqueles que sofreram as duras condições do pós-guerra e a nova geração que teve a oportunidade de desfrutar do bem-estar trazido pelos “trinta gloriosos”. Enquanto a geração mais velha se preocupava com questões materiais (um salário digno, moradia, bens de consumo básicos), a geração seguinte, tendo satisfeitas estas necessidades básicas, começou a preocupar-se com outras questões (a rejeição da guerra, a crítica à sociedade de consumo, a busca da realização pessoal, a libertação das mulheres, a liberdade sexual, o meio ambiente) que Inglehart chamou genericamente de “valores pós-materialistas” e, mais tarde, “valores autoexpressivos”. Os pós-materialistas atribuem grande importância às liberdades individuais, às escolhas de estilo de vida, em suma, às identidades. De certa forma, as grandes mobilizações dos jovens no final dos anos sessenta e início dos anos setenta foram uma afirmação de valores pós-materialistas que não tiveram uma tradução política (não encontraram a praia debaixo da calçada) mas ampliaram consideravelmente as margens de liberdade pessoal em relação às sociedades industriais.

Essa mudança geracional continuou desde então e produziu uma tensão crescente entre grupos com valores materialistas e pós-materialistas. As consequências são evidentes. Questões como os direitos civis, a ecologia e o feminismo, que não tinham tanto protagonismo no passado, tornaram-se cada vez mais importantes à esquerda. No entanto, nem todos compartilham destas prioridades, o que gera tensões às vezes irresolúveis. Uma forma de compreender esta transformação da política é considerar que, além da linha clássica de ruptura em matéria econômica entre posições mais intervencionistas e redistributivas e posições mais liberais e menos estatistas, foi imposta uma segunda linha que tem a ver com a oposição entre cosmopolitismo e nacionalismo, entre VAL (verde-alternativo-liberal) e TAN (tradicional-autoritário-nacional), ou entre vencedores e perdedores da globalização.

Um exemplo servirá para ilustrar a tese geral. No referendo do Brexit, o Partido Trabalhista foi dividido em dois. De um lado, a classe trabalhadora tradicional, de idade mais avançada, que sentem falta dos tempos da sociedade industrial, imbuída de um nacionalismo inglês forte, receosa da globalização e do supranacionalismo, e muito preocupada com a imigração, a qual percebe não só como uma ameaça econômica mas também cultural, capaz de dissolver os valores tradicionais da sociedade; e, de outro lado, profissionais, estudantes, jovens formados e integrados na economia global, ecologistas, pró-diversidade, preocupados com as minorias étnicas e, claro, a favor da União Europeia. A principal dificuldade do Partido Trabalhista é forjar uma coalização que inclua tanto os eleitores progressistas materialistas (e anti-União Europeia) como os pós-materialistas (e a favor da União Europeia). Tentaram isto com vários líderes após o fim da era Blair (Ed Miliband, Jeremy Corbyn e agora Keir Starmer), com perfis bastante diferentes, mas nenhum funcionou como esperado.

As mudanças culturais tiveram, à primeira vista, consequências desconcertantes. Por exemplo, o efeito da educação sobre as posições ideológicas foi invertido em relação ao que ocorria nas primeiras décadas do pós-guerra. Assim, no passado, um elevado nível de instrução era um sinal bastante inequívoco de liberalismo ou conservadorismo, enquanto as pessoas menos instruídas optavam pela esquerda. Já faz algum tempo que não só não ocorre isto, mas a relação foi invertida e, de fato, os eleitores mais instruídos (e em alguns casos com rendimentos mais elevados) optam pelos partidos verdes ou partidos da nova esquerda. Na Espanha, sem ir muito longe, o eleitor mais instruído está no Podemos.

Nos países europeus, o grupo de esquerda mais sólido é formado pelos “profissionais socioculturais” (pessoas que trabalham no setor da cultura, jornalismo, educação, saúde ou assistência social). Por outro lado, a classe trabalhadora, que na era dourada apoiava quase monoliticamente os partidos socialdemocratas ou comunistas, agora apresenta fissuras importantes. Segmentos importantes desta classe abandonaram suas lealdades tradicionais e votam em partidos xenófobos da direita radical. Ofereceram-se várias explicações para este comportamento, muitas das quais têm a ver precisamente com essa segunda dimensão ou eixo de conflito a que me referi anteriormente entre cosmopolitismo e nacionalismo: a defesa da identidade nacional face ao cosmopolitismo globalista explicaria a transição de parte da classe trabalhadora para a extrema-direita.

As maiores tensões encontram-se nos países com sistema bipartidário. Com apenas um partido progressista, a heterogeneidade é enorme e a coalizão entre diferentes grupos parece precária. O Partido Democrata nos Estados Unidos é uma amálgama estranha que reúne profissionais bem formados de ambas as costas, minorias étnicas e uma parte da classe trabalhadora tradicional. Quanto tempo essa coalização pode manter-se unida é uma incógnita. Nos países com sistema multipartidário, é possível uma maior especialização nos nichos eleitorais. Nos últimos anos, os partidos verdes cresceram consideravelmente e reúnem jovens mais instruídos e com valores mais enfaticamente pós-materialistas, em oposição aos partidos socialdemocratas tradicionais que mantêm uma maior cultura materialista.

Com certas variações, algumas destas tendências são visíveis na Espanha. Há pouco fiz referência de passagem ao caso do Podemos, com uma base fortemente “pós-materialista”. O PSOE continua apelando para as classes trabalhadoras menos qualificadas. No Vox não há um apoio amplo da classe trabalhadora; contudo, pesa um pouco mais na votação global do partido do que no caso do PP, que deveria ser motivo de preocupação. Este voto é resultado tanto do nacionalismo espanhol que o Vox defende face à independência catalã (que inclui tudo, da tourada à chuleta) como de atitudes anti-imigração.

3.

A fragmentação da esquerda é uma consequência de transformações sociais e culturais muito profundas. Não vai ser resolvido por diagnósticos simplistas, nem existem soluções milagrosas esperando na esquina. Desde já, os apelos ao passado são uma causa perdida. A gloriosa classe trabalhadora não vai voltar, mesmo que os laços com as minorias étnicas e culturais sejam rompidos. E o conflito cultural entre gerações e setores produtivos não vai evaporar por decreto. O problema não está na diversidade, nem nos nacionalismos, nem no pós-modernismo. Hoje é extremamente difícil encontrar a cola que mantenha unidas as antigas classes trabalhadoras, os jovens pós-materialistas qualificados, os profissionais cosmopolitas e as minorias desfavorecidas. A esquerda significa coisas muito diferentes em seus diferentes grupos de apoio. Daí a virulência com que as guerras culturais se desenvolvem no seio da esquerda; mas também sua futilidade.

*Ignacio Sánchez-Cuenca é professor de ciências políticas na Universidad Carlos III de Madrid. Autor, entre outros livros de La impotencia democrática (Catarata).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente na revista Contexto y Acción (CTXT).

 

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