Guerra na Ucrânia – do ponto de vista dos russos

Imagem: Serguei Velov
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Por GAIUS BALTAR*

Se o conflito da Ucrânia for visto a partir de outra perspectiva, o que seus movimentos revelariam?

Recentemente, ouvi um “especialista” aventar a opinião de que Vladimir Putin e o exército russo cometeram um grave erro ao organizar a “operação militar especial” (SMO) na Ucrânia da maneira como fizeram. Teria sido muito melhor apenas enviar o exército para os oblasts separatistas de Lugansk e Donietsk para defendê-los, em vez de fazer uma investida imprudente em direção a Kiev.

Em vez de seguir o conselho tardio daquele especialista, os russos optaram por avançar rapidamente para o norte e o sul da Ucrânia. Por que eles fizeram isso? Existem muitas teorias; algumas boas, algumas ilógicas e algumas completamente incoerentes. Achei que seria uma boa ideia recuar e analisar a situação frente à “operação militar especial” do ponto de vista russo.[1] Os russos tendem a ser pessoas práticas e lógicas, e o Estado Maior das Forças Armadas Russas provavelmente mais do que a maioria. O plano deles deve ter razões lógicas, com base no que viram na época. Então, como os russos viam a situação antes da “operação militar especial”, no final de 2021? Vamos nos colocar no lugar deles e inventar uma teoria. Observe que esta não é uma teoria do que aconteceu, apenas uma teoria sobre o que os russos podem ter pensado que poderia acontecer quando planejaram sua “operação militar especial”.

As linhas defensivas e o cerco ao Donbass

A primeira coisa que os russos devem ter notado foi a construção das enormes linhas defensivas ucranianas ao redor do que viriam a ser as repúblicas de Lugansk e Donietsk. O governo da Ucrânia não escondeu seu plano de capturar as repúblicas, e o exército ucraniano deveria ter uma “postura ofensiva” em vez de defensiva. Faz todo o sentido construir linhas defensivas enquanto se planeja um ataque, no sentido de evitar contra-ataques perturbadores, mas as defesas ucranianas foram muito além disso. Elas eram realmente enormes e construídas ao longo de um período de oito anos. Sabemos agora o quão fortes elas eram, porque os russos levaram mais de um ano para rompê-las.

Os russos devem ter dado uma olhada nessas defesas e chegado à seguinte conclusão: seu objetivo é, se necessário, conter o exército russo – e não simplesmente as milícias das repúblicas do Donbass –, inclusive se uma grande parte do exército russo for usada contra elas.

A segunda coisa que os russos devem ter notado foi a absoluta determinação dos ucranianos em atacar aquelas repúblicas, mesmo que isso – jogando ostensivamente por terra os acordos de Minsk – tornasse segura uma resposta russa. Vimos essa determinação quando o governo russo reconheceu a independência das repúblicas do Donbass pouco antes do início da guerra. De acordo com o mapa de monitoramento de artilharia da OSCE (Organization for Security and Co-operation in Europe), os ataques de artilharia ucraniana às repúblicas diminuíram logo após o reconhecimento da sua independência pela Rússia, mas aumentaram de novo logo depois, provavelmente após ordens de Kiev para retomá-los. Naquela época, o envolvimento russo já estava assegurado, mas os ucranianos ainda continuavam atacando as repúblicas.

Os russos teriam ligado essas duas coisas: a determinação em atacar e as defesas maciças. Eles devem ter chegado à seguinte conclusão: “Eles querem que ataquemos pelo Donbass, e então vão usar essas linhas defensivas para nos conter. Por que?”

A armadilha

Tendo observado tudo isso, os russos devem ter começado a pensar nos planos ucranianos. Eles teriam presumido que esses planos não eram apenas planos ucranianos, mas também planos da OTAN. Então, o que os ucranianos e a OTAN estariam planejando?

Os russos devem ter feito a seguinte dedução: “Os ucranianos e a OTAN querem que ataquemos através do Donbass e batamos contra essas linhas. Por que eles iriam querer isso? Deve ser porque é uma pré-condição para algum tipo de plano da parte deles, algum tipo de plano maior. Qual é esse plano maior?”.

Então eles devem ter pensado no que seria necessário para enfrentar o exército ucraniano no Donbass e tomar as linhas defensivas. O que isso exigiria? Isso exigiria uma grande força e muito tempo. Isso significaria que uma parte considerável do exército russo ficaria presa lá por longo tempo. Seria essa, talvez, a pré-condição para o plano maior da Ucrânia/OTAN? A coisa toda talvez se resumisse então a forçar o exército russo a atacar no Donbass, para tomar as linhas defensivas, mais especificamente para amarrá-lo, para mantê-lo ocupado, enquanto os ucranianos e a OTAN executavam o resto de seu plano?

Depois de pensar nisso, os russos devem ter se perguntado: “O que os ucranianos e a OTAN querem mais do que tudo?” E já que, na verdade, são os americanos e os britânicos que comandam o show, “o que os americanos e os britânicos querem mais do que tudo?” A pergunta não é difícil de responder. O que os americanos, os britânicos e os ucranianos queriam mais do que tudo era a Crimeia. A Crimeia é a chave para “dominar” o Mar Negro, e capturá-la seria uma adaga cravada no ventre da Rússia.

Depois de transitar por essa lógica, os russos teriam chegado à conclusão de que o ataque ucraniano às repúblicas de Donbass, assim como as linhas defensivas, era uma armadilha para prendê-los. Então eles começaram a planejar contramovimentos.

O plano russo

A primeira coisa que os russos podem ter pensado ao planejar o contra-ataque foi o tempo. Quanto tempo após o início do conflito os ucranianos se moveriam para a península da Crimeia? Eles não fariam isso imediatamente, porque gostariam que o exército russo estivesse, de fato e intensamente, engajado no Donbass, antes que fizessem algum movimento. Eles também não gostariam de alertar os russos, reunindo uma grande força perto da Crimeia antes que os russos enfrentassem as linhas defensivas no Donbass. Isso significaria que a área ao norte da Crimeia, ou seja, os oblasts de Kherson e Zaporozhie, seria levemente defendida por um tempo.

Depois de chegar a essa conclusão, os russos elaboraram um plano para se antecipar ao plano ucraniano/OTAN. O plano tinha um objetivo principal e dois objetivos secundários.

Objetivo 1 (objetivo principal): Capturar os oblasts de Kherson e Zaporozhie para criar uma zona tampão entre a Crimeia e o resto da Ucrânia. Este objetivo tinha que ser alcançado com extrema rapidez, enquanto a área ainda estava levemente defendida. Essa operação seria muito importante naquele momento, muito mais importante do que qualquer coisa acontecendo no Donbass ou na região de Kiev. A captura de Kherson não era suficiente para criar a zona tampão porque os ucranianos teriam que ser impedidos de atacar a ponte da Crimeia. A linha costeira de Zaporozhie fica a apenas a 150 quilômetros da ponte, então o oblast de Zaporozhie também teve que ser tomado imediatamente.

Objetivo 2 (objetivo secundário): Enquanto uma grande parte do exército ucraniano estivesse posicionada no Donbass, ainda haveria uma grande força retida, possivelmente destinada à operação na Crimeia. Esta parte do exército ucraniano teria que ser impedida de enfrentar as forças russas que avançavam sobre Kherson e Zaporozhie. A única maneira de fazer isso era ameaçar algo que precisava ser defendido a todo custo, mesmo à custa do plano da Crimeia. Havia apenas um local que os ucranianos defenderiam a todo custo fora do Donbass: a própria Kiev.

Os russos decidiram, portanto, avançar sobre Kiev de maneira extremamente ameaçadora. As forças que eles usaram não eram suficientes para tomar Kiev de imediato, mas suficientes para assegurar a área ao norte da cidade e ameaçá-la seriamente. Os ucranianos não teriam escolha a não ser levar a sério essa ameaça e mover forças em direção a Kiev, incluindo as forças destinadas à operação na Crimeia. Isso impediria os ucranianos de responder à ocupação russa dos oblasts de Kherson e Zaporozhie.

Objetivo 3 (objetivo secundário): Forçar a Ucrânia a negociar a paz nos termos russos. Os russos provavelmente presumiram que, se a operação tampão Kherson/Zaporozhie fosse bem-sucedida, os ucranianos poderiam querer negociar. Eles gostariam de negociar não apenas porque Kiev estava ameaçada, mas principalmente porque seu objetivo principal, a captura da Crimeia, havia sido frustrado. Esta parte do plano foi parcialmente bem-sucedida porque os ucranianos estavam prontos para assinar um tratado, até o momento em que os americanos e os britânicos intervieram.

A conclusão dessa (talvez duvidosa) leitura da mente do Estado Maior russo é que os principais objetivos da operação russa inicial eram Kherson e Zaporozhie, e não o Donbass, Kiev ou um tratado com os ucranianos. Quando as negociações fracassaram, os russos voltaram ao seu plano de contingência, com o objetivo principal de destruir o exército ucraniano.

É importante ter em mente que esta não é uma teoria destinada a explicar o que aconteceu. É apenas uma teoria para explicar o plano russo com base no que os russos poderiam estar pensando na época. É altamente especulativa e talvez equivocada, mas explica muita coisa, incluindo as reações ucraniana e ocidental à operação russa.

O plano ucraniano

Vamos descrever o plano teórico da Ucrânia/OTAN antes de prosseguir. O plano, de acordo com essa hipotética teoria russa do pré-guerra, teria três objetivos principais: (i) amarrar o exército russo no Donbass, usando as linhas defensivas maciças e uma boa parte do exército ucraniano bem treinado e bem equipado; (ii) realizar um ataque surpresa à península da Crimeia, ocupá-la e transformar o Mar Negro em uma área controlada pela OTAN ― colocando pressão maciça sobre Putin, como bônus (para isso, uma parte significativa do exército ucraniano foi retida do Donbass); (iii) atolar e sangrar o exército russo no Donbass, com o objetivo de engendrar uma mudança de regime na Rússia; a blitz de sanções foi planejada como parte integrante desse objetivo.

Já é abril de 2023 e até agora nenhum desses objetivos foi alcançado. Vamos supor que essa teoria esteja correta e que esse era realmente o plano. E vamos ver o que os ucranianos e o Ocidente têm feito desde o seu fracasso. De novo, isso é altamente especulativo.

A obsessão com o plano

Se olharmos para o que os ucranianos e o Ocidente têm feito nessa guerra, parece surgir um padrão: eles ainda parecem estar executando o plano inicial, embora ele tenha falhado. Quase todas as decisões que tomam parecem estar de acordo com o plano, ou mais especificamente, de acordo com uma negação patológica do fracasso do plano. Vejamos alguns exemplos.

A obsessão pela Crimeia. Os ucranianos e o Ocidente ainda planejam tomar a Crimeia, embora isso seja impossível. Ainda assim, o sonho de captura da Crimeia continua vivo em suas mentes e é tomado como uma opção realista. Volodymyr Zelensky chegou a dizer que a Ucrânia havia iniciado a “libertação” da Crimeia… “em suas mentes”. Ocupar a Crimeia fazia parte do plano. Abandoná-la significa que o plano falhou.

O ataque à ponte da Crimeia. Destruir a ponte fazia parte do plano, e mesmo depois que a Crimeia estava fora do alcance da Ucrânia e os russos garantiram um corredor terrestre para a Crimeia, a ponte ainda era uma prioridade. Tinha que ser atacada porque isso fazia parte do plano. Essa obsessão foi ensaiada, e, até agora, eles não tiveram a necessidade de tentar de novo.

A obsessão por Bakhmut (Artemovsk). O exército ucraniano perdeu provavelmente algo como 40 mil soldados defendendo Soledar e Bakhmut. O bolsão é uma zona de morte para a artilharia russa, para onde os ucranianos fornecem carne de canhão sem parar. Até os americanos têm dúvidas de que manter a cidade seja a opção certa, mas os ucranianos podem estar até mesmo dispostos a sacrificar sua ofensiva de primavera para segurá-la um pouco mais. Mais e mais especialistas militares estão balançando a cabeça e tratando de Bakhmut como não mais que uma obsessão ucraniana, o que é verdade. Manter Bakhmut evita que a última parte do plano falhe, ou seja, manter o exército russo do outro lado das linhas defensivas. Se os russos as romperem, o plano terá falhado por inteiro. Portanto, Bakhmut deve ser defendida.

A obsessão com as sanções. Um dos maiores choques da guerra foi o fracasso das sanções econômicas ocidentais. A resposta do Ocidente ao fracasso foi interessante. Ele não cancelou as sanções, nem as congelou, nem as repensou. Em vez disso, o Ocidente continua sancionando tudo e todos, ainda que seja claramente inútil e até contraproducente. A situação está se tornando cada vez mais surreal, mas o Ocidente não pode parar. Se para, o plano terá falhado.

O pânico inicial

Há uma outra questão que o fracasso do plano Ucrânia/OTAN pode explicar. Todas as pessoas importantes no Ocidente esperavam que os russos invadissem a Ucrânia antes que isso acontecesse. Isso era, de fato, o que muitos deles queriam. Seria de se esperar que eles mostrassem indignação, condenassem os russos brutos e assim por diante. A reação inicial do Ocidente, no entanto, foi muito além disso. Havia raiva extrema, pânico e histeria. Houve até ameaças de uso de armas nucleares. É de se supor que tais reações foram muito mais extremadas do que a invasão russa justificava. Por que perder completamente a cabeça com algo que você sabia que ia acontecer? É de se suspeitar que toda a raiva, o pânico e as ameaças se deveram a que, na realidade, os russos frustraram o plano ocidental para a Crimeia. O Ocidente queria ludibriar os russos, mas os russos o ludibriaram.

A raiva e a obsessão para com o plano fracassado, tanto na Ucrânia quanto no Ocidente, são, sem dúvida, resultado da psicologia e da personalidade incrivelmente uniforme das classes dominantes ocidental e ucraniana: eles não aceitam facilmente o fracasso pessoal ou a intrusão da realidade em seus planos. Mas isso é assunto para outro ensaio, e bem longo.

Por fim, lembre-se de que tudo isso é especulação, um exercício de pensamento, se preferir, mas quem sabe…?

*Gaius Baltar é o pseudônimo de um analista independente de geopolítica que escreve para blogs como The Vineyard of the Saker e Inside the Vatican.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente em SONAR.

Nota do tradutor


[1] Preferiu-se esse título como paráfrase esportiva (literalmente, à la Garrincha) para uma fórmula com a qual os antropólogos têm extensa familiaridade, evocada de Malinowski a Geertz, que é o conselho de buscar compreender outras realidades a partir “do ponto de vista do nativo” (“from the native’s point of view”). Essa fórmula recebeu, na literatura antropológica, um bom número de paráfrases, todas elas com conotações as mais sugestivas, como a de Eduardo Viveiros de Castro, que teve a tradução da sua etnografia sobre os Araweté publicada pela editora da Universidade de Chicago com o título From the enemy’s point of vew (um exercício perspectivo, aliás, do qual o Ocidente político costuma ser sobejamente incapaz). Em sendo fiel ao “ponto de vista dos russos”, a grafia dos topônimos, nesta tradução, foi feita de acordo com sua realização fonêmica em russo.

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