Por MANFRED BACK*
Um diálogo entre Marx e Keynes
“Quanto mais nobre o gênio; menos nobre o destino. Um gênio pequeno alcança a fama, um grande gênio recebe a infâmia, um gênio maior sofre o desespero; um Deus é crucificado”.
(Fernando Pessoa)
“O todo sem a parte não é todo, / A parte sem o todo não é parte, / Mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga que é parte, sendo todo”.
(Gregório de Mattos)
1.
Um hipotético diálogo entre o velho barbudo e o lorde. Aos mais novos narcotizados pelas fantasias alfanuméricas, trata-se de Marx e Keynes, que ainda não estrearam na Premier League, um como extremo pelos lados e outro como centroavante. Aos noviços economistas formados nos seminários do pensamento único, dois dos maiores economistas de todos os tempos, que simplesmente mudaram a economia. Numa analogia futebolística uma mistura de Pep Guardiola e Jurgen Klopp, técnicos preocupados com o sistema como um todo! O grito entoado pela torcida: “Dinheiro, o preço comum de todas as coisas”. (Marx, Grundrisse)
Sobre a teoria econômica padrão (mainstream):
“A economia vulgar, que “realmente não aprendeu nada”, apega-se aqui, como em tudo, à aparência [Schein] contra a lei do fenômeno [Erscheinung]. Em oposição a Espinosa, ela acredita que “a ignorância é uma razão suficiente” (Marx, O capital, capítulo IX)
“O conceito de valor pertence completamente à economia mais moderna, porque é a expressão mais abstrata do próprio capital e da produção baseada nele. No conceito de valor é revelado seu segredo”. (Marx, Grundrisse).
“O conceito de valor pertence completamente à economia mais moderna, porque é a expressão mais abstrata do próprio capital e da produção baseada nele. No conceito de valor é revelado seu segredo”. (Marx, Grundrisse).
“Por exemplo, ¼ exprime uma determinada proporção. Se converto esse ¼ em um decimal, ou seja, se o ponho = 0,25, a sua forma é alterada. Essa alteração formal deixa o valor inalterado. Da mesma maneira, se eu converto uma mercadoria na forma de dinheiro ou o dinheiro na forma de mercadoria, o valor permanece o mesmo; mas a forma é modificada”. (Marx, Grundrisse).
Comenta o velho barbudo nos Grundrisse: “O materialismo tosco dos economistas, de considerar como qualidades naturais das coisas as relações sociais de produção dos seres humanos e as determinações que as coisas recebem, enquanto subsumidas a tais relações, é um idealismo igualmente tosco, um fetichismo que atribui às coisas relações sociais como determinações que lhes são imanentes e, assim, as mistifica”.
2.
Complementa o Lorde, em 1925, no artigo: “Eu sou um liberal?”: “metade da sabedoria dos manuais de nossos estadistas se baseia em suposições que antes foram verdadeiras, ou parcialmente verdadeiras, mas que o são cada vez menos. Temos que inventar uma nova sabedoria para uma nova era. E, nesse ínterim, devemos, se quisermos fazer algum bem, parecer heterodoxos, problemáticos, perigosos e desobedientes àqueles que nos geraram”.
“Mudamos, sem perceber, nossa filosofia de vida econômica, nossas noções do que é razoável e do que é tolerável; e fizemos isso sem alterar nossa técnica ou nossas máximas de manual. Daí nossas lágrimas e problemas”. (John Maynard Keynes, Eu sou um liberal?).
“A disposição com respeito às questões públicas, que por conveniência denominamos individualismo e laissez-faire, originou-se de muitas fontes de pensamento e de diferentes impulsos dos sentimentos. Durante mais de cem anos nossos filósofos nos governaram porque, por um milagre, quase todos concordavam, ou pareciam concordar, sobre essa questão. Ainda hoje, não deixamos de dançar a mesma música. Mas, paira no ar uma transformação. Apenas ouvimos indistintamente o que já foram uma vez as vozes mais nítidas e claras que jamais instruíram a humanidade política. Finalmente, a orquestra de diversos instrumentos, o coro de sons articulados, está se diluindo na distância”. (John Maynard Keynes, O fim do “laissez-faire”,1926).
“A doutrina filosófica de que o governo não tem o direito de intervir, e à doutrina divina de que ele não tem necessidade de interferir, acrescenta-se uma prova científica de que sua interferência é inconveniente. Esta é a terceira corrente de pensamento, que pode ser descoberta em Adam Smith, e que, fundamentalmente, estava pronta a permitir que o bem comum repousasse no “natural esforço de cada indivíduo para melhorar sua condição”, ideia que só se desenvolveria completa e conscientemente no início do século XIX. O princípio do laissez-faire chega assim para harmonizar o individualismo e o socialismo, e para unir o egoísmo de Hume ao máximo benefício do maior número. O filósofo político poderia ser substituído pelo homem de negócios, pois este conseguia atingir o summum bonun do filósofo, simplesmente através da procura do seu lucro pessoal”. (John Maynard Keynes, O fim do “laissez-faire”).
3.
O velho barbudo emenda no posfácio da segunda edição de O capital: “Seu último grande representante, Ricardo, converte afinal, conscientemente, a antítese entre os interesses de classe, entre o salário e o lucro, entre o lucro e a renda da terra em ponto de partida de suas investigações, concebendo essa antítese, ingenuamente, como uma lei natural da sociedade. Com isso, porém, a ciência burguesa da economia chegara a seus limites intransponíveis”.
Keynes manda a bola para o gol: “Os economistas ensinavam que a riqueza, o comércio e a maquinaria provinham da livre competição, e que a livre competição construíra Londres. Contudo, os darwinistas puderam avançar um pouco mais – segundo eles, o próprio homem resultara da livre concorrência. O olho humano não era mais a demonstração de um desígnio, capaz de coordenar milagrosamente “e da melhor maneira todas as coisas; ele era a suprema realização do acaso, funcionando sob condições de livre concorrência e de laissez-faire. O princípio de sobrevivência do mais apto poderia ser encarado como uma ampla generalização da economia ricardiana”.
E na comemoração brada: “Os filósofos c os economistas nos diziam que, por diversas e profundas razões, a empresa privada sem entraves iria promover o maior bem para a sociedade toda. O que poderia ter servido melhor ao empresário? E, olhando em torno, poderia um observador negar que as bênçãos do progresso, que distingue o período em que viveu, deviam ser atribuídas às atividades de indivíduos “interesseiros”? Assim, o terreno estava preparado para a doutrina que, em bases divinas, naturais ou científicas, estabelecia que a ação do Estado deveria ser rigorosamente limitada, e que, na medida do possível, a vida econômica deveria ser deixada, sem regulamentos, à aptidão e ao bom senso de cidadãos individualistas, impelidos pela admirável motivação de subir na vida”. (John Maynard Keynes, O fim do “laissez-faire”).
Aos crentes da doutrina, o conhecimento de Keynes: “o termo laissez-faire não se encontra nas obras de Adam Smith, Ricardo e Malthus. Até a ideia não se encontra de forma dogmática em qualquer um desses autores. (John Maynard Keynes, O fim do “laissez-faire”).
A falta de luz no estudo do pensamento econômico, a ignorância cognitiva da história, paga seu preço. Diz Keynes: “Adam Smith, naturalmente, era a favor do livre comércio e contrário a muitas limitações setecentistas ao comércio. Mas, sua atitude em relação às leis de navegação e à legislação contra a usura mostra que ele não era dogmático. Até sua famosa passagem sobre “a mão invisível” reflete a filosofia que associamos a Paley, e não ao dogma econômico do laissez-faire. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
“Como indicaram Sidgwick e Cliff Leslie, a defesa de Adam Smith do “evidente e simples sistema de liberdade natural” deriva da sua visão teísta e otimista de ordem no mundo, tal como foi proposta em sua Theory of Moral Sentiments, e não de qualquer proposição característica da economia política”. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
“Por exemplo, em A Manual of Political Economy, ele (Bentham) escreve: A regra geral é que nada deve ser feito ou tentado pelo governo; o lema ou divisa do governo, nessas ocasiões, deveria ser: ficar quieto… A exigência feita pela agricultura, indústria e comércio aos governos é tão modesta e razoável quanto a que Diógenes fez a Alexandre: – Saia da minha frente. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
4.
Aí o Lorde chuta a bola para os fanáticos torcedores do mainstream: “em resumo, o dogma tomou conta da máquina educacional, tornou-se uma máxima escolar. A filosofia política, forjada nos séculos XVII e XVIII para derrubar reis e prelados, transformou-se em leite materno e literalmente penetrou no berçário”. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
“Os economistas, como outros cientistas, têm escolhido as hipóteses que lhes servem de ponto de partida, e que eles oferecem aos principiantes, por se tratar da mais simples, e não por estarem mais próximos dos fatos”. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
“O materialismo tosco dos economistas, de considerar como qualidades naturais das coisas as relações sociais de produção dos seres humanos e as determinações que as coisas recebem, enquanto subsumidas a tais relações, é um idealismo igualmente tosco, um fetichismo que atribui às coisas relações sociais como determinações que lhes são imanentes e, assim, as mistifica”. (Marx, Grundrisse).
Lorde expõe o corpo da doutrina: “Isto se dá porque os economistas geralmente reservam para uma fase posterior de sua discussão as complicações que surgem: (i) quando as unidades de produção eficientes São grandes em relação às unidades de consumo; (ii) quando ocorrem custos indiretos e conjuntos; (iii) quando as economias internas tendem a concentração da produção; (iv) quando o tempo necessário para os ajustamentos é longo; (c) quando a ignorância supera o conhecimento; (vi) quando os monopólios e os cartéis interferem no equilíbrio dos negócios. Em outras palavras, eles guardam para um estágio superior a sua análise dos fatos reais. Além disso, muitos dos que reconhecem que as hipóteses simplificadas não correspondem precisamente aos fatos concluem, apesar disso, que elas representam o que é “natural” e, portanto, ideal: Eles consideram saudáveis as hipóteses simplificadas, e doentias as demais complicações”. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
O velho barbudo pega a bola: “Na França e na Inglaterra, a burguesia conquistara o poder político. A partir de então, a luta de classes assumiu, teórica e praticamente, formas cada vez mais acentuadas e ameaçadoras. Ela fez soar o dobre fúnebre pela economia científica burguesa. Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, se contrariava ou não as ordens policiais. O lugar da investigação desinteressada foi ocupado pelos espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial”. (Marx, posfácio da segunda edição de O capital).
“O tempo de circulação– na medida em que ocupa o tempo do capitalista enquanto tal– interessa-nos do ponto de vista econômico tanto quanto o tempo que ele passa com sua amante. Se tempo é dinheiro, do ponto de vista do capital, só é dinheiro o tempo de trabalho alheio, que é de fato, na mais verdadeira acepção da palavra, o dinheiro do capital”. (Marx, Grundrisse).
“Esclareçamos desde o início os princípios metafísicos ou gerais sobre os quais, de tempos em tempos, se fundamentou o laissez-faire. Não é verdade que os indivíduos possuem uma “liberdade natural” prescritiva em suas atividades econômicas. Não existe um contrato que confira direitos perpétuos aos que os têm ou aos que os adquirem. O mundo não é governado do alto de forma que o interesse particular e o social sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que na prática eles coincidam. Não constitui uma dedução correta dos princípios da Economia que o autointeresse esclarecido sempre atua a favor do interesse público. Nem é verdade que o autointeresse seja geralmente esclarecido; mais frequentemente, os indivíduos que agem separadamente na promoção de seus próprios objetivos são excessivamente ignorantes ou fracos até para atingi-los. A experiência não mostra que os indivíduos, quando integram um grupo social, são sempre menos esclarecidos do que quando agem separadamente”. (John Maynard Keynes, “O fim do laissez-faire”).
“Imaginar que exista algum mecanismo de ajuste automático e funcionamento perfeito que preserve o equilíbrio, bastando para isso que confiemos nas práticas do “laissez-faire” é uma fantasia doutrinária que desconsidera as lições da experiência histórica sem apoio em uma teoria sólida”. (Keynes)
O velho barbudo, craque, anteviu a jogada antes do lorde: “Na livre concorrência, não são os indivíduos que são liberados, mas o capital”. (Marx, Grundrisse)
“O que reside na natureza do capital só é realmente posto para fora dele, como necessidade exterior, pela concorrência, que nada mais significa que os muitos capitais impõem uns aos outros e a si próprios as determinações imanentes do capital”. (Marx, Grundrisse)
“É surpreendente em que coisas tolas pode-se acreditar temporariamente se se pensa sozinho por tempo demasiado, particularmente na Economia (bem como nas outras ciências morais), em que muitas vezes é impossível submeter as ideias que se tem a um teste conclusivo, quer formal quer experimental”. (Keynes, prefácio de A teoria geral).
A libertação da doutrina: “Em meu próprio pensamento e desenvolvimento, portanto, este livro representa uma reação, uma transição no sentido de me afastar da tradição clássica (ou ortodoxa) inglesa. A ênfase que dou nas páginas seguintes a isso e aos pontos em que divirjo da doutrina tradicional tem sido considerada por alguns, na Inglaterra, como indevidamente controversa. Como pode, porém, alguém que foi educado como católico em termos de economia inglesa, um sacerdote mesmo dessa fé, evitar um pouco de ênfase controversa logo quando se torna protestante?” (Keynes, prefácio de A teoria geral).
“Grande parte da recente economia “matemática” não passa de um emaranhamento, tão impreciso quanto suas hipóteses iniciais, levando os autores a perder de vista, num labirinto de símbolos pretensiosos e inúteis, as complexidades e interdependências do mundo real”. (Keynes, Teoria Geral).
“Boletins meteorológicos não indicam o estado do barômetro e do termômetro com maior precisão do que os boletins da Bolsa apresentam o estado da taxa de juros, não para este ou aquele capital, mas para o capital que se encontra no mercado monetário, isto é, para o volume inteiro de capital emprestável”. (Marx, O capital, seção V, livro III).
Os Hooligans da torcida organizada de Lucas, não foram nada racionais, vendo o jogo perdido por goleada, invadem o campo e roubam a bola do jogo! Ancorados pela expectativa de derrota, acabam com o jogo. Foi a primeira vez que acertaram uma previsão! Contra o velho barbudo e o lorde não tem para ninguém! Por isso são amados e odiados, e acima de tudo, respeitados! São os craques maiores, olá de ouro da economia! Não tem para ninguém!
Esse texto é uma luz que cindi a fresta da janela sobre a pobreza e mediocridade da póstuma ciência econômica!
*Manfred Back é graduado em economia pela PUC –SP e mestre em administração pública pela FGV-SP.
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