História do socialismo democrático brasileiro

Dario Longo, Linhas telefônica, 2015
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Por JORGE FERREIRA*

Prefácio ao livro recém-lançado de F. Alexandre Hecker

A primeira experiência de democracia representativa ampliada no Brasil, entre 1946 e 1964, não recebeu por parte dos historiadores a mesma dedicação que outros períodos republicanos. Os estudos sobre a Primeira República, o primeiro período do governo Vargas e a ditadura militar despertaram amplo interesse, com pesquisas em vários enfoques e muitas publicações. Não foi o caso da República de 1946.

Desse modo, não é casual que os estudos políticos sobre a experiência liberal-democrática brasileira receberam a dedicação dos nossos colegas sociólogos e cientistas políticos. Se nos restringirmos apenas ao sistema partidário, os trabalhos que se tornaram marcantes são daquelas duas áreas de conhecimento. Como resultado de teses de doutorado em Ciência Política, temos o livro de Lucia Hippolito sobre o PSD e de Maria Celina D’Araújo sobre o PTB. A tese de doutorado em Sociologia de Lucilia de Almeira Neves também foi sobre o PTB. Outra tese de doutorado, em Ciência Sociais, resultou no livro da Maria Victória Benevides sobre a UDN. Sobre o sistema partidário, há que se de citar o trabalho pioneiro de Maria do Carmo Campello de Souza e a pesquisa de Antônio Lavareda, ambos os livros resultados de suas teses de doutorado em Ciência Política. Não incluo o Partido Comunista do Brasil (PCB), depois renomeado de Brasileiro, porque é o partido político mais estudado, seja por cientistas políticos, sociólogos, historiadores, antropólogos, jornalistas, entre outros.

Nesse passeio pela produção intelectual sobre os partidos políticos na experiência liberal-democrática brasileira, há de se perguntar: qual a posição do Partido Socialista Brasileiro (PSB)? O partido foi objeto de interesse na área de história quando, em 1988, Silvio Frank Alem defendeu tese de doutorado na USP. No ano seguinte, Miracy Gustin defendeu dissertação de mestrado em Ciência Política na UFMG. Em 1994, Margarida Vieira apresentou tese de doutorado em história da UFF. No ano seguinte, Margarida e Miracy, em trabalho conjunto, publicaram o livro Semeando a democracia. Foi o primeiro trabalho publicado sobre o PSB, resultado de pesquisa da historiadora e da cientista política.

Naquela conjuntura, condensando o conhecimento historiográfico então elaborado sobre o tema, F. Alexandre Hecker, conhecido historiador brasileiro, defendera seu doutorado e o publicaria em 1998, com o título de Socialismo sociável: história da esquerda democrática em São Paulo: 1945-1965. Agora, passadas mais de duas décadas, o autor oferece à historiografia brasileira nova e importante contribuição com História do socialismo democrático brasileiro: o Rio de Janeiro como centro produtor e difusor.

Assim, o que se quer ressaltar é que este professor de história contemporânea da Unesp vem-se dedicando ao longo dos anos a diversas pesquisas, com ênfase no socialismo democrático, mas também na história da imigração, sobretudo na italiana. A história política do PSB e do projeto de socialismo democrático, portanto, não são novidades para Alexandre. O livro, evidentemente, resulta do amadurecimento de suas reflexões anteriores, mas é resultado de extensa pesquisa atual, com multiplicidade de fontes documentais. Muitas entrevistas foram realizadas, diversos jornais folheados, arquivos e bibliotecas públicas frequentadas, centros de pesquisas visitados, livros de memórias e biografias consultadas. O leitor atento muito certamente ficará surpreso com a vasta pesquisa documental que sustenta os relatos no livro.

O autor centra a análise da trajetória do PSB no Rio de Janeiro. Capital do país por muito tempo, foi na cidade que surgiu, em 1945, a Esquerda Democrática e, dois anos depois, sua transformação em partido político. No Rio de Janeiro ocorriam os grandes debates políticos e ali atuaram as duas maiores lideranças socialistas: João Mangabeira e Hermes Lima. Da capital do país, eles reuniram diversos grupos que existiam nos estados. O socialismo democrático atraiu intelectuais e profissionais renomados, como Rubem Braga, José Honório Rodrigues, Joel Silveira, Evandro Lins e Silva, José Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Sérgio Milliet, Fúlvio Abramo, Aziz Simão, entre diversos outros.

O esforço dos socialistas era elaborar um projeto político de esquerda, mas sem as amarras em que a tradição bolchevista atrelou o pensamento marxista. O projeto era superar o capitalismo com a socialização dos meios de produção, mantendo, porém, a propriedade privada, desde que fosse necessária ao indivíduo e não prejudicasse o conjunto da sociedade. A transição ao socialismo ocorreria de maneira consensual, conquistando o apoio da população. O lema do PSB era “socialismo e liberdade”, afastando-o de modelos comunistas baseados na “ditadura do proletariado”. Enfim, entre os militantes, nem todos partiam necessariamente de conceber a existência de uma contradição intrínseca entre capitalismo e democracia.

Apesar do projeto político avançado e dos nomes que se tornaram referências na inteligência brasileira, os socialistas careciam de votos. Nas eleições de 2 de outubro de 1945, os socialistas, ainda com o nome de Esquerda Democrática, elegeram apenas dois deputados federais de um total de 320. Nas eleições presidenciais de 1950, João Mangabeira, presidente do partido, recebeu 0,1% dos votos. Os números reduzidos de eleitos continuaram nas eleições posteriores.

O leitor perceberá facilmente como os socialistas se posicionavam em relação a seus concorrentes no campo da esquerda: os comunistas e os trabalhistas. Os comunistas do PCB eram definidos como autoritários e dogmáticos; os trabalhistas vinculados ao PTB não passavam de demagogos e manipuladores – renomeados pelo autor de “populismo”. É compreensível que os socialistas quisessem construir identidade própria e, para isso, procuravam se distinguir de seus concorrentes entre os trabalhadores: trabalhistas e comunistas. A Esquerda Democrática, por exemplo, nasceu marcada pelo antigetulismo. Tudo o que se relacionasse à tradição trabalhista, por exemplo, era definido como deformação política e peleguismo. Inclusive a legislação social era considerada derivação do fascismo.

Os resultados eleitorais do PSB eram acanhados e o autor nos dá pistas para compreender o problema. F. Alexandre Hecker analisa as eleições ocorridas no Brasil no período, revelando os resultados obtidos pelos socialistas. O partido tinha dificuldades de comunicação com os eleitores, particularmente devido ao elitismo ideológico e o que chamamos de “academicismo”. O episódio em que Evandro Lins e Silva, candidato, vai a uma feira-livre com roupa de festa e nem sequer cumprimenta possíveis eleitores exemplifica as dificuldades dos socialistas em ampliar o número de votos.

Ainda acrescentaria: como poderiam ganhar a confiança dos assalariados criticando os dois partidos mais populares entre a classe trabalhadora – PTB e PCB – definindo um como resultado da demagogia getulista e o outro pelo autoritarismo soviético? E o que dizer do movimento sindical liderado por comunistas e trabalhistas, definido como “sindicalismo pelego”? Como atrair o apoio sindical desqualificando os próprios sindicalistas como “falsas lideranças”? O PSB, desse modo, surgia como partido repleto de nomes que formavam a inteligência brasileira e com projeto político avançado, mas pouco afeito ao chão da fábrica e ao ambiente sindical. Esse conjunto de questões nos leva a avaliar a pouca popularidade dos socialistas entre os trabalhadores, resultando em apurações eleitorais acanhadas.

O PSB também enfrentou problemas internos. Enquanto a seção paulista encantou-se por Jânio Quadros, a pernambucana formou uma frente de esquerda. A partir de 1960, sobretudo no governo de João Goulart, o partido deu forte guinada à esquerda, participando do leque de organizações políticas, sindicais, estudantis e camponesas que lutavam pelas reformas de base.

Alexandre Hecker apresenta ao leitor, de maneira aprofundada e com cuidadosa pesquisa documental, a trajetória do PSB de 1945 até sua extinção em 1965. Entretanto, o autor parece incansável no seu trabalho de investigação sobre os socialistas brasileiros. Ele inova ao analisar o PSB após 1985, discutindo o quanto o partido mudou e o quanto manteve do passado anterior a 1965. A pesquisa documental, nesse momento, igualmente chama a atenção do leitor, particularmente o trabalho com a metodologia de história oral: refiro-me ao sexto capítulo, intitulado “refundação em tempos atuais”. O autor opta por fazer História do Tempo Presente, abordagem historiográfica muito discutida e que faz referência, em particular, aos tempos da ditadura militar. Creio que é o momento de pensar a História do Tempo Presente como período dedicado ao pós-1985. É o que F. Alexandre Hecker fez.

O novo PSB também surge no Rio de Janeiro e novamente nomes de expressão da intelectualidade brasileira formaram a direção nacional, a exemplo de Antônio Houaiss. Mas isso foi apenas no recomeço. Logo entraram no partido novas lideranças que se tornaram “políticos profissionais”. A tarefa deles era construir um partido político fortalecido pelo voto popular.

No início dos anos 1990, Miguel Arraes assumiu a direção do PSB. O partido não era mais de uma elite intelectual e profissional, mas assumiu perfil popular sob a batuta do líder político pernambucano. O novo grupo dirigente pretendia fazer do PSB uma alternativa ao PT. O sucessor de Arraes no PSB foi seu neto, o jovem político Eduardo Campos. Mas trágico acidente aéreo ceifou sua vida.

Alexandre Hecker, sem dúvida, realizou imensa pesquisa documental, cobrindo a trajetória de partido político pouco presente na historiografia brasileira, com redação clara e agradável. O leitor, ao final do livro, conhecerá a aventura dos socialistas democráticos brasileiros em longa temporalidade. Algumas opções teóricas adotadas pelo autor poderão surpreender, como classificar o trabalhismo como “manipulação de massas” e o sindicalismo entre 1946-1964 como “populista”.

Também pode provocar desconforto em algum leitor a maneira severa como lida com os comunistas do PCB. Em certos momentos, o autor parece mesmo assumir o ponto de vista dos próprios socialistas. Isto, porém, não retira o brilho e a importância do livro ou eclipsa o talento e a experiência do historiador. Com o livro, ganham os leitores interessados na história política republicana brasileira, como também a historiografia sobre os partidos políticos se enriquece ainda mais.

Por fim, chamo a atenção para que, em sua primeira fase, entre 1945 e 1965, o PSB se esforçou para ser alternativa às esquerdas, disputando com o PTB e o PCB. Não conseguiu. Em sua segunda fase, no pós-1985, apostou que poderia se apresentar como opção ao PT. Também não conseguiu. Antes, havia a figura de Vargas e o popular PTB; depois, a liderança de Lula e o crescimento político do PT. Contudo, como realça o autor, o PSB contribuiu para o enriquecimento da cultura política brasileira, afirmando que era possível e viável a associação do socialismo com a democracia, ou, como o lema do partido indicava, o socialismo estava conjugado à liberdade.

Os socialistas contribuíram para a disseminação de uma cultura democrática entre as esquerdas, mas o socialismo democrático não vingou nas terras brasileiras. Nesse caso, parafraseando Sérgio Buarque de Holanda, diria que no Brasil o socialismo foi sempre um lamentável mal-entendido. Afinal, durante muitos anos somente eram considerados “verdadeiros” socialismos os regimes políticos que tinham como matriz a revolução liderada pelos bolcheviques russos.

Para aqueles que, autossuficientes, se arrogam como “revolucionários”, o socialismo democrático do PSB não passava – ou não passa – de “conciliação de classe” enquanto o socialismo moreno do PDT era definido como “populismo brizolista”. Mas em um país tão conservador como o Brasil e cujos “revolucionários” não têm expressão política significativa, o socialismo democrático não seria, ele mesmo, revolucionário?

*Jorge Ferreira é professor titular aposentado de história da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Referência


F. Alexandre Hecker. História do socialismo democrático brasileiro: o Rio de Janeiro como centro produtor e difusor. São Paulo, AnnaBlume, 2024.


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